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Fotografia: Atiba Jefferson
Publicado a: 19/05/2025

Dos ferozes riffs em ensembles à espiritualidade a solo.

Shabaka: “Eu precisava mesmo de ter tempo e espaço para solidificar a minha visão da música”

Fotografia: Atiba Jefferson
Publicado a: 19/05/2025

No concerto que assinará esta quinta-feira, dia 22 de Maio, no B.Leza, em Lisboa, Shabaka estará sozinho em palco com as suas flautas e alguma electrónica. Curiosamente, após Nduduzo Makhathini — amigo e colaborador regular de Shabaka em diferentes contextos — ter mencionado, no decorrer do seu concerto em Espinho na passada sexta-feira, o valor do “esvaziamento” e a importância de largar o lastro que se carrega, o músico britânico apresenta-se entre nós numa fase de total depuração — das questões de ego que se insufla quando se sobe ao palco enquanto líder de um ensemble, mas também de outros aspectos mais espirituais e até práticos. Se tal opção resulta musicalmente ou não é o que precisa de se entender no concerto que aí vem, uma vez que há quem tivesse preferido ouvir Shabaka a reter não só o apelido Hutchings como a ferocidade dos seus riffs em projectos como os The Comet is Coming e Sons of Kemet. Perceive Its Beauty, Acknowledge Its Grace e Possession já sinalizam de forma clara o que Shabaka pretende agora explorar em termos de sonoridade, mas nesse primeiro registo mencionado o seu discurso era ainda integrado numa acção colectiva que agora abandona em favor de uma plena concentração nas suas capacidades individuais.

Em conversa via Zoom, um sorridente Shabaka antecipou a sua vinda a Lisboa, explicou o que está na base da sua devoção à flauta e ainda abriu algumas janelas para o seu futuro — artístico e editorial — mais próximo.



Presumo que vá tocar material do Perceive Its Beauty, Acknowledge Its Grace ou do Possession. Ou será um set totalmente improvisado?

Eu vou tocar algumas coisas do Perceive Its Beauty, Acknowledge Its Grace, mas também algum material novo. Estou neste momento a meio do processo de criar um novo disco. A forma como eu gosto de fazer as coisas… Não sou propriamente um fã de fazer um disco e só tocar os seus temas depois do disco sair. Mal tenho o material pronto, incluo-o no meu set para que ele possa ser o melhor possível. Assim que eu sinto que uma música pode ter impacto no alinhamento, ela passa a integrar o set. Portanto, sim, provavelmente irei tocar algumas coisas novas. E as pessoas que me seguem nas redes sociais vão reconhecer algumas dessas faixas, porque eu tenho-as partilhado.

Li entrevistas em que refere que a sua decisão de deixar o saxofone em deterimento das flautas foi puramente artística. Mas, ao mesmo tempo, isso também veio colocar um ponto final nas suas bandas. Agora viaja sozinho com algumas flautas e apetrechos electrónicos, o que me parece uma opção bastante perspicaz, dado o quão difícil se tornou andar em digressão nos últimos anos, em termos económicos.

Sim. Andar em digressão com uma banda é realmente um esforço muito custoso. Daqueles que nos faz pensar no que é que queremos oferecer: o que importa é o ensemble ou é a música? A música pode vir em diversas formas e, para mim, o formato a solo permite-me dizer aquilo que eu quero enquanto indivíduo. A parte financeira é uma das coisas que entraram na discussão que me levou a actuar sozinho, mas o maior factor foi mesmo o eu poder transmitir a minha visão individual. Portanto, se eu posso ter espectáculos e álbuns a solo, em que eu produzo todos os elementos, então eu vou dar uma dimensão muito mais particular à minha música. Essa foi a mudança que eu quis fazer. A banda requer uma série de tomadas de decisões que têm de ser democráticas, o que também é bom, e eu até toquei nesses moldes durante muitos, muitos anos. Mas neste período da minha vida, importa-me muito transmitir aquilo que eu tenho para dizer enquanto indivíduo. Todos os meus espectáculos até ao final deste ano serão a solo ou em duo. As actuações em que me apresento sozinho têm essa fundação: elas são aquilo que eu quero transmitir musicalmente.

Conhece um artista português chamado Rão Kyao?

Não.

Deixe-me contar-lhe a sua história de forma muito breve. Ele começou a tocar no início dos anos 70 enquanto saxofonista tenor e ele editou, em 1976, aquele que foi o primeiro álbum de jazz criado em Portugal por um músico português — Malpertuis. Ele alcançou um grande sucesso enquanto saxofonista até ao início dos anos 80. Depois foi para a Índia e começou a estudar flauta e música indiana, tendo também passado pelo Brasil a seguir. Tornou-se num flautista. Quando você anunciou a sua decisão de transitar para a flauta, eu pensei: “Uau! Eu já ouvi esta história antes.”

Eu consigo perceber porque é que esta história já aconteceu e vai continuar a acontecer. Quando se é um saxofonista, assim que se entra no mundo da flauta… Eu já pensei várias vezes nisto: é uma decisão óbvia, porque a flauta é o instrumento que serve de fundação para o saxofone. A flauta mostra-nos mesmo como é que o som é capaz de ressoar num pedaço de madeira ou de metal, enquanto que o saxofone representa um avanço tecnológico que torna mais fácil a divisão das oitavas por partes iguais, o que nos permite tocar muitas coisas mais emocionais e complexas. Assim que se entra na flauta e se fica acostumado a ela… A flauta é a cena. Ela transmite a forma como o corpo se sente quando estamos a tocar. E a conexão, em termos culturais… A flauta anda aí há muito mais tempo do que o saxofone, então começas a vasculhar na história e encontras uma tradição muito mais longa de pessoas que têm vindo a utilizar estes instrumentos — instrumentos com mecanismos do mesmo tipo. É realmente inspiradora a forma como, espiritualmente, o instrumento se liga ao núcleo do nosso ser. Para mim, faz muito mais sentido tocar um instrumento que é muito menos tecnológico do ponto-de-vista mecânico. Isso leva-nos até um certo nível de tecnicidade que está mais relacionado com a forma como o nosso corpo interage com o instrumento, ao invés de um aparelho que, aparentemente, oferece um input maior pela sua tecnologia.

Faz sentido. O Possession irá ter uma edição física?

Não tenho a certeza. Eu espero que sim. A ideia do Possession vem do facto da editora querer ter novo material novo cá fora. Nós nem falámos do aspecto físico da coisa, mas eu espero que sim, que eles venham a fazer cópias disso. Mas de momento ainda não existem planos para uma edição física.

Estava convencido — nem sei bem porquê — que era uma edição independente.

Não. Foi pela Impulse!.

Na altura questionei-me se se teria passado alguma coisa com a sua ligação à editora. Ainda há planos para continuar a trabalhar com eles então?

Isso está a ser discutido. Eu já cheguei ao fim das minhas obrigações contratuais com eles, portanto estamos naquela fase de debater qual será o melhor caminho a seguir. Ando a pensar se o melhor será continuar com eles ou procurar outras opções. Mas eu gosto de trabalhar com eles. Eles têm uma equipa incrível e eu sinto-me bem em fazer parte da tradição que eles têm. Mas neste momento as opções estão abertas para mim.

É curioso que duas das mais históricas editoras de jazz — a Blue Note e a Impulse! — tenham virado as suas atenções para Londes para renovar os seus catálogos. Até se poderia falar de uma terceira, a Concord Jazz, que assinou com a Nubya Garcia. O berço do jazz a olhar para o lado de cá do Atlântico em busca de novo talento…

Sim, sim. Isso é muito engraçado [risos]. As coisas aconteceram dessa forma. Mas o melhor disso tudo é que esses artistas que estão a ser contratados do Reino Unido estão mesmo a acrescentar algo de muito particular aos catálogos dessas editoras. Todos esses artistas — como eu ou a Nubya — andam a tocar há anos pela Europa, a formar as nossas identidades à volta daquilo que o público europeu precisa e pede de nós. Então, nós chegamos à América com uma energia e uma forma de fazer as coisas que é realmente diferente daquilo que eles têm. Acho que é por isso que eles nos respeitam, porque somos artistas com uma visão particular, que estão a fazer coisas diferentes das que os americanos fazem, a tocar de uma forma diferente, que é representativa de grupos e cenas muito específicas.

Diga-me uma coisa em relação às suas flautas. É você que as faz, estou certo? Onde é que estudou essa arte?

Eu comecei a fazê-las no Japão. Tenho lá um grande amigo que as fabrica e vou visitá-lo com regularidade. São feitas de bambu colhido no sul do Japão. A madeira precisa de ficar a curar durante um ano. Já fiz duas colheitas e até ao momento já fiz quatro flautas — três da primeira colheita, uma da segunda. Agora tenho mais três flautas a curar neste momento e elas estarão prontas daqui a mais ou menos um ano. É muito bom perceber que o instrumento que estamos a tocar vem mesmo da terra. É muito fácil desprendermo-nos dessa realidade quando tocamos num instrumento comprado. Quando somos nós que colhemos aquela madeira do chão e lhe dedicamos um bocado da nossa atenção e afecto durante o processo de fabrico, isso altera a forma com que tocamos.

Esta manhã levantei-me cedo para escrever uma peça sobre o Nduduzo Makhathini, que tocou este fim-de-semana em Portugal. Deu para perceber que colocou um ponto final nas bandas The Comet Is Coming e Sons Of Kemet. Mas e em relação a Shabaka And The Ancestors, em que situação é que esse projecto ficou? Também é um capítulo encerrado?

Não, não. Nenhum capítulo se fechou para mim. A questão é apenas que eu, nesta fase da minha vida, quero tocar sozinho. Isso pode muito bem mudar no futuro. Isto tem só a ver com o momento que o meu coração atravessa na música. Eu precisava mesmo de ter tempo e espaço para solidificar aquela que é a minha visão da música. As coisas assim não são democráticas, dão-me mesmo uma liberdade para me expressar e para dar vida a ideias que só eu sozinho consigo fazer. Como eu disse, pode mudar no futuro, mas neste momento preciso de solidificar a minha visão enquanto artista a solo.

Eu tenho a certeza de que não está a par da agenda de concertos em Portugal, mas é muito curioso que, de repente, parece que os programadores portugueses decidiram estudar o seu catálogo de colaborações e começar a trazer esses artistas com os quais já teve alguma ligação. Já falei no Nduduzo, também o Amaro Freitas toca aqui em Julho, a Ganavya também toca cá em Outubro precisamente na mesma sala onde você vai tocar…

Isso é óptimo [risos].

Gostava de lhe perguntar sobre como vai a sua própria editora, a Native Rebel. Que planos tem para um futuro próximo? Há por aí novos talentos em vista?

De momento eu coloquei a editora em pausa. A ideia dessa editora é que eu me faço envolver em todas as suas edições, seja de que forma for. Não é uma editora tradicional que apenas se foca em lançar bons álbuns. É uma editora que serve como uma extensão da minha expressão artística. Neste momento eu estou a trabalhar num novo álbum. E estou também a trabalhar no álbum que virá depois desse [risos]. Portanto, não ando com tempo para fazer mais nada. Também estou a trabalhar num livro. Ando muito controlador com o tempo e com a disposição mental que tenho disponível, para que consiga dedicar o esforço necessário em cada um desses projectos. Aquilo que eu não quero é chegar a um ponto de saturação em que começo a acelerar os meus processos e a despachar as coisas muito depressa. Eu gosto de dedicar o tempo e a preocupação que cada projecto merece. Então decidi parar um bocadinho com a Native Rebel, só até eu terminar estas coisas que tenho em mãos de momento. Eu não quero que a Native Rebel se torne numa editora que lança coisas que não têm qualquer tipo de ligação a mim.

Uma última pergunta, sobre o projecto Kofi Flexxx. Algum desses discos que me diz que se encontra a preparar vai ser de Kofi Flexxxx?

O Kofi Flexxxx é um projecto conceptual que representa um espírito que assume a criação da música, ao invés de ser um artista. Eu não diria que sou o Kofi Flexxxx, tal como não quero dizer que vou fazer um álbum de Kofi Flexxxx. O Kofi Flexxxx é um espírito que apenas surge durante o processo de criação. Portanto, eu não te sei dizer onde ou quando é que o Kofi Flexxxx vai surgir de novo, mas posso garantir-te que ele vai voltar a aparecer.


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