pub

Fotografia: Jelmer de Haas
Publicado a: 21/11/2021

Na rota das especiarias do jazz.

Super-Sonic Jazz Festival’21 – Dia 4: das fusões de Moses Boyd ao swing caribenho de Nubya Garcia

Fotografia: Jelmer de Haas
Publicado a: 21/11/2021

Nubya Garcia confessou, a dada altura, “por razões que não são importantes explicar agora”, que tinha acabado de passar por “dois dias muito difíceis”, mas que a reacção do público que, uma vez mais, esgotou a capacidade do Paradiso para a quarta jornada do Super-Sonic Jazz Festival fez tudo valer a pena. Aquele “I really love you guys” soou honesto e não foi complicado perceber, sobretudo para quem já a pudesse ter visto ao vivo antes, que ali, ontem, a saxofonista deu 150 por cento, num set feérico que incendiou as almas presentes.

A noite começou bem, com Moses Boyd, baterista e produtor que inscreveu Dark Matter, ópus lançado em 2020, entre as obras a carecerem de urgente atenção por parte de quem queira entender este prisma presente. Ao seu lado, um incrível saxofonista, Quinn Oulton, que oscilou entre riffs completamente “in the pocket” e passagens mais abstractas, tanto ambientais como capazes de deslocar placas tectónicas, seguindo sempre os subtis gestos do líder para se soltar ou para se conter. Havia ainda um teclista, Renato Paris, que foi saltitando entre o que soava a um Moog Little Phatty para os baixos e ainda synths e Rhodes. Entre o jazz de fusão e algo mais free inspirado pelo presente electrónico, Boyd tocou um set relativamente curto que não chegou a uma hora, permitindo ao seu teclista navegar a considerável distância entre o Herbie Hancock mais espacial e futurista e o Keith Emerson (verdade…) mais indulgente enquanto negociava, sem abandonar as referências dos anos 70, as tangentes de aproximação e recuo ao universo da fusão jazz. Não terá sido, no conjunto, o melhor concerto de Moses Boyd, certamente, mas nos momentos em que se quedou sozinho, deu para perceber que é homem com “baterismo” para dar e vender.

Seguiu-se aquele que foi, muito provavelmente, o momento mais off da noite (e quiça de todo o festival), com Raul Monsalve y Los Foragidos, colectivo com raízes na Venezuela que levou ao palco do Paradisco uma sessão de esclarecimento de mentes europeias sobre o poder dos modos tradicionais sul-americanos, combinando jazz e funk, psicadelismo, afrobeat e ritmos tradicionais através de um ensemble com baixo (eléctrico e electrónico) bateria, teclados e guitarra (e o guitarrista também tocou flauta), saxofone, percussão tradicional e uma expressiva voz a cargo de uma sacerdotisa que não se cansou de nos assaltar o espírito com cânticos xamânicos convidando-nos a perdermo-nos na dança. A verdade é que resultou!

E deu para tudo: para uma versão sul-do-equador do “Memphis Soul Stew” de King Curtis, encantamentos via voz praticamente acapella acompanhada apenas por shakers e rituais de batuque com blocos de madeira que renderam momentos musicais particularmente contagiantes. Uma justa celebração da alma afro-venezuelana que acabou por se encaixar ali da melhor maneira.

Logo depois, as duas cabeças de cartaz da noite. Emma-Jean Thackray em primeiro lugar, Nubya Garcia, logo depois.

A trompetista fez um concerto deveras surpreendente, tomando a sua particular ideia de jazz como ponto de partida para uma deriva pelo universo do mais moderno som de clubes, oferecendo-nos uma declinação acústica mas ritmicamente assertiva do melhor som house que continua a emanar de Detroit, garage de Londres e R&B futurista de Los Angeles provando que o microfone e os seus dotes vocais são mais um útil recurso que pode juntar às suas já notáveis capacidades como instrumentista, produtora, engenheira de som, DJ e, claro, compositora e letrista.

Soando por vezes como uma diva garage dos anos 90, Emma-Jean brilhou enquanto desenrolava o reportório do seu belíssimo álbum de estreia de 2021, Yellow, interpretando daí temas como o belíssimo “Golden Green” (“my baby smells like biscuits. Biscuits and weed”), “Our People” ou “Yellow”. Ladeada por um incrível baterista que entende como fazer uma versão orgânica do que normalmente se obtém programando uma MPC ou algo do género, e ainda por baixo, teclados (sobretudo Rhodes) e percussão, Emma-Jean foi parcimoniosa no seu trompetismo, mas expressiva com a voz que modulou e samplou em tempo real, criando espaços harmónicos nas canções de amplo efeito dramático. E foi verdadeiro maestro, voltando as costas ao público para realmente dirigir a banda, gerindo os tempos rítmicos como a verdadeira DJ que também é. Portugal precisa muito de a ver e ouvir.

E depois, até agora e a par de Sons of Kemet e cktrl, outro dos mais altos momentos do festival. Nubya Garcia, o prato principal deste já longo repasto de sábado. Com Sam Jones na bateria e Daniel Casimir no baixo, dois gigantes que ajudaram a elevar o álbum Source aos justos píncaros que a imprensa não se coibiu de reconhecer, Nubya cavalgou, tendo ainda ao lado um teclista que não conseguimos identificar (facto explicado pelas luzes sempre baixas e pela incapacidade de perceber os nomes dos músicos quando anunciados e logo submersos pelo intenso clamor do público), as enérgicas e musculadas cadências jamaicanas e sul-americanas que Sam Jones foi debitando, exibindo a líder uma autoridade no tenor que ninguém lhe nega. O seu som é gigante, fundo e sério, um perfeito descendente dos mestres do instrumento, ainda que o seu swing possa fazer mais sentido em Brixton do que em Nova Orleães.

Para isso é fundamental o trabalho de Sam Jones que usa duas tarolas, uma delas aditivada com especiarias sónicas importadas dos melhores estúdios jamaicanos, para desenhar a componente rítmica a que Daniel Casimir acrescenta pontos bónus com um contrabaixo que soa como se tivesse sido educado pelo baixo eléctrico de Robbie Shakespeare, mesmo tendo William Parker para dar explicações extra. O concerti terminou em modo espiritual versão dub, com Nubya a elevar ao máximo a pressão emocional, deixando uma audiência rendida, a aplaudir de pé a sua incrível prestação.

A noite ainda teve espaço para o artista local Gino-Cochise, mas, muito sinceramente, depois da catarse com Nubya Garcia não sobrou energia para muito mais. Apenas para rumar ao abrigo e retemperar forças para a derradeira jornada com os holandeses SMANDEM. e o britânico Yussef Dayes.


pub

Últimos da categoria: Reportagem

RBTV

Últimos artigos