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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 23/11/2020

O melhor ficou para o fim.

Som Riscado’20 – Dia 4: uma despedida majestosa com as texturas e linhas de Joana Gama, Luís Fernandes e Drumming GP

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 23/11/2020

Para o encerramento do programa do Som Riscado – Festival de Som e Imagem de Loulé ficou reservado o melhor concerto, a apresentação do trabalho Textures & Lines por parte de Joana Gama, Luís Fernandes e pelos membros do Drumming GP, Miquel Bernat, João Tiago Dias e Rui Rodrigues que contou ainda com uma extraordinária envolvência visual assinada por Pedro Maia e com som operado por Suse Ribeiro. E é de facto importante mencionar o nome de todos os envolvidos pois este é um trabalho feito de detalhes para que certamente concorrem os músicos que pisam o palco, mas também quem fora dele se responsabiliza pelo que os nossos olhos veem e pelo que os nossos ouvidos escutam. E ontem, no Cineteatro Louletano, tudo foi perfeito.

É igualmente importante reforçar a ideia do quão importante são estas iniciativas nestes tempos, mas também nestas geografias. Concertos como este ou como o que Victor Gama também apresentou no âmbito deste Som Riscado traduzem visão e ambição artística, mas também vivem de condicionantes logísticas, humanas e técnicas que os obrigam a este tipo de enquadramento mais, digamos, institucional, que dependem de orçamentos de instituições com natural interesse pelo serviço público. A tal “responsabilidade cultural” que se debateu logo na jornada de arranque do Som Riscado e que se revela ainda mais crucial numa altura em que o país volta a fechar-se para se defender dos efeitos desta pandemia. Sem referências, anda-se à deriva. E sem referências sólidas no plano cultural corremos todos o risco de perdermos o norte e o sul e todos os outros pontos cardeais que nos definem e que nos mantêm firmes na nossa rota, pessoal, mas também nacional ou geracional.

O Som Riscado assegurou o encontro de crianças com projectos desafiantes como o Pianoscópio da Companhia Musical Teatral (no Convento de Santo António) ou o Phobos da Sonoscopia (no bar do Cineteatro Louletano); ajudou estudantes a pensarem na construção de instrumentos numa oficina comandada por Victor Gama no Palácio Gama Lobo e permitiu que quem frequenta a Escola Secundária de Loulé fosse guiado por Rodrigo Carvalho do projecto Boris Chimp 504 nos meandros do processamento; meteu alunos do curso de Imagem Animada da ESEG-UALG a aplicarem as suas capacidades de criação em espectáculos reais que decorreram no Auditório do Solar da Música Nova; ofereceu à população geral a possibilidade de apreciar instalações complexas que nos expandem a todos a relação com o universo dos sons; abriu espaços na programação para projectos musicais locais e ainda promoveu o encontro de criadores da região com artistas com ampla experiência nacional e internacional. Ora, somando a isso a apresentação de um conjunto diverso e estimulante de concertos o resultado final só pode ser extremamente positivo. O futuro cria-se assim, pensando e programando no presente.

E, portanto, a apresentação do trabalho Textures & Lines de Joana Gama, Luís Fernandes e do Drumming GP, que no início do ano mereceu edição por parte da Holuzam, representou o melhor corolário possível para cinco dias de intensa vivência cultural em Loulé.

O arranque deu-se num palco envolto em penumbra em que se vislumbravam cinco figuras que pareciam capazes de fazer vibrar o mundo, pelo menos aquele mundo de instrumentos sonoros que se dispunha em palco: os gongos, em primeiro lugar, mas também as entranhas do piano ou as lâminas do vibrafone, tudo matéria vibrante da qual se extraiu um envolvente manto harmónico que logo nos submergiu. Sobre a música, escrevi em Março passado que “Textures & Lines faz plena justiça ao título exactamente por explorar essas duas ideias como forças estruturantes das composições: há longas derivas ambientais para que tanto contribuem os drones criados electronicamente por Luís Fernandes como as partículas em suspensão extraídas dos diversos instrumentos de percussão; mas também há linhas melódicas de recorte minimal executadas ao piano ou assomos de abstracta propulsão rítmica que resultam de uma perfeita conjugação de motivos sequenciados electronicamente, de subtis colorações pianísticas e de camadas percussivas”. O que foi inicialmente registado em trabalho de estúdio e que rendeu aquele que será certamente um dos melhores trabalhos discográficos deste ano prolonga-se nesta apresentação ao vivo que nos desenhou um belíssimo e quase sempre sereno lago de ondas harmónicas sobre o qual Joana Gama foi deixando cair minimais e expressivas notas de piano, como gotas de chuva que assim se unem com as águas do lago.

Com a electrónica de Luís Fernandes a sugerir direcções, as marimbas foram capazes de soar como gamelões, gongos e os seus suportes foram transformados em matéria vibrante com arcos, o piano mostrou-se, uma vez mais, como fonte inesgotável de sons, criados a partir do teclado que percute as cordas ou do seu próprio interior, houve aproximações ao ambientalismo exótico de Brian Eno ou a uma espécie de techno desconstruído e amputado da sua mais vincada marcação rítmica, com a música a soar sempre como uma criação que ambiciona acercar-se do silêncio. E por cima de toda essa riqueza sonora sabiamente “orquestrada” a partir da mesa de mistura por Suse Ribeiro, impôs-se o ambiente que Pedro Maia criou, abstracto e psicadélico, com formas difusas – texturas… – criadas com óleo sobre vidro, pinceladas de cor, linhas complexas e depois progressivamente simples até a um final em que ao silêncio correspondeu a escuridão. O resto, compete-nos a nós sonhar.

Em Abril último, a propósito da edição de Textures & Lines, Miquel Bernat dizia-nos, numa entrevista em que também se escutaram as vozes de Joana Gama e Luís Fernandes, que “nos anos 60 e 70, o rock abraçava uma ideia ‘sinfónica’ e artística da música, os primeiros álbuns dos Genesis, King Crimson, Pink Floyd, Yes…. estes grupos procuraram priorizar e deixar-se ir pela imaginação em vez das regras comerciais: uma bateria/ritmo constante, uma duração de 3’30’’…, neste disco, salvando as distâncias e o tempo percorrido, penso que voltámos a pegar nestes ideais e nessa liberdade. Não nos sentimos pressionados pelo ‘sistema’ porque este nos ignora, e por isso podemos assumir estes riscos e liberdades. Espero que aqueles que oiçam estas músicas sintam esta viagem da mesma maneira que nós a sentimos”. Texturas e linhas ou riscos e liberdades como ideias orientadoras para uma “viagem”…

O Drumming GP, a pianista Joana Gama e o “modulista” Luís Fernandes corresponderam à expectativa e mostraram-se mais do que capazes de fazer corresponder um espectáculo de excelência a um dos mais marcantes registos discográficos do presente calendário, um triunfo que merece um futuro certo e seguro, uma referência para que todos os que viajamos nestas águas incertas não nos esqueçamos do rumo que importa seguir.

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