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Slow J

Afro Fado

Sente Isto / 2023

Texto de Margarida Valença

Publicado a: 11/12/2023

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Já antes do mais recente álbum de Slow J estar disponível, o seu título previamente anunciado – Afro Fado – poderia só por si alimentar expectativas sobre o que estaria para vir. Vários artistas têm materializado, em diversos géneros, sonoridades e narrativas, propostas de uma reinvenção daquilo que é a identidade nacional, em que as fronteiras entre aquilo que é recente e tradicional, ou o que tem origens africanas ou portuguesas, se esbatem numa mistura. Tendo este panorama no ar, o Afro Fado de Slow J conseguiu a proeza de, ao mesmo tempo que se assume com o propósito de celebrar esta fusão, não cair nos clichés ou lugares comuns previamente propostos, e apontar a seta ainda para mais longe, com uma mensagem bastante arrojada e até simples — a de que, afinal, tudo isto é a mesma coisa.

Estas ideias, ainda assim, não são novas no trabalho de Slow J, e já as pudemos ouvir noutros trabalhos no passado, tanto o uso da guitarra portuguesa ou até o recurso a afrobeats, bem como uma alusão a uma ideia de mistura sem grandes bandeiras ou complexidades, como podíamos ouvir em “Casa”, no álbum The Art of Slowing Down — “Para quê complicar / Lá em casa qualquer cor dá / Mistura e música / Esse é o meu fado / Esse é o meu semba”.

Apesar de manter o mesmo carácter pessoal, honesto, quase confessional a que nos habituámos nas letras de Slow J, há aqui um certo esticar para fora, tanto num ritmo mais energético que consegue equilibrar uma certa melancolia com um mood mais festivo, como com uma narrativa mais virada para fora e para o coletivo, sendo uma alusão a um país, às suas gentes e à sua geração, propondo um olhar diferente e mais positivo de Portugal, sugerindo que se dê mais valor pelo que temos, tal como podemos ouvir em “Pirâmide” — “Deus nos ajude com as falhas na nossa visão / E guie quem sofre pra essa divisão / Pois bem desse clube eu assino a minha rescisão / Pagar essas contas não é cumprir a minha missão.” Que os diferentes tons, contextos culturais, ritmos e vivências possam significar que possamos aprender e enriquecermo-nos mutuamente, em vez de ficarmos presos a uma visão estanque, desatualizada e incoerente sobre aquilo que significa ser daqui, como podemos ouvir em “Nascidos e Criados”, que conta com a participação de Teresa Salgueiro — “Tuga é retangular, os lados foram imaginados / Ainda ‘tô pra encontrar quem ande à chuva e não se molhe / Quem não colhe o que antepassados deixam semeado”.

É altamente simbólica a capa do disco, que pode dar azo a bastante discussão e interpretação. É curioso que um álbum que Slow J diz ser a música que se faria numa terra prometida do futuro onde a cor da pele é uma coisa já sem importância, como podemos ouvir em “Terra”, com uma letra genial, fazendo um plot twist do que significa o “vai para a tua terra” — Eu quero voltar pa minha terra / Onde em casa me senti, nunca fui lá / Quero que a minha terra volte / E não entendo porque que ela não volta” —, tenha afinal uma capa do nosso passado, com Amália Rodrigues e Eusébio da Silva Ferreira num gesto entusiasta de reconhecimento mútuo. Gesto esse sob o guarda-chuva de um Portugal colonial durante o Estado Novo que procurou instrumentalizar tanto a imagem de Eusébio como uma prova de um país multicultural, quando contribuía para a disseminação de um racismo cultural e institucional generalizado, como a de Amália, que tanto fora usada no tempo do Fado, Fátima e Futebol, projetando uma imagem de Portugal que seria instrumentalizada pelo regime para encobrir os vários males que aconteciam no país.

Tendo esse contexto em mente, não deixa de nos passar pela cabeça um certo vazio que reside numa narrativa que se pretende afirmar como celebrativa de um país misturado, em que culturas e tons de pele diferentes se juntam numa fusão desprendida de etiquetas ou caixas fáceis. Entre o sonho de um futuro diferente e a dimensão daquilo que é real, nomeadamente num tempo em que o discurso de ódio está muito presente no espaço público, em que há desigualdades sociais que urgem ser resolvidas, existem tensões sociais e narrativas em voga que nos limitam coletivamente para podermos chegar a esse ponto. Há incompreensões, silêncios e omissões que precisam de sair de debaixo do tapete e ganharem forma, podendo até causar algum desconforto. Será o sonho suficiente para nos levar a um novo rumo?

Por outro lado, olhando para a capa novamente, não deixa, ainda assim, de ser pura e simplesmente o retrato de dois grandes seres humanos que indiscutivelmente foram e ainda são símbolos de um povo, que carregaram Portugal às costas, cada um no seu campo, e que representam do melhor que Portugal teve na música e no desporto, a cruzarem-se e cumprimentarem-se — um momento de “Grandeza” (nome do single de Slow J que acabou por ficar de fora do álbum). Duas pessoas de origens e percursos diferentes — Eusébio, vindo de Moçambique, e Amália de Portugal — que se encontram e reconhecem, num momento com uma certa magia.

E esse é o ponto de partida daquilo que Slow J consegue trazer com este seu Afro Fado: um olhar na fibra do que é simplesmente ser humano. É por isso que, acima de tudo aquilo que podemos ouvir, é a visão de uma pessoa, com as suas falhas, desencontros, ambições e desilusões, a mostrar o que é o seu sentir e como ele se reflete no seu todo. Desde a música eleita para servir de boost de motivação para dar uma corrida ou ir para o ginásio “Where U @” — ”’Tou no meu bairro a treinar pa correr o mundo / Minha perna tá feeling good / Cardio ’tá no ponto, ‘tive a trabalhar no groove” —, aos solavancos de uma relação amorosa que podemos ouvir em “Ultimamente” — “ Ultimamente acordo a levar na cabeça e adormeço a levar nos cornos / Nem sei se existe alguém que mereça metade daquilo que nós fomos”.

Extravasando géneros musicais, sendo até por vezes imperceptível que sonoridades se cruzam numa música, Slow J, juntamente com os irmãos GOIAS, que produziram o álbum, conseguiu realmente uma fusão única, em que o hip hop, a kizomba, afrobeats, a guitarra portuguesa, ou o batuku se juntam numa amálgama coesa e consistente. Poético e simples, com um flow rítmico aliado a uma ótima prestação vocal. Não é por acaso que este álbum ainda agora foi lançado e já está a quebrar tantos recordes, com um Altice Arena esgotado para dia 8 de março (e uma segunda data já aberta…), tendo sido o álbum nacional mais ouvido de sempre no primeiro dia após o lançamento, e ainda foi o primeiro disco português a entrar no top mundial de estreias no Spotify.

Afro Fado é uma terra prometida onde se pensa na “cor da pele como a cor da capilar”, como podemos ouvir em “CorDaPele”, terra essa que já é fruto das sementes do presente, das trocas e misturas da qual o próprio Slow J também é feito, tendo um pai angolano e uma mãe portuguesa, e do Portugal cuja terra é “cor de xadrez”, como ouvirmos em “Origami”, a música que fecha o álbum com a participação exímia de Gson, num registo vulnerável e poético como nunca antes visto. Afro Fado é o espírito de Slow J e um lugar onde as diferenças acrescentam valor e tornam-nos melhores. Qual o caminho até lá chegar?


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