LP / CD / Digital

Sons Of Kemet

Black To The Future

Impulse! / 2021

Texto de Rui Miguel Abreu

Publicado a: 25/05/2021

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Os Sons Of Kemet são, até ao momento, o mais prolífico e duradouro projecto de Shabaka Hutchings: o saxofonista e clarinetista britânico soma três álbuns enquanto parte do trio The Comet Is Coming, mais dois à frente dos Ancestors, colectivos que lançaram os seus trabalhos de estreia em 2016. O grupo em que agora reúne os talentos do tubista Theon Cross e dos bateristas Tom Skinner e Eddie Wakili-Hick começou por se fazer ouvir com Burn, álbum lançado na Naim Jazz em 2013. Um par de anos mais tarde, com o mesmo selo, e já com Cross em substituição de Oren Marshall, os Sons Of Kemet apresentaram Lest We Forget What We Came Here To Do. Nos títulos desses dois registos inaugurais, bem como das diferentes peças dos respectivos alinhamentos, já se encontrava bem expressa a militância pela causa Negra, bem como a espiritualidade que definem a distinta postura de Hutchings: “All Will Surely Burn”, “The Book of Disquiet”, “In The Castle of My Skin” ou “Afrofuturism” são claros indicativos do lastro conceptual e intelectual que os Sons Of Kemet carregam desde a origem.

Foi, no entanto, com o extraordinário Your Queen is a Reptile, o trabalho de 2018 que assinalou o ingresso de Shabaka Hutchings na histórica editora Impulse!, que se obteve uma mais nítida imagem desse posicionamento ideológico dos Sons Of Kemet: com as faixas a referenciarem símbolos femininos da militância negra, de Harriet Tubman a Angela Davis, os Sons Of Kemet professavam uma clara aliança com quem luta para exaltar a singularidade da experiência africana no mundo e uma clara empatia com o sofrimento acumulado ao longo de séculos de uma turbulenta e ainda por resolver história.

Na passada sexta-feira, numa longa peça sobre as celebrações de seis décadas de existência da Impulse! assinada por Gonçalo Frota no suplemento Ípsilon do Público, Jamie Krents, um dos homens responsáveis pela reactivação do mítico selo em que John Coltrane inscreveu a mais celebrada parte da sua discografia, explicava que a Impulse! pode hoje ser descrita como “a casa que Shabaka mantém”, referindo-se, obviamente, à expressão que o escritor Ashley Khan usou para título do seu tratado histórico sobre o selo fundado por Creed Taylor, The House That Trane Built. Neste reinventar do selo que agora celebra seis décadas de existência, Shabaka Hutchings revelou-se o elemento central da estratégia: além dos Sons Of Kemet, que se estrearam na etiqueta tão facilmente identificável pela sua combinação gráfica de laranja e negro com o já mencionado Your Queen Is a Reptile, em 2018, também os The Comet Is Coming (The Afterlife e Trust in the Lifeforce of the Deep Mystery, ambos de 2019) e Shabaka and the Ancestors (We Are Sent Here By History, 2020) conquistaram espaço no mesmo catálogo que resguarda históricas gravações de gente como Albert Ayler, Max Roach, Charlie Haden, Ahmad Jamal, Charles Mingus ou, como já referido, John Coltrane.

Como é óbvio, Shabaka Hutchings não conquistou espaço na Impulse! por uma simples questão de visibilidade derivada do hype que parece rodear a cena de que é um dos protagonistas principais. A seriedade e profundidade do seu som traduzem uma entrega sem reservas a uma prática artística que espelha a sua construção de uma identidade própria: ao jornalista Marcus J. Moore, num revelador artigo para a Esquire, Shabaka relata um percurso académico desenhado entre Birmingham, Barbados e Londres, marcado pelo tom da sua pele e pela sua própria vivência cultural, cristalizado num desafiante percurso académico que o levou a estudar ao nível universitário os modos clássicos do clarinete, o seu primeiro instrumento, e no circuito live de jazz a aprimorar os seus skills no saxofone tenor em incontáveis jams ou através de sistemas paralelos de ensino, como os Tomorrow’s Warriors, colectivo que lhe permitiu cruzar-se com gente como Nubya Garcia ou Theon Cross.



Isso levou-o a tocar em múltiplos contextos: afrobeat com Oyetoro e Funsho Ogundipe, ethiojazz como parte dos Heliocentrics num histórico encontro com Mulatu Astatke, jazz cruzado com hip hop como sideman de Soweto Kinch e tantas outras linguagens quanto as que podem ser encontradas na música de artistas tão diversos como Yazz Ahmed, Jonny Greenwood, Anthony Joseph, Sarathy Korwar, Yussef Kamaal ou Makaya McCraven e Angelique Kidjo. É nítido que Shabaka Hutchings não reconhece limites ou fronteiras para a sua expressividade. E isso percebe-se quando se mergulha no novíssimo Black To The Future.

As três mais activas “frentes de combate” de Shabaka Hutchings assumem caracteres musicais distintos: os The Comet Is Coming são um power trio cósmico que faz colidir o sopro vital de Hutchings com a electrónica da dupla formada por Max Hallett e Dan Leavers; Shabaka and the Ancestors é o resultado do encontro do saxofonista britânico com uma série de músicos sul-africanos; e com os Sons Of Kemet é o particular pulsar das Caraíbas, consequência de uma diáspora sofrida e de um devir histórico particular, que funciona como fundação primeira de um som que a espaços traduz de forma orgânica outros modos, porventura mais modernos, como o dancehall ou o dub.

Com “Field Negus” e as palavras de Joshua Idehen em modo de sentido lamento, o álbum arranca em tom solene, com um dramático relato da condição negra vítima de opressão sistémica: “one knee on my back, one knee on my lungs”. Os sopros que circulam o emocional crescendo de Idehen desenham uma sentida moldura para o seu sombrio retrato: e há aí uma participação digna de nota, do veterano saxofonista britânico Steve Williamson, forma clara dos Sons Of Kemet declararem que a “modernidade” do jazz britânico e a sua abertura na comunicação com outras linguagens vem já de muito longe. Quando a dupla de artistas americanas Moor Mother e Angel Bat Dawid surge em “Pick Up Your Burning Cross”, a tuba de Theon Cross já impõe ao relato um tom mais urgente e pulsante com as baterias desenharem um impulso marcial sobre o qual a poetisa que também responde ao nome Camae Ayewa urge quem a escuta: “peguem na vossa cruz ardente”. As frases curtas de Shabaka no saxofone parecem gritos, adoptando ao mesmo tempo o tom “discursivo” das músicas das ilhas, soando ao que se poderia escutar num desfile de carnaval. É ainda o sabor dessas ilhas que adorna “Think of Home”, tema com balanço tropical de cadência caribenha, num mais doce momento de beleza reflexiva. Há outras vozes no álbum: “Hustle” coloca o rapper britânico Kojey Radical no centro da acção, com Theon Cross a assumir o “bottom line” num tema que parece, apesar de ritmicamente moderado, convocar uma força capaz de mover montanhas. Ou continentes inteiros. D Double E é o outro vocalista recrutado, que insufla barras em “For The Culture”, um exercício de aproximação ao dancehall em que o toaster encaixa na perfeição e em que surgem também Cassie Kinoshi, dos Kokoroko, e o irmão de Cross, Nathaniel, no trombone. Mais à frente, Idehen fecha o álbum com o irónico “Black” – “black is tired” – em que às suas palavras é aposta uma caótica cacofonia de onde emergem significantes riffs de Hutchings, num elíptico final que é emoção em estado puro e concentrado.

Pelo meio, o quarteto expõe outras ideias e emoções: há uma fanfarra de percussões carnavalescas na base de “In Rememberance of Those Fallen”, mas o solo de Shabaka é poético e carregado de expressividade. Já “Let The Circle Be Unbroken” é espaço para novo regresso às ilhas com o uníssono harmónico de Shabaka e Theon a encher de luz tropical um disco que se move pelas sombras da história a maior parte do tempo. É de força colectiva que se faz este Black To The Future, um trabalho que pode nascer no jazz mas que tem na sua mais profunda fórmula muitas outras ideias, da música clássica a múltiplos ritmos urbanos, das ilhas das Caraíbas ao amplo espaço do espírito. Há um mundo que precisa de ser mudado e a música pode e deve ser uma ferramenta dessa transformação. Shabaka Hutchings parece acreditar nisso: “O que significa ser negro em qualquer um dos centros de opressão? Temos que trazer esse assunto para a discussão e arranjar forma de avançar com isso”, declarou ele à Esquire. Lá chegaremos todos, um dia.


* O disco está disponível na Jazz Messengers Lisboa.

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