“Que força é essa?”, questionava Sérgio Godinho em 1972, quando o país ainda vivia mergulhado na longa noite do fascismo, prolongando a agonia do sistema colonial, condenando o povo a uma guerra injusta, espalhando a carnificina em Wiriyamu. Tempos difíceis esses, de “dormência com correntes”, como escreveu e cantou Scúru Fitchádu em Nez txada skúru dentu skina na braku fundo, num exercício de resignificação da poética da guerrilha e da libertação nos frios matos de cimento da cidade contemporânea.
Passaram-se mais de cinquenta anos desse longínquo ano de 1972, embora os atritos dessa memória permaneçam vivos nos seus reflexos presentes. Afinal, como ainda agora constatámos, o ovo da serpente nunca foi devidamente incinerado, e aí está ele, nos dias que correm, transformado em hidra de cinquenta cabeças e olhar furioso, pronta a esmagar desumanamente quem lhe faça frente. Aí estão eles todos, filhos e netos de gerações de fascistas, colonialistas e bombistas reciclados, agora sentados e refastelados nas digníssimas poltronas da Assembleia.
Quis a circunstância histórica que o terceiro álbum de Scúru Fitchádu emergisse num dia de ressaca eleitoral, onde a consternação tomou os corpos de quem cresceu a acreditar que o fascismo seria um tempo pretérito, que os Tarrafais e as milícias haveriam de ser um elemento de memória — e não um horizonte que se nos coloca. A circunstância histórica tornou, então, este álbum especialmente relevante, enquanto sintoma do seu próprio tempo. Relevante, porque é impossível não escutar o grito implacável de “Kema palasio kema” sem imaginar os porcos que tão bem se assariam nesse incêndio redentor. Mas também sintoma do seu tempo, porque aos cinquenta porcos de que se fala em “Resistensia”, a última música do disco, teremos agora de somar pelo menos mais uns oito — e, provavelmente, um pouco mais de carga no assador, uma afiação acrescida às katanas.
“Que força é essa?”, regressemos à pergunta do Sérgio. Que força é essa que trazemos nos braços e que só nos manda obedecer? Que força é essa que nos põe de bem com outros e de mal connosco mesmos? Por estes dias, olhamos à nossa volta, perdidos e macambúzios, já com o sabor a sangue na boca. E, ainda assim, esta música, fúria imanente que interrompe a consternação, propondo-nos não um panfleto de ideias feitas, mas uma possibilidade concreta de dar à raiva um sentido de potência coletiva.
Essa possibilidade surge aqui no encontro entre griots, cuja sabedoria paciente atravessa o tempo e o espaço, e os riots, instintos de resposta urgente à violência imediata — direito de autodefesa de quem, para voltar a palavras do disco anterior, se recusa a viver na condição de “burro contente, triste e feliz coitado, a jogar com a sina dentro do bolso e uma corda no pescoço bem apertada”.
Griots i Riots começa, então, no lugar exato onde terminou Nez txada skúru dentu skina na braku fundu. Em “Treinament”, a última música desse disco, abordava-se a possibilidade de acordar de novo com vontade — como um “cão de dentes cerrados” à espera que a noite caia. Apelava-se, nesse momento, a uma “militância preparada”, como uma raiz que se tornaria forte, recorrendo às armas e à teoria sob um dilema muito preciso: “libertação ou morte”. Não é por acaso, aliás, que sejam também essas as primeiras palavras que se escutam em Griots i Riots, envoltas no som cristalino de uma kora tocada por Mbye Ebrima, e imediatamente revoltas pelos graves distorcidos tão próprios ao universo sonoro de Sette Sujidade.
Guiado por esse mantra, o álbum segue constantemente esse dualismo entre a teoria e a prática, a palavra e a ação, o corpo e a oralidade, a cidade e o autoquestionamento, num entendimento-revolução como uma possibilidade concreta e quotidiana, que não virá de palácios, de vanguardas dirigentes ou de comissões de sábios, mas de uma prática de vida concreta, quotidiana, realmente enraizada na comunidade.
Consciente de que não há teoria revolucionária sem prática revolucionária, Giots i Riots enfrenta o tempo duro da realidade com o tempo lento da sabedoria ancestral; desafia a apatia anestesiada da intervenção política e cultural com a possibilidade de uma dissensão onde se abrem as brechas de outro futuro. Esse confronto entre tempos e tensões — entre a memória e a urgência, entre a palavra e a ação — não é apenas um gesto poético ou político. É também o princípio composicional que estrutura o álbum, orientando a sua escuta e respiração. Escutamo-lo logo em “Griots i Riots”, a introdução, onde se ensaia a sobreposição entre a sabedoria ancestral, transportada pelo kora, e a sujidade sonora que progressivamente o contamina — numa tensão constante onde irrompem gritos de fundo e vocalizações carregadas de urgência.
Depois dessa introdução a estratégia fica alinhada. “Idukasan i saud”, grito acelerado de revolta popular, à boleia de uma ressignificação de versos de Sérgio Godinho em À Queima Roupa, é contraposta a “Kel karta di alfuria…”, faixa de graves pujantes, gaita reflexiva, sobre as armadilhas das falsas libertações que se perdem nos enredos burgueses da Casa Grande. “Funda na poss”, pulsão visceral contra a atitude subordinada da cultura pop, é seguida de “Du ta morrê”, austera e lenta reflexão sobre a morte e o luto. A acelerada precisão de “Kema palasio kema” confronta-se com a explanação poética e a sujidade harmonizada de “Símia Kodjê” — faixa com Conan Osiris, onde nunca se escutou um canto afadistado tão ricamente corrompido. “Prekariadu”, grito de guerra contra o sufoco das vidas precárias nas selvas de pedra, é sucedida a “Caoberdiano Barela”, comovente reinterpretação do clássico de Princezito, lembrando que esta é uma história que vem de longe e continua entre nós. A fechar, “Resistensia”, para que não nos esqueçamos de uma clara identificação dos alvos: os porcos que gritam, os lobos que uivam, os carneiros que baixam a guarda.
Ao terceiro disco, Scúru Fitchádu não perdeu a sujidade inflamada, áspera e dissidente de Un Kuza Runhu, nem a densidade poética, ética e sonora de Nez txada skúru dentu skina na braku fundu. Em Griots i Riots, sentimos-lhe a mesma insubmissão, a força da pulsão inicial, a sujidade com que quis interromper a gestão da paz podre. Mas escutamos também um músico que é, cada vez mais, um poeta denso e sapiente, à procura de ampliar e dominar a sua própria linguagem, sem nunca ceder à razão cínica dos dias que correm. Acima de tudo, um criador que escreve sobre o seu tempo e sobre o seu povo, cúmplice da sua raiva latente, implicado na procura das respostas novas que emergem na luta quotidiana. Um criador que tanto se faz banda sonora de quem recusa viver com grilhões, como se permite explorar reflexões mais profundas sobre a condição humana, as possibilidades da existência, a consciência da morte e do porvir — a procura, enfim, por respostas à tal pergunta do Sérgio Godinho: “Que força é essa que trazemos nos braços?” Não deixemos de perguntar — e de lutar. Deste lado da barricada, ninguém morrerá de joelhos.