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Ilustração: Riça
Publicado a: 17/03/2020

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #4: Shabaka and the Ancestors / Pharoah Sanders / Luís Lopes Humanization 4tet

Ilustração: Riça
Publicado a: 17/03/2020
Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.
[Shabaka and the Ancestors] We Are Sent Here By History / Impulse Em tempos, a Impulse! foi descrita como The House that Trane Built. Olhando para o catálogo do último par de anos, em que as únicas edições contemporâneas pertencem aos Sons of Kemet e The Comet is Coming, não será um exagero pensar que a partir de agora, sobretudo com a adição às suas fileiras de Shabaka and the Ancestors, o mesmo histórico selo poderá reclamar novo classificativo: “The House That King Shabaka Rebuilt”. Em conversa com o New York Times a propósito do novíssimo We Are Sent Here By History (trabalho que sucede a Wisdom of Eldersque foi lançado pela Brownswood de Gilles Peterson em 2016), Shabaka parece acertar em cheio no momento presente quando defende que “temos que começar a articular as nossas utopias, a articular o que precisa de ser destruído e o que precisa de ser resgatado”. Em pleno momento de crise pandémica global e de emergência climática, a ideia de que se pode pensar neste ponto de viragem da História como uma oportunidade para evoluirmos não é nada descabida, antes pelo contrário. E essa é uma novidade que o saxofonista londrino trouxe ao panorama contemporâneo de jazz: uma renovada perspectiva humanista, espiritual e política, um discurso engajado, comprometido com o futuro, mas agudamente consciente do lastro histórico que o género carrega. Estes Ancestors divergem dos outros colectivos em que Shabaka é parte activa por estarem baseados na África do Sul, mais especificamente em Joanesburgo e no Soweto. Com o poeta Siyabonga Mthembu, o baixista Ariel Zamonsky, o baterista Tumi Mogorosi, o percussionista Gontse Makhene e o saxofonista alto Mthunzi Mvubu (além dos participantes pontuais Nduduzu Makhathini e Thandi Ntuli, ambos pianistas, e ainda Mandla Mlangeni, trompetista), Shabaka Hutchings, líder e compositor de serviço, construiu uma espantosa reflexão sobre a História, que parte do legado mais espiritual do jazz ao encontro de um futuro de novas possibilidades que passam pela recontextualização de bagagens culturais específicas (se nos Sons of Kemet a experiência da infância passada em Barbados representa um papel, no caso de The Comet Is Coming será a cultura de clubes londrina a fornecer os principais azimutes do discurso musical). Com estes Ancestors, Shabaka vai mais fundo, como explica ao New York Times: “Estamos a falar acerca de estruturas imaginativas, estamos a falar sobre como entendemos as coisas e como processamos a informação que nos é dada – como nos vemos no sentido de como nos relacionamos com a história”. Musicalmente, isso significa uma consciência da espiritualidade explorada nas obras de Sun Ra, da família Coltrane, de Archie Shepp ou Pharoah Sanders (Thembi há-de, certamente, ter sido uma referência: também tem saxofone alto e tenor, embora ambos assegurados por Sanders, percussão, baixo e piano…), mas também uma muito clara ideia do contexto presente, do trabalho que tem sido feito por uma nova geração para ancorar o jazz não no dogma, mas nas inúmeras possibilidades abertas pelo escancarar de fronteiras entre géneros, entre culturas, entre experiências. E isso garante que We Are Sent Here By History se apresente como uma intrincada tapeçaria de palavras de forte intensidade ideológica e espiritual (questiona-se a masculinidade tóxica, mas também se exalta a liberdade, a capacidade de tecer o próprio destino) com música em que a secção percussiva assume o tremor da própria Terra ao passo que o baixo se ergue como elemento de exposição melódica em vários momentos-chave (“Behold, The Deceiver” é um deles), com os dois sopros a terem espaço para colorirem harmonicamente as composições, nunca temendo a delicadeza lírica ou o fogo da mais pura invenção. E, claro, a rica tradição musical sul-africana, um dos pilares à resistência ao apartheid, é igualmente evocada, sobretudo as aproximações ao jazz que tão incríveis resultados garantiram no passado e que aqui rendem uma distinta declinação rítmica e harmónica. Shabaka Hutchings está em plena forma e dos seus registos de estúdio este é provavelmente aquele em que vai mais longe no seu saxofonismo, impondo uma voz própria no instrumento, facto a que não será alheio o trabalho de sombra e impulso que é feito por Mthunzi Mvubu no alto (ouça-se, por exemplo, “Go My Heart, Go to Heaven”). Começa a ficar claro que Shabaka Hutchings é uma das mais vitais forças que o jazz encontrou no presente, precisamente porque não teme olhar para lá das suas fronteiras em busca de novos territórios, novas ideias e novos estímulos. Novas Histórias.
[Pharoah Sanders] Live in Paris (1975) / Transversales Disques A Transversales Disques é uma incrível editora francesa fundada por Jonathan Fitoussi e Sébastien Rosat focada em resgatar para o presente inéditas gravações de arquivo. Com um catálogo em que se registam entradas de trabalhos de Bernard Parmegiani, Alessandro Alessandroni, François de Rubaix, Ennio Morricone, François Bayle, Philip Glass, Igor Wakhevitch, Ariel Kalma ou Luc Ferrari, é fácil concluir que é nos terrenos da vanguarda, da electrónica e da música concreta e experimental que se situam os seus interesses pelo que a edição de uma gravação inédita de Pharoah Sanders não deixa de constituir uma (agradável) surpresa. Gravado ao vivo em Paris em 1975 no Grand Auditorium / Studio 104, com um quarteto em que militavam Danny Mixon no piano e órgão, Greg Bandy na bateria e Calvin Hill no baixo, este concerto tem a particularidade de documentar um período de transição na carreira do saxofonista que então terminava uma frutuosa ligação à Impulse! (editora para que tinha registado seminais obras do eixo spiritual-free jazz como Thembi, Black Unity ou Village of the Pharoahs ou Elevation) e se preparava para rumar à Theresa Records, selo em que inscreveu meia dúzia de registos nos anos 80. Ao seu lado, Sanders tinha músicos com bagagem séria: o contrabaixista Calvin Hill tinha tocado com McCoy Tyner ou Byard Lancaster e participado nas sessões de Village of the Pharoahs e Elevation em 1973 e 1974; o baterista Greg Bandy era ainda um jovem em início de carreira que haveria de participar, no ano seguinte, nas sessões do álbum Pharoah(India Navigation Records), mas com talento suficiente para ter sido descoberto por Charlie Mingus três noites depois de chegar a Nova Iorque, no arranque dos anos 70; e, finalmente, o pianista Danny Mixon, parte do projecto The Piano Choir (que gravou dois álbuns para a Strata East) ao lado de lendas como Webster Lewis ou Stanley Cowell e que haveria, depois deste gig de Paris, de gravar com gente como Betty Carter ou Charles Mingus. Quarteto de estrada, certamente, mas ainda assim com sólidos argumentos, como a fantástica gravação agora disponibilizada numa edição cuidadosamente anotada demonstra. No alinhamento há dois clássicos inequívocos do “cancioneiro” de Pharoah Sanders, a enorme “The Creator Has a Masterplan” (peça central do celestial Karma, de 1969) que aqui tem uma extraordinária versão de quase nove minutos, com Sanders a “gritar” a plenos pulmões para que as entidades divinas o escutem, amparado pelo sólido trabalho de Calvin Hill e pelo piano de colorações latinas de Danny Mixon. “Love is Everywhere” fecha o alinhamento com idêntico fôlego temporal: trata-se da peça que dominou o lado A de Love in Us All, álbum que Pharoah gravou para a Impulse em 1974 com Cecil McBee, Norman Connors, Mtume e Joe Bonner. Além desses dois icónicos temas, este concerto de Paris teve ainda espaço para duas partes de “Love is Here”, composição que Sanders só editaria em 1978, no álbum Love Will Find a Way, para o tema “I Want to Talk About You”, melodia de Billy Eckstine que Coltrane gravou em 1958 no clássico Soultrane, e ainda o inédito “Farrel Tune”. Sanders estava relaxado nesta noite de 17 de Novembro em Paris, sem problemas para ceder espaço aos jovens que o ladeavam, mas pronto para, sempre que entrava em cena, trazer toda a autoridade que o seu nome traduzia, com um som feito de eloquência e majestade em doses idênticas. Apoiado por grooves sólidos, impulsionado pelo público entusiasmado (a única indicação de que esta não é uma data de estúdio e que a gravação de excelente qualidade foi obtida em concerto) e pela segurança do trio base (o piano de Danny Mixon assegura o essencial do contexto melódico e harmónico), o mestre tem toda a liberdade para voar, para soltar fogo, espalhar amor e devoção, para ser espiritual e visceral quando necessário, com um tom redondo e pleno, aberto à abstracção e fundo como o tempo. Esta será, sem a menor sombra de dúvida, uma das melhores edições de arquivo que 2020 registará.
[Luís Lopes Humanization 4tet] Believe, Believe / Clean Feed Este é já o quarto registo do Luís Lopes Humanization 4tet, sucedendo a Live In Madison, editado no já distante ano de 2013 na Ayler Records. Believe, Believe marca o reencontro do quarteto com a portuguesa Clean Feed, editora em que se estreou esta aventura em 2008. A ladear o líder Luís Lopes estão, como sempre, o saxofonista tenor Rodrigo Amado (a quem dediquei a primeira edição desta coluna Notas Azuis) e os irmãos texanos Aaron e Stefan Gonzalez em contrabaixo e bateria, respectivamente. Os quatro têm uma longa experiência de mais de uma década de regulares gigs em conjunto, todos se conhecem bem, mas ainda assim não é displicente recordar que este é um encontro transatlântico e que, de certa forma, o Humanization 4tet tem sempre implícita a nobre missão de desbravar terreno de ninguém: situado entre línguas e tradições, entre continentes e práticas, entre diferentes realidades culturais e económicas, a música que o 4tet tem vindo a criar resulta dessa ambição sempre entusiasmante de construção de um lugar novo de ideias e sons, de diálogos num esperanto permanentemente reinventado. E este Believe, Believe mostra o nível de refinamento a que essa interacção quadripartida já conduziu. Gravado ao vivo em frente de uma audiência em finais de Junho de 2018 no estúdio Marigny de Nova Orleães, o álbum arranca com uma espécie de declaração de intenções de Rodrigo Amado, a deixar claro que conhece bem as dinâmicas bop antes de se atirar para dentro da fogueira colectiva munido com um saxofone feito de combustível altamente inflamável. O grupo é, francamente, imparável: os irmãos Gonzalez tocam como se estivem numa permanente cena de perseguição filmada por Hitchcock para as sequências de sonho em Spellbound, obviamente com os próprios carros desenhados por Salvador Dali; e Luís Lopes arranca os mais estridentes clamores da sua guitarra, tocada com uma técnica ampla, que se espraia entre o ruído e a expressividade mais convencional, capaz de ser veludo e lixa abrasiva. Como se percebe claramente na recta final de “Eddie Harris / Tranquilidad Alborotadora” (duplo tema que inclui a homenagem ao saxofonista tenor que escreveu “Freedom Jazz Dance” da autoria de Bill Lee e um original assinado pelo baterista Stefan), este quarteto humanizado é absolutamente desprovido de temor, tenaz quando encarrila numa direcção, focado e capaz dos mais obtusos repentes a que é muito difícil resistir fisicamente numa escuta atenta – o que esta música exige aos seus executantes parece igualmente impor aos seus ouvintes: entrega incondicional. As composições originais são repartidas entre o líder, Amado e os dois irmãos Gonzalez, sinal de um espírito de democrática partilha que sustenta aliás o som colectivo que se faz de nervo individual, claro, mas também da capacidade partilhada de escuta e do desafio mútuo de superação. Certamente que não havia camisa seca em nenhum dos quatro corpos aqui entregues à livre descoberta no final desta sessão e não há-de ter sido apenas por possivelmente ter estado quente naquele final de Junho em Nova Orleães…

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