Vamos imaginar por momentos que voltámos à era dourada do hip hop dos anos 70 e 80: estamos em South Bronx, Nova Iorque, e cada festa de bairro ao virar da esquina é o sítio ideal para se estar num sábado à noite. Aqui cada cenário é bastante idêntico, mas reitera-se em cada bloco com particularidades, nem que sejam elas sónicas, hierárquicas ou até mesmo demográficas: o sentimento comum era e sempre foi a música. Falamos dos tempos das turntables, disc jockeys que formulavam batidas rítmicas em loop. Há um espírito de agrupamento entre aquelas pessoas ali reunidas. Riscava-se discos, fumava-se erva, e experimentava-se novos sons. Afinal, o hip hop sempre fora um canal de união entre pessoas com bifurcações culturais e políticas; uma voz que partilhara histórias de contextos dissimilantes; um elo de ligação entre o passado preponderante do funk e do r&b dos anos 60 e 70 e uma nova camada de pele contada principalmente pelos imigrantes da América Latina, África e Caraíbas.
O cenário vivido no passado sábado, dia 6, no Musicbox não foi de todo uma homenagem aos tempos passados do género musical. Mas esse também não era o objectivo principal: a noite foi, aliás, uma celebração de como o avanço desta música chegou a Portugal – apesar de ter atingido o mainstream de forma morosa e inibida nos anos 90. A alma e a determinação das pessoas que constituíam aqueles bairros nova-iorquinos eram, de alguma maneira, igualada à energia de família e de conforto vivida naquele espaço em Lisboa. Afinal, TNT estava em casa. Apesar de ser oriundo da Margem Sul, o rapper mostro, no Cais do Sodré, convicção, emoção e convidou a sala meio cheia do recinto a ouvir as suas histórias. Pouco tempo depois das 21h45, a festa estava já ao rubro.
O mote para este concerto foi o EP Forever Young, editado ainda este ano pela editora Mano a Mano, criada pelo próprio. Com ele, estava AMAURA, a cantora que entrou de maneira modesta, mas que rapidamente se mostrou versátil e concisa quando se ouviu pela primeira vez a sua voz. Numa primeira parte, AMAURA era o conforto de Daniel Freitas: acompanhou-o lado a lado, circundado cada verso, cada cuspo, cada ritmo, sempre de forma elegante e venérea. Quando chegou a música que dá nome a este projecto, ela rematou cada palavra, pois cada uma é devidamente sentida: “Dias em que atrás devias ter aproveitado mais/ Nem tu imaginas as lembranças”. Pouco tempo depois, ouviu-se “Flow”, um dos primeiros singles lançados. Há aqui uma troca de palavras, olhares e interacções entre os dois, que não só se vê pela amizade partilhada por ambos, mas também pela partilha dos mesmos sonhos. A verdade é que TNT podia ter facilmente conduzido o espectáculo sozinho — até porque tem material para tal, desde que se apresentou a solo em Unhas e Dentes, há cinco anos. Mas sabe sempre melhor partilhar estes momentos com quem mais se gosta — desde os fãs mais devotos que dançaram a cada batida na fila da frente, à mulher do rapper que com um sorriso rasgado acompanhava cada canção, passando ainda por Pedro Quaresma, membro dos Da Weasel, que ajudou Freitas a produzir o primeiro álbum. Já referi neste texto e reforço-o novamente: uma boa festa faz-se em família.
“Mar de Rosas” seguiu-se e o ambiente já instaurado manteve-se. Durante uns firmes minutos, viu-se uma troca de sons entre os dois, mas TNT deixou AMAURA ter o seu momento e apresentar-se devidamente a uma plateia devota para a ouvir. Maura Magarinhos sempre se apresentou num registo secundário nos trabalhos de outros artistas – é importante recordar as prestações dela em Mechelas, OPROCESSO, MDO, entre outros. No entanto, o pequeno palco do Musicbox era somente dela. A presença é tímida, mas o timbre é sedutor, é contemporâneo, é geracional. Ao ouvi-la, é fácil encontrar semelhanças a Gabi Wilson: uma voz abafante que nos fala sobre pós-relacionamentos de um formato tão vulnerável como pungente. Tal se notou em “Blues do Tinto”, que falou pelas experiências vividas por quem a escutava. “Eu já não ando bem, mas ao menos não ando até ti”, há aqui um pouco de Jazmine Sullivan na maneira certeira como ataca a outra pessoa. Durante o concerto, a inibição foi se perdendo, não devido aos copos de vinho que mencionava, mas devido ao à-vontade que ganhava enquanto partilhava as suas histórias. “Maré Doce”, “Surfista da Banheira”, até espaço para “Valerie”, de Amy Whinehouse: vimos e ouvimos várias facetas de Magarinhos e ansiámos por um novo trabalho.
TNT juntou-se à colega para mais uma mão-cheia de temas. Entre os vários, “Cultura” foi um momento crucial, mas foi em “Bola de Cristal” que Freitas quis ser seriamente ouvido. A vida prega partidas, é de desconfiar e imprevisível. Nota-se que há uma dor na cara dele, talvez porque o sentimento de nostalgia e aprendizagem que a música carrega fá-lo lembrar de vivências menos positivas. Mas ele passa-nos esta mensagem de perda e luto como uma lição, como se estivesse ao nosso lado a contar que, por vezes, nem sempre temos o que queremos e nem sempre estão ao nosso lado quem nos faz bem. Os sonhos são recompensadores, mesmo quando passamos grande parte da vida a sofrer por eles. Daniel juntou-se ao público, abraçou quem tinha de abraçar, deu um paço de dança no final e despediu-se de forma justa perante um público que gritou por ele durante uma hora. Foi uma celebração de interior e exterior numa cidade que o construiu, que o derrubou e o formou novamente. Com ele, estava AMAURA, que, entre meios tons e meias falas, revelou-se como uma arma firme numa geração que a recebe com regalo. No final, exigia-se mais e mais ainda. Não há que contristar, “a gente vê-se no final”.