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Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 19/12/2022

É assim que se transpõe um disco para palco.

Surma na Culturgest: vulnerabilidade ou (a inesperada virtude do auto-conhecimento)

Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 19/12/2022

Comecemos pelo fim. A ovação prosseguia, as palmas do seu público a ecoarem por todo o espaço da Culturgest, em Lisboa. De repente, Débora Umbelino – que mais conhecemos como Surma – regressa a palco, sozinha, e anuncia que vai cantar uma canção de Antwerpen, álbum de estreia que a consagrou em 2017 como uma das mais excitantes oferendas que a música portuguesa nos deu na última década. O público mantém-se estático mais uns segundos. As palmas continuam. Finalmente, ouve-se… silêncio. O público senta-se, a iluminação prepara o ambiente. Segue-se “Begrenset” e, em pouco mais de um minuto, Débora transporta-nos de volta para o seu mundo. Estamos felizes. No final, João Hasselberg e Pedro Melo Alves, que tão bem a acompanharam em palco ao longo do concerto, regressam para a sua companhia. Voltou-se a ouvir “Huvastï”. Com mais ou menos timidez, o público foi-se levantando dos seus lugares para dançar, abanando como conseguia os seus membros face às excursões rítmicas do trio em palco. Fez-se a (real) festa. Seguiu-se uma segunda ovação para o trio. Merecida.

Agora, vamos ao início. Chegamos à Culturgest perto das 19 horas – excelente hora para um concerto, diga-se – com a expectativa de conhecermos o universo ao vivo de alla, o segundo trabalho de originais de Surma. (Nota #1: o autor deste texto nunca tinha assistido a um espectáculo da leiriense antes deste sábado, 17 de Dezembro). Paramos na banquinha da Omnichord Records para vermos se existia alguma prenda de Natal antecipada (o vinil de Noiserv com First Breath After Coma tentou-nos…) e, a seguir, caminhamos na direcção da sala onde ia ocorrer o concerto, um auditório que, pelas suas condições de acústica e atmosfera acolhedora, se revela como um dos nossos favoritos a visitar na cena cultural lisboeta. Mal sabíamos nós aquilo que nos esperava ao longo da próxima hora. 

Em palco, o fumo que pairava no interior sala criava os primeiros toques de ambiência para o espectáculo. As luzes baixarem de intensidade deu o mote: estávamos prestes a entrar no mundo de alla. E aí Surma entrou em palco. Contudo, quando falamos aqui de Surma, não falamos apenas de Débora Umbelino – compositora, intérprete, produtora e performer. Estamos a falar de Surma, uma entidade, um avatar formado por três corpos distintos, vestidos a rigor; ao centro, Débora, hipnotizante nos seus movimentos quasi-alienígenas; à sua esquerda, Pedro Melo Alves, cientista da bateria de quem não dá para desviar o olhar; à direita, João Hasselberg, um ser dos sete ofícios, ligados por uma amizade e admiração profunda, capazes de incorporar (e destruir, quando necessário) as concepções musicais de alla. “O nosso nome é Surma”, interpolou Débora depois de “etel.vina”, faixa com que abriu o concerto, corrigindo-se a si mesma após se ter apresentado somente como entidade individual.



A correção tem uma raison d’être. alla é um disco que vive, simultaneamente, da vulnerabilidade que Surma conseguiu incutir nas canções do álbum e das inúmeras colaborações que temos possibilidade de escutar ao longo do LP. Em palco, o universo de alla só consegue ser alcançado com a ajuda de outrem, revelando-se, essencialmente, como uma reinterpretação do disco. A experiência de ouvir as canções de alla ao vivo é totalmente diferente de as escutar nas suas versões de estúdio, abrindo espaço para que a sua pujança emocional sobressaia. 

Uma faixa como “Nyanyana”, que na Culturgest contou com Selma Uamusse em palco, elevou-se, transcendendo dimensões — o duelo de vozes entre Débora e a autora de Mati encheu a sala com um verdadeiro ritual sónico. Com Cabrita a ajudar à festa, o trio desconstruiu “Tous les nuages”, a faixa a culminar num duelo entre saxofone e restantes elementos antes de colapsar sobre a sua própria beleza ruidosa. Em “Aïda”, uma cacofonia de eventos entre o rock e a pop, groove e desconstrução, abre espaço para um momento de jam onde a simbiose do trio se faz sentir (Nota #2: o autor deste texto acha que é preciso um disco de punk feito por este trio na sua vida. Fica a sugestão). “Biyelka”, com Hasselberg no contrabaixo e Pedro Melo Alves a tomar controlo das maquinetas do seu companheiro, começou de forma fantasmagórica antes de culminar num momento em que as partículas sonoras e a atmosfera da sala uniram-se para formar um único átomo de ruído catártico. Foi bonito, claro.

Daí para a frente, o concerto desenrolou-se de forma magnética, entre muitas palmas e muito silêncio atento. “Maasai”, faixa com que Surma se estreou em 2016, foi adaptada para o formato trio, surgindo algo próxima de um jazz noir, livre e desprendido de qualquer ideia de obedecer à versão original da canção, a revelar (mais uma vez) a imensa química existente entre as três pessoas em palco. “Huvastï”, que em disco conta com as contribuições dos próprios Hasselberg e Pedro Melo Alves, é um excelente exemplo do tipo de desconstrução eclética que Surma aplicou ao universo de alla, fazendo-nos lembrar, em palco, uma versão surmística de uma canção de Geodaddi, dos Boards of Canada – dançável, altamente rítmica, capaz de abraçar os fantasmas do passado para preparar futuros risonhos (em comunidade, ora bem). 



Surma guardou o mais impactante para o final do espetáculo. Primeiro,  caiu sobre nós com “Did I drop acid and this is my ego death?”, o interior da Culturgest tornou-se num ringue, luzes e techno desconstruído a embaterem sobre si mesmas numa acção de extremo estímulo sensorial para o público. Em seguida, sacou “Islet” da cartola, single que abriu a peregrinação em direção a alla e com que terminou o tempo regulamentar do concerto. Num momento de enorme beleza, a atmosfera pós-rock a la Sigur Rós cobriu público e artista numa emoção sincronizada. (Nota #3: Este vosso escriba pode ter deitado umas lágrimas durante este momento. A faixa assim o pedia). Sobre o encore, já falámos – foi aí onde começamos esta viagem em formato palavra.

Transpor as canções de alla para um espectáculo ao vivo nunca seria uma tarefa fácil. As faixas encontram-se recheadas de detalhes, pequenos elementos que contribuem para que este seja um disco único, um sucessor mais do que digno do excelente Antwerpen. Contudo, Surma conseguiu-o fazer com a mestria de quem parecia ter isto pensado desde o primeiro dia. No limite do absurdo, podemos dizer que, para Surma, estas desconstruções são inatas, surgem naturalmente a partir da sua história e de quem contribui para ela. Todavia, sabemos que não é assim. Resultam de um processo de maturação e de crescimento, um que profundamente alterou a percepção artística de Débora Umbelino nos cinco anos que separam Antwerpen deste alla.

Se quando falamos da vulnerabilidade de alla, falamos da coragem de Surma em se expor e da sinceridade com que o conseguiu fazer, o seu espcetáculo ao vivo revela uma nova faceta da vulnerabilidade corajosa da artista leiriense: a audácia de se apresentar, a si e à sua música, sem se deixar prender por qualquer expectativa ou pré-concepção sobre o que pode ser a sua criação. Essa passa a ser agora mais do que a chave para o próprio alla – é, sim, a chave para entender a própria Surma daqui para a frente. Só podemos estar gratos por vivenciar e partilhar um pouco de tudo isto. Nota #4: Este foi o último concerto de 2022 para este vosso escriba. Que bela forma de fechar o ano.


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