Expor vulnerabilidade é algo bom. Revela coragem, resvala nas incertezas da dor, do prazer, do auto-conhecimento, do crescimento resultante de tudo isso. É especial conseguir fazê-lo de forma sincera e há ainda algo mais de especial em conseguir fazê-lo na arte que críamos, seja na escrita, pintura, música… Admiro profundamente quem o consegue fazer.
Quando escrevo sobre música, procuro incutir um pouco as minhas próprias vulnerabilidades no texto e encontrar alguma espécie de relação entre estas e aquilo que oiço. É isso que me atrai neste exercício e, pelo menos ultimamente, as coisas que me têm mais deixado excitado na sua escuta têm sido aquelas que precisamente vão de encontro às minhas próprias vulnerabilidades e inseguranças.
Quando escutei “Islet”, single que marcou o regresso de Débora Umbelino (aka Surma) aos lançamentos, primeira antecipação deste alla – sucessor do incrível Antwerpen, de 2017, eleito aqui no burgo como um dos melhores trabalhos nacionais desse ano –, lançado esta sexta-feira (11 de Novembro), fiquei imediatamente com meio olho posto no que estava para vir. A faixa, perdida nos seus toques de alt-pop e paisagens de pós-rock à la Sigur Rós, ia aos confins das minhas próprias inseguranças ao longo de várias fases da minha vida. Fazia-me querer dançar e gritar como se ninguém estivesse a ver, livre de qualquer julgamento por apenas querer ser eu. É uma das peças centrais de alla – percepções próprias e de outrem, a vida com todos os altos e baixos que traz. Quem nos rodeia. Nós próprios.
alla é uma quebra total de Surma para com aquilo que pode ser a sua música. Não é que as contemplações introspectivas e atmosféricas de Antwerpen estejam totalmente abandonadas – longe disso. Estão lá, continuam a surgir e, em momentos, são mesmo a base de várias canções deste alla. Há uma ligação de desenvolvimento e crescimento artístico entre os dois discos, mas o intuito de Surma neste alla parece ser óbvio: se existem barreiras, sejam estilísticas ou identitárias, é para derrubar.
Nesse sentido, alla surge de um ideal muito björkiano: mandar tudo abaixo para reerguer algo de novo e tão belo como o que estava lá anteriormente. Para chegarmos lá, o caminho é de aventura sonora arrojada. A instrumentação de alla é mais densa comparada com o seu predecessor, a experimentação é uma constante ao longo do longa-duração, a (des)fragmentação é inata. A atmosfera pode soar fria em momentos – tal como em muito da extensão de Antwerpen – mas é deturpada com a presença de convidados (alguns bem surpreendentes), todos eles a acrescentarem algo ao universo de Surma que, assim, se eleva e reconstrói, mas sem nunca perder o lado introspetivo explorado neste disco.
Em “Tous les nuages”, Cabrita e Victor Torpedo ajudam a transformar uma folktronica a lembrar Bon Iver em uma catarse free jazz; em “Huvastï”, João Hasselberg e Pedro Melo Alves trazem textura e ritmos extras a uma faixa que puxa tanto ao dançável como ao experimental dissonante num momento de grande destaque neste trabalho discográfico; em “Nyanyana”, a voz de Selma Uamusse atira-nos para um lado mais tribal, criando total cacofonia com os vocais de Débora (distorcidos ou não); em “Biyelka”, a invocar a influência de um Tim Hecker, Angelica Salvi e Joana Guerra ajudam a trazer beleza e emoção extra à cantiga. A coisa não fica por aqui. Noiserv junta-se a Surma na belíssima “Myrtise” – talvez a canção mais Antwerpen deste álbum –, Ana Deus (Três Tristes Tigres) empresta a sua voz para as explorações de “Tergiverso” – soa a algo que poderíamos encontrar num disco de The 1975 – e Ecstasya ajuda a moldar “Did I drop acid and this is my ego death?” (incrível título para uma faixa, diga-se), perdida entre o universo sonoro de Nicolas Jaar embebido em hyperpop.
Não obstante, as canções assinadas somente pela compositora, intérprete, produtora e performer de Leiria – como a já referida “Islet” – também se amplificam face a Antwerpen. “etel.vina”, a abrir o LP, revela logo os dotes mais expansivos de alla face ao seu antecessor, a bateria a romper com as costuras sonhadoras da faixa, “Aïda” é mais uma demonstração neste trabalho da admiração e carinho que Surma nutre pelo jazz, e “Nico, my love. anaoj” soa a uma canção perdida dos Velvet Underground, banda pela qual Débora já demonstrou ter imenso carinho e admiração.
De certa forma, a existência de momentos de colaboração e outros solitários neste alla é mais uma demonstração do tema identitário do álbum: Surma existe enquanto identidade própria, mas não existe a identidade de Surma sem os outros e sem as situações que a impactam. Na exploração da sua própria vulnerabilidade, Surma criou uma obra surpreendente, cheia de cantos e recantos para explorar a nível sonoro, em quebra total com aquilo que podia ser esperado de si enquanto artista. Ao mesmo tempo, faz-nos reflectir sobre as nossas próprias vulnerabilidades – como surgiram, como as podemos aceitar e de como podemos crescer com elas. Essa é a verdadeira chave para este alla. Ao som das suas cantigas, há espaço para nos abraçarmos, para nos deixarmos levar para os nossos próprios escombros e, a partir daí, desbloquear como podemos construir o que se segue. Se Surma o fez, acho que nós (e eu incluo-me nesse grupo) também o podemos continuar a tentar a fazer. Sejamos mais como a Surma – afinal, ser-se vulnerável é fixe. Não há nada de errado com isso.