Na procura de ampliar a partilha de diálogos que fora dos concertos se vão estabelecendo entre as gentes que os fazem acontecer e as gentes que são a razão para que aconteçam, a tarde do segundo dia o Space Festival (SF) juntou Ana Bento (Gira Sol Azul / Que Jazz é Este?, Viseu), Vasco Neves (CITEC / Festival CITEMOR, Montemor-o-Velho), João Pedro Fonseca (ZigurFest, Lamego) e Hugo Ferreira (Nascentes, Fontes / Omnichord, Leiria) em conversa mediada por Catarina Machado (radialista, O Grito e o Cochicho). Partindo das inquietudes sempre irresolvíveis inerentes à acção de programar cultura. Ouve partilha do como saber fazer e sobretudo querer programar de forma descentralizada, fora dos grandes centros, com que impactos e importâncias. Sem condões ou formas resolventes para todas as incógnitas, há modos de fazer que, no risco da actividade de programar e criar, vão dando lugar a outros lugares. Todos os intervenientes são disso exemplo na sua práctica, e a de traço comum na vontade do arriscar e firmes na resiliência. O SF é disso uma recente demonstração. Nuno Alves (programador do SF), arrisca além do lugar em que “as pessoas só pedem o que conhecem” para o (des)conhecido dando a conhecer. E haveremos de chegar a um descanso confortável nesse processo? Como legou o autor e jornalista sueco Stig Dagerman (1923-54), numa máxima lapidar A Nossa Necessidade de Consolo é Impossível de Satisfazer (Fenda, 1995).
O programa sequente pode bem ser intitulado num caminhar entre as gotas da chuva.
Da metáfora ao real, Luís Fernandes tem armado em palco o sintetizador modular para nos receber em nova proposta de volta ao sedutor Teatro Esther de Carvalho. Fernandes, leva perto de uma década de actividade colaborativa com diversos músicos e num muito enriquecedor duo estabelecido com a pianista Joana Gama, nos últimos anos a solo, editou em nome próprio 3 registos que importa conhecer: Demora (Room40, 2019), Seis Peças Sintetizadas (Holuzam, 2019) e A Guide to Getting Lost (Revolve, 2022), pelo meio viu editada uma faixa na série The Wire Tapper 50 da revista The Wire. Neste percurso a solo Fernandes explora como sabe tão bem fazer as possibilidades infinitas das texturas dos sintetizadores modulares num acarreio sónico hipnótico e desafiador.
Até ao SF Fernandes carrega uma máquina de 18 Kg, feita em mala sobrepesa, a bagagem de mão permitida, mas o voo está garantido à partida. Não há regras nem limites pré-estabelecidos nesta viagem programada. Começo que transporta para um corredor ventilado com ambiências de gotejo persistentes em seguida, num espaço definido algures entre o fora estando dentro, ecos no cair desmedido das gotas. Há um propósito que remete para o outono do real. E nem de propósito um apelo ao silenciamento dos disparos, contínuos, de diferentes ordens balísticas, mas sucessivamente abafados, uma e outra vez. Fernandes quer protestar contra a guerra tão desgraçadamente real. O longe tornado perto, estamos todos implicados, é de todos também este belicismo lá de fora — zero de imunidade. O desconforto textural da peça, em contínuo vai cedendo à floresta, numa floresta em sonho, numa construção de escape em metáfora. Densa trama de sons confortantes, que crescem num sentido reflexivo do lá fora no conforto do cá de dentro. Fernandes segue compenetrado na teia, sob a urdidura de palco com quatro projectores que emanam uma luz ténue e quente, tão baixos que o levantar da mesa de trabalho é apenas em desejo possível. Está de lado e assim assume a partilha do processo criativo sonoro, vê-se a complexidade de cabos multicolores, cabe um mundo de possibilidades nestes dispositivos. A música ouve-se envolta, num fio à meada que se desenrola do aparente emaranhado do modular. As vozes de teclados deixam demorar o processo que se escuta. Terminará, sabemos que sim, mas a vontade era ficar ali perdidos naquela infinidade de camadas.
O SF é tão comprometido na exploração que o leva a explorar na própria condição de programar. Assim se alcançam razões para trazer propostas como o Duo Guitolão. À primeira vista estranhamente ali proposto, fora de contexto, mas há lugar para um “porque não?” No risco de novos públicos, no explorar da abordagem a um instrumento que explora um legado multidimensional. Guitolão é um cordofone de 12 cordas em 6 duplas ordens, como na guitarra portuguesa para a qual remete visualmente. Foi um sonho tornado real no diálogo entre dois mestres, o tocador Carlos Paredes (1925-2004) e o construtor Gilberto Grácio (1936-2021). Paredes quisera um instrumento solista que dispensasse acompanhamento e em tudo mais grave e ressonante que a guitarra de que foi mestre maior. Grácio haveria de o construir, mas o outro mestre apenas tocou um pré-guitolão, uma guitarra portuguesa barítono e o instrumento depois desenvolvido e melhorado, o guitolão, nunca haveria de soar na mestria das mãos de Paredes. Hoje cabe ao guitarrista António Eustáquio o desempenho dessa função, e tem desenvolvido esse trabalho em duo, com Carlos Barretto (contrabaixo) publicando disco homónimo (JACC Records, 2015) e em trio juntando-o ao violino e ao acordeão. Mas no SF, e ficou claro o propósito, desafiando em exploração o que previamente havia sido feito para solo, apresenta-se em duo. São duas vozes de baixo que se juntam, uma brilhante e outra grave.
Guitolão expressa também as camadas das culturas musicais herdadas neste território. Soa entre a guitarra portuguesa e o alaúde árabe. Na escolha de lugar, que nem acaso objectivo, a dessacralizada igreja edificada em 1090 acumula também legados da cultura al-andaluz que prosperou na ibéria entre os alvores dos anos de 700 até meados de 1200. Os painéis de azulejos em rosetas arabescas atestam essa influência no lugar. Eustáquio transpõem no toque esse legado pelo ataque às cordas por sobre a roseta do instrumento, desenvolvem-se barcarolas no estilo como em “Sol da Sesta”, toada jazz como “Variações em Lá”, ou os arabismos empregues na abordagem de “Marwan” e “Guitolão”, ou na magia feérica como nas mãos em garra de Paredes quando executava “Auto do Rio” que Eustáquio com mestria desfere tema adiante em “IBN” nas cordas do guitolão. Esta sonoridade é como nos colocar a falar de nós mesmo, música de um povo, entidade destes territórios e das gentes que povoam nas camadas do tempo. Barretto nunca esteve remetido a um acompanhamento de encher, trouxe volúpia, calor e soou a solo em diversos momentos fazendo do seu contrabaixo uma acção preponderante que lhe reconhecemos de tantos outros contextos e propósitos. A rendição enternecida no olhar dos que encheram a igreja para tal propósito foi elevada em “Poema a uma folha caída” e “Despedida” tema fora de alinhamento do disco do duo e que revela um futuro. Foi experimental no desafio, foi pedra de toque para outros públicos, foi sair desde dentro.
Desceram muitos à TOCA, outros a outras tocas certamente. Mas na TOCA que importa no SF’23, estava montado cenário com e para “Sublumia: Liquid Aesthesia“. Performance dos músicos João Ricardo, Henrique Fernandes e Jorge Quintela. Intimamente ligada à instalação Sublumia que se quer visitada ou revisitada após este desempenho manipulador dos dispositivos montado, tão claro como água. Água como elemento de luz e som. Plataforma elevada desde o chão e que marcava uma linha de água, como a dos navios de carga ou de horizonte, dependendo da abordagem ao meio físico, se água ou terra, isso vai de cada um. Abaixo da linha: cablagens, fios eléctricos, tubagens de ar, raízes (na perspectiva terrestre) ou amarras (na via aquática); Acima da linha: transluzentes tubos, provetas, serpentinas, balões de vidro, pipetas, tinas e os indispensáveis comandos de intensidades sonoras e pneumáticas. Ar como veículo propulsor sonoro. Nas margens do borbulhar há som que se vai acumulando para bolhas maiores ou libertando nas menores, que se acumula nas camadas permitidas aos comandos dos músicos ou se libertam na mesma medida. Jogo absorvente e cativante, redireciona para dentro de uma cisterna, como a do Reservatório da Patriacal, no subsolo do Jardim do Príncipe Real (Lisboa) onde isto começou em 2018. Acrescem no SF outros elementos, a diversão é desmedida na manipulação. Harmonias surgem das pequenas barras horizontais das partes de mecanismos de relógio de pêndulo já reveladas na instalação Sublumia. Da efemeridade as atuações, fizeram eternizar o momento com a edição pela checa editora de Brno uma cassete de título homónimo (Skupina, 2020). Raquel Castro, curadora do Lisboa Soa, a esse propósito escreveu tratar-se de: “música de meticuloso impacto, e de toque celeste que deve ser ouvida atentamente. A experiência auditiva traz-nos a energia subterrânea, baixa, negra, para emergir de novo numa transcendente e luminosa atmosfera. É neste contraste de intensidades e texturas que imergimos nós mesmos enquanto os ouvidos são puxados e absorvidos neste belo registo”.
A passagem do lado de fora para dentro, volta a ter lugar, permutação, agora dentro da bolha de ar emergente e explícita, conotando um fora, logo ali, num molhado e chuvoso território.