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Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 24/05/2025

Um artista numa busca delicada.

Shabaka no B.Leza: no princípio era o som

Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 24/05/2025

O novo Shabaka não é inteiramente do agrado de toda a gente e há quem não tenha pejo em afirmar que a direcção que o (para já, pelo menos) ex-saxofonista e líder dos entretanto extintos The Comet is Coming e Sons of Kemet (não há certezas se as notícias do óbito dos Ancestors não serão exageradas…) segue actualmente é deveras aborrecida. É compreensível que quem opte por ligação directa ao espírito e por sintonia funda com a terra possa ser incompreendido por quem prefira manifestaçôes mais físicas e vulcânicas e que, por isso mesmo, sinta já saudades dos cáusticos riffs e ferozes uivos que Hutchings em tempos conjurava através do seu tenor. Mas será um erro pensar que não há urgência, fogo e fisicalidade na música que Shabaka tem vindo a apresentar num interessante processo de reinvenção desde que lançou Afrikan Culture em 2023 — trabalho a que depois deu continuidade com os belíssimos Perceive Its Beauty Acknowledge Its Grace e Possession (ambos de 2024). Embora se manifeste sobretudo (já lá iremos) em planantes meditações, a música livremente improvisada pelo flautista — como tão bem demonstrou na passada quinta-feira (22 de Maio) com o seu concerto no lisboeta B.Leza — também não se escusa ao sobressalto e à dança quando ele pousa as flautas e cozinha pesados ritmos em tempo real a partir da sua parafernália electrónica.

Antes de Shabaka subir ao palco, as pessoas já posicionadas diante do palco na sala que haveria de encher puderam escutar Haydn Douet Lukies, percussionista britânico que agora reside em Lisboa e que massajou os ouvidos presentes com uma planante apresentação do seu exótico e altamente ressonante instrumento de latão que foi percutindo com as suas mãos gerando um som rico em harmónicos que envolveu a audiência como um fino manto. Preliminar perfeito para o que se seguiu.



Shabaka falou com o público: explicou, por exemplo, que uma flauta de barro que tocou foi construída a partir de representações encontradas em templos Maias e que se desconhece a que soariam as flautas originais ou que propósito, que rituais serviriam; noutro momento referiu-se aos sons processados de pássaros que serviram de base à primeira e mais meditativa parte da sua apresentação e disse que pensa muitas vezes como soariam os pássaros no tempo da escravatura. No fundo, o que o músico britânico nos confessava é que a sua música resulta de procura, de busca de uma sintonia com um mundo mais remoto em termos temporais, menos contaminado pela modernidade, uma postura que temos visto ser adoptada por outros artistas, de Amaro Freitas a Nduduzo Makhathini, por exemplo.

A proficiência técnica de Shabaka não é semelhante em todas as flautas — e ele deve ter tocado perto de 20 durante a sua performance. A sua fluência nas flautas japonesas é assinalável, mas o músico não teme, noutros momentos, eleger outros instrumentos que se percebe imediatamente estar ainda a descobrir. Num momento em que há vozes que se erguem para atacar artistas que ousam expressar-se com ferramentas que não dominam, tal gesto dá que pensar. Deverá uma criança ser impedida de falar até dominar as regras da gramática e da correcta pronunciação e dicção das palavras? Comida para o pensamento…

A dada altura, tendo em conta o tom meditativo e espiritual (palavra de que tanta gente tem medo quando aplicada em contexto jazz) da primeira parte da sua performance, Shabaka começou a programar beats na sua MPD, aumentando o tempo e a pressão rítmica consideravelmente, quase como se nos quisesse confrontar com linguagens contrastantes. Os corpos presentes reagiram imediatamente e uma suave ondulação física foi-se instalando entre as pessoas. 

Neste concerto, Shabaka deixou mais uma vez muito claro que é um artista que importa seguir e que tem a generosidade (coisa rara, na verdade) de nos convidar a sermos testemunhas do seu processo evolutivo, da sua dedicada busca, apresentando, sem a necessidade de grandes discursos teóricos, um válido argumento a favor da música como um processo de libertação e esvaziamento interior. Uma fuga não para a frente, mas para o princípio.


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