Nez txada skúru dentu skina na braku fundu. O título é poético e cinematográfico, mesmo que a realidade supere sempre a ficção. Ao segundo álbum de originais, Scúru Fitchádu avança destemido pelo mato, ou pela nossa selva urbana, com a estratégia alinhada e de olhos postos no inimigo. Inspirado nos movimentos de libertação africanos, na sua herança familiar e na sua história, o autor de Un Kuza Runhu resgata, resignifica e projeta a poética da guerrilha, num amplo comentário sobre o presente, sem moralismos, mas carregado de desafio e provocação.
Guiado pelas lutas de libertação, pelos seus poetas e intervenientes, este é um álbum que se desenvolve a diferentes ritmos, ora alimentado de uma fúria acelerada e distorcida, de retórica contundente e ataque dirigido; ora abrandando a velocidade com momentos onde o texto ganha centralidade e onde escutamos novas sonoridades e experimentações. A forma e o conteúdo nunca se dissociam num disco nada previsível, cheio de pormenores narrativos, líricos e sonoros e onde insistentemente se recusa gestão da paz podre e os discursos românticos do ativismo pop. Afinal de contas, como aqui nos lembra, há muito tempo que nesta latrina o ar continua irrespirável.
Sobre tudo isto e muito mais falámos no seu espaço de trabalho, no Barreiro, onde o músico nos recebeu calorosamente, com um copo de grog que abriu uma conversa franca e sem receios de mal-entendidos. Até porque, como aqui insiste, nada temos a perder a não ser os grilhões impostos por séculos de pensamento colonial cujos alicerces sobrevivem até aos nossos dias. A todos eles Scúru Fitchádu fez pontaria fina, certeira e implacável. Pois que então apodreçam, e rapidamente, que sem um império para cantar, resta-nos um mundo para viver.
Comecemos pelo título: Nez txada skúru dentu skina na braku fundo, que se pode traduzir por “Nesta achada escura na esquina num buraco fundo”. Este é um disco de luta e combate, mas com uma dimensão poética a que dás muita importância. Fazes paralelismos históricos, falas da realidade com um sentido de realismo, mas também com metáforas, com várias possibilidades de interpretação. Como é que nasceu este disco? Como chegaste ao conceito e como é que o foste desenvolvendo?
Este disco é quase uma extensão do anterior que tem muito negrume à sua volta. Foi surgindo em muitos lugares em que eu podia estar sentado a refletir. O meu método de trabalho começa muito antes de ir para um estúdio ou sentar-me aqui a compor. No outro álbum, Un Kuza Runhu, eu já tinha uns laivos do caminho para onde estava a ir e que é esta inspiração na poética da guerrilha. Os meus pais fugiram a uma guerra civil e eu conheci gente que esteve envolvida na guerra, antigos combatentes, e toda esta temática da guerrilha surgiu muito naturalmente.
Do lado dos movimentos de libertação, certo?
Sim, dos movimentos pró-independência. Este lado da insurreição, ou da guerrilha por direitos, acendeu sempre em mim umas luzes desde os anos 90, com a cena dos Black Panthers, que era aquele imaginário que eu tinha como o ímpeto da luta. Obviamente era um miúdo e achava que a cena se resumia ali, mas não. Tu começas a ir à tua identidade, a conheceres a história de onde vens, e acabas a perceber que te corre no sangue algo que te puxa para ali. Este álbum tem um título muito cinematográfico para ir um bocado de acordo com todos esses desvios poéticos que faço, e com os paralelismos que faço com a retórica de [Frantz] Fanon, de [Amílcar] Cabral ou de [Kwame] Nkrumah, que lutaram por causas reais, causas que ainda são muito próximas. Este álbum vive muito sobre uma umbrela de descolonização mental. Eu como afrodescendente, e vejo também os meus, ainda estamos muito com os grilhões do pensamento colonial.
Estamos todos, não é? Eu sou neto de ex-combatentes do lado português e quer a guerra, quer a violência colonial, continuam a ser um trauma e um tabu.
Sim, mas é todo um trabalho que está a ser feito. Nós estamos sempre a aprender coisas novas e a saber como lidar com elas. Mesmo assumindo os erros do passado, conseguimos perceber. Eu estudei com gajos que os pais estiveram no “ultramar” e quando os conheci tinham um discurso e depois começaram a perceber: “Ok, eu assumo isto e o melhor que eu posso fazer como teu aliado é transmitir o que se passou aos meus que não entendem, é desmistificar as ideias do outro tempo com a minha irmã, com os meus amigos, etc”. Logo aí, há luta a ser feita. Este disco, a nível de pensamento, e de toda a minha construção, rege-se muito por princípios fanonianos, de Frantz Fanon. Basicamente são três estados psicológicos que encontro ali. Primeiro é a consciência do lugar mental chamado “assimilado”, que tem um teor completamente racista, mas em que tento ir atrás do que esse legado colonial me deixou e que são cenas simples: sei que há um teto na minha vida, que não posso ir mais longe do que isto, que tenho de obedecer, falar baixo, não abanar as ondas. Depois, o segundo estado é o da consciencialização, que é a procura pela tua identidade, pelas tuas raízes e tentares perceber os porquês. Eu penso que estou nessa fase de tentar perceber de onde vim, de onde os meus vieram, o que é que desaguou. E depois há uma terceira fase: já errámos no passado, já desconstruímos essa corrente de pensamento, já sabemos quem somos, de onde vimos, para onde podemos ir, então vamos à luta! Essa fase da luta está também nos laivos que mando pelo disco inteiro.
Portugal está a celebrar 50 anos do 25 de Abril e do fim da guerra colonial. Porque é que 50 anos depois é importante e urgente continuar a falar do colonialismo e dos movimentos que o derrotaram? Há temas aqui, por exemplo o “Korre Manuel” e o “Maria”, que podemos associar ao período colonial, mas também podemos pensar aquelas narrativas no Portugal de hoje. Meio século depois, porque é que ainda estamos aqui?
É curioso, e tenho a certeza de que ouviste o disco, porque são daqueles temas que dão para fazer esse paralelismo histórico. O “Korre Manuel” é a história de um imigrante. Podia ser uma história de há não sei quantos tantos anos atrás, em plena Lisboa, com um imigrante que vem e não quer armar ondas, é colocado num lugar de contratado, quase escravatura, mas que tem várias questões e está ali no limiar: “Vou deitar tudo a perder, ouvir o diabo e vou para a luta? Vou continuar assim? Tenho filhos para criar…” Mas sim, ao mesmo tempo são questões que estão vivas hoje. A malta olha para o 25 de Abril como uma celebração, mas acho que a simbologia se está a perder. Está-se a tornar numa t-shirt. Parece que é algo que está a ficar tão estilizado que não se está a olhar para o quadro maior em que esses problemas estão a surgir outra vez. Não estamos numa ditadura e as pessoas até têm alguma liberdade, mas com as ferramentas da liberdade também há outras umbrelas por cima que não te deixam ser mais do que isto. Tens direito de falar, mas também estás a ser bombardeado com narrativas do arco-da-velha, teorias da conspiração… Eu neste disco não me inspirei apenas na parte africana da luta, dos seus poetas e intervenientes, mas também muito aqui, fruto de ter vindo viver para o Barreiro em 2020 e ter percebido que isto era um dos bastiões das forças populares no 25 de Abril. Em conversa com intervenientes que estão vivos, sente-se um bocado isso: lutou-se bastante, mas temos uma nova panóplia de problemas que não mudaram muito. É por isso que a cultura e a contracultura têm que ir de acordo com o que estamos a viver, não há volta a dar. Temos de ter música de protesto, arte de protesto, pensamento de protesto, de revolução, porque as coisas não estão bem. Fisicamente não temos grilhões e chicotes, mas temos um conjunto de outras coisas que nos obrigam a tentar ter o mesmo mindset que os revolucionários tiveram há 50 anos.
Este álbum é inspirado nos movimentos de libertação e faz diversos paralelismos históricos. Olhando para esses paralelismos, gostava que me falasses do sample da Florença Landim, conhecida como Nha Mininha, Rainha di batuku, na música “Manduku i triviment”. Ela era trabalhadora contratada nas roças e a história de vida dela mostra que a escravatura, que alguns historiadores dizem que já tinha acabado naquela altura, afinal deixou sequelas durante todo o século XX. Como é que descobriste essa música e porque decidiste usá-la como sample creditado no álbum?
O sample é de um disco que já tinha há algum tempo e já me tinham falado que ela tinha assim um olhar crítico sobre toda esta história. É um disco underrated, mas incrível e ela é muito acérrima nas ideias. Falei com um dos produtores do disco porque achei que fazia sentido esse sample. Mas sim, o sharecropping nos EUA é um regime de escravidão. Depois acabou a escravidão, mais tarde a segregação, mas as condições de muitas pessoas pouco mudaram. No império colonial português foi igual. Essas plantações de café, cacau, cana-de-açúcar, todas elas tinham essa característica de serem um trabalho de submissão brutal. Tinha passado pouco tempo da escravatura, mas foi um dos negócios do capital, de Portugal, para continuar a faturar. Esses subcontratados geravam riqueza a outros.
Há muitos samples que usas, mas é difícil saber a origem.
Posso-te dizer os vídeos onde os fui buscar, e consegues situar: são marchas de antigos guerrilheiros das forças de libertação da África do Sul, anti-apartheid, tenho cânticos da cena zulu antiga, discursos do Amílcar Cabral. Andei a pesquisar na net, em filmes, em VHS antigos, fui atrás de tudo. Também havia nos anos 80 uma série chamada “Shaka Zulu”, uma série muito brutal e desde miúdo fiquei com esses cânticos na cabeça, eles cantavam muito a cena da guerra. Depois fui atrás: resgatar, resgatar, resgatar.
E o que representam para ti os legados dessas lutas anticoloniais? Que legados são esses que trazes para o nosso tempo?
Legados são diretrizes. É a unidade e luta, do Amílcar Cabral. Ou os Condenados da Terra, do Frantz Fanon. São essas diretrizes. Os princípios e estratégias do Amílcar Cabral são tudo estratégias de proletariado. Vamos usar as nossas ferramentas, a nossa mão de obra, a nossa força de trabalho, para gerar a nossa subsistência, a nossa autonomia, e largarmos o cordão umbilical de tudo o que nos oprime, que é o estado colonial. O que eu acredito, e já se começa a praticar por exemplo na Cova da Moura, é na economia que é ali feita.
Uma ideia de autogestão?
A autogestão, a auto-organização, essa base que torna as pessoas mais autónomas. Este é um disco combativo, de apelo à descolonização do pensamento e para encontrarmos as nossas próprias armas de luta, neste caso a cultura. É mexer aqui as partículas e vermos que não temos que ir de acordo com a norma. E o que é a norma? É a cena do assimilado. É esse quebrar. São linhas muito ténues, e às vezes muito subversivas, que deixo ali como pistas. Mas lá está, tenho o meu lado politizado, cada vez mais, mas tento também que a minha arte e o meu conteúdo não sejam totalmente inundados por isso. É por isso que o texto é poético.
Não é moralista, nem panfletário.
Exatamente. É um texto libertário. É contracultura. Há textos mais violentos, não quero que sejam mal compreendidos, mas não retiro uma vírgula. Eu misturo uma cena urbana com uma narrativa de sanzala, ou de sharecropping, ou de um colonato. Há uma música que falo do caminho da Ana Mafalda. O pessoal não percebe, mas Ana Mafalda era um dos grandes navios que levavam os contratados escravos de Cabo Verde para São Tomé.
Olhando para o pensamento e a prática do Amílcar Cabral, ele considerava que os movimentos de libertação tinham uma componente de estratégia militar, mas também um sentido demonstrativo, ou seja, o próprio processo de luta devia reconstruir a sociedade e daí a importância dada à construção das escolas, hospitais, à cultura, a tudo isso. Regressando aos paralelismos de que falas, parece que o teu álbum segue ritmicamente essa própria conceção de luta. Há momentos de fúria, ataque e guerra, e outros momentos em que o ritmo abranda e nos focamos mais na história, em que o texto ganha mais importância. A luta tem ritmos distintos, como o teu álbum tem rimos distintos. Faz sentido esse paralelismo?
Faz totalmente. Eu fiz questão de representar essa ideia guerrilha e depois de algum abrandamento. É um bom paralelismo. É essa dicotomia entre a estratégia ou a luta, e a parte de organização. Tenho textos que são mais pró-combate, em que a retórica é mais contundente, como o “Manduku i triviment”, e outros em que é mais reflexão, onde entra a “Strada noti”, a “Korre Mauel” ou a “Maria”, com um ambiente mais descrito.
A música “Maria” é inspirada nos Mão Morta, só que na versão deles o diálogo acontece quando ele chega a casa, enquanto na tua música ele não chega sequer a casa. Primeira pergunta: O Adolfo Luxúria Canibal gostou da versão? Segunda pergunta: O ar nesta latrina continua irrespirável?
[risos] Isto hoje o cosmos está-se a juntar. Antes de chegares estava a gravar um teaser para a “Vida justa” [manifestação a 25 de fevereiro, em Lisboa] que começa com “Há muito que o ar se tornou irrespirável”. Sim, essa música era um skit que eu costumava tocar ao vivo e uma dessas vezes estava a tocar em Beja e percebi logo que havia fãs de Mão Morta. E eu disse: “Isto é um plágio ao Adolfo Luxúria Canibal, não lhe digam por favor…” [risos]. Chego ao hotel e recebo uma mensagem do Adolfo: “Muito obrigado por teres feito a versão”; “Então, mas estavas cá?”; “Não, mas o meu técnico de som era um gajo que estava à frente” [risos]. E agora toquei no Amplifest e ele estava na primeira fila. Na altura mandei-lhe o tema e ele gostou. O tema não tem a ver com a direção dele, mas remonta ao momento em que o meu pai foi colocado em Manteigas, com a minha família, em 1976. Ele estava num sítio e foi abordado por uns locais que bateram nele, foi um espancamento, e o meu pai foi parar ao hospital. Imaginei-o no hospital a dizer isso à minha mãe. Nos dias que correm, uma coisa que aconteceu em 1976, pode muito bem acontecer agora com esta conjuntura.
Fala-me dos convidados do disco. Porquê o Cachupa Psicadélica, o Henrique Silva e O Gajo?
Resolvi ter O Gajo porque trazia o registo da viola campaniça, que gosto muito e é uma cena muito portuguesa. Mas queria cruzá-la com outro hemisfério, com a cena crioula e cabo-verdiana, onde está o Henrique Silva, que é um desses putos da nova linha.
É um virtuoso…
É mesmo um virtuoso da cena, muito bom no cavaquinho. O Henrique Silva começou a fazer incursões comigo ao vivo, neste novo capítulo vai acompanhar-me. O Cachupa somos grandes amigos. Ele dorme na minha casa, eu vou a casa dele. Achei que tinha de fazer porque já gostava da música dele e quando o conheci em 2012 senti logo essa proximidade, parecia que nos conhecíamos há muito tempo. Adoro mesmo o álbum dele.
O Pomba Pardal? É um grande disco…
Do princípio ao fim. Esta é a minha zona de trabalho. De manhã vou levar o meu puto à escola e venho para aqui para trabalhar. Às vezes ligo as máquinas e fico a olhar para o vazio. O que é que vou fazer? Esse é um daqueles álbuns que meto a tocar para isto fazer sentido. A música “Mar bradu” foi inspirada nesse álbum e tem uma relação com o mar e com Cabo Verde.
É uma música super ondulada.
Exatamente. O Cachupa é um gajo já repetente, anda muito comigo, já chegou a tocar comigo em palco e não tínhamos nenhuma música juntos.
Falando ainda de colaborações, gostava que me falasses da capa do álbum feita pelo Alan Alan.
O Alan Alan vivia no Porto, era jornalista, agora é pintor, e está em Paris. Conheci-o através do Cachupa porque eram amigos em São Vicente. Ele tem o mesmo mindset. Desde o início do meu projeto que me dá força: “Curto a tua cena, identifico-me!”. E eu comecei a seguir o gajo no Instaram, vi que pintava e tinha lá quadros que me inspiravam muito. Tem coisas fotográficas que eu imagino logo músicas. Depois a falar com ele, ele diz-me: “A sério? É que eu pinto a ouvir música tua”. Desafiei-o logo! Disse-lhe que ia lançar um álbum e queria que fizesse a capa.
A capa diz “happy slaver”, mas paradoxalmente o olhar é de quem está a observar para o ataque. É de quem está a pensar: “Estou-te a ver e quando deres um passo em falso vais cair ali”.
Foi exatamente essas coisas que eu vi. Na verdade, ele estava a fazer outra capa, mas eu estava sempre a ver esta. Ele estava a fazer uma capa específica e as propostas que me estava a enviar eram uma cena bué Scúru. Eu adorava só que eu não queria isso. Eu queria ir atrás dele e não ele atrás de mim, percebes? Então eu escolhi essa: “Por favor, deixa-me usar esta…” [risos].
O Amílcar Cabral insistia que a luta de libertação é um ato de cultura e um fator de cultura. Pensando no contexto português, achas que o campo da cultura é um campo decisivo para a disputa do futuro? Estamos a ver cada vez mais artistas negros a chegarem a espaços do centro, a serem os mais ouvidos no Spotify ou no YouTube. A afirmação cultural das suas vozes está a produzir mudanças no país ou o próprio sistema capitalista e a branquitude, como já não podem ir extrair cacau, cana de açúcar ou escravos, estão a usar a música para manter o negócio?
Pois, nesta pergunta há aqui tantas formas de abordar… Assim condensado, a música ou a cultura feita por afrodescendentes cá deve ser agora a maior arma, ou a maior voz, ou a maior plataforma que temos. Parece que ninguém quer ouvir o Mamadou Ba, ninguém quer ouvir a Buala. A malta parece que quer é um sentido estético. Tu tens muito bons músicos afrodescendentes na praça e vês todos os dias a surgirem mais, a assinarem grandes contratos com multinacionais. Mas muitas dessas multinacionais estão a usar o lado quantitativo, a cena estética deles, e estão-se pouco marimbando para o que estão ali a dizer. E na verdade, alguns artistas acabam por ter esse pensamento, voltando a Fanon, dos assimilados: “Ok, tenho o meu talento, mas vou jogar o jogo deles”. Por isso é que tu vês as mensagens que vês, que é um bocado para inglês ver. É um floreado, é tudo muito colorido. Também não interessa à indústria ter gajos a abanar as coisas, a pensarem por eles próprios, a serem autónomos, porque com a originalidade e com a autonomia, com saberes fazer as coisas por ti próprio, dá-se logo aqui um desapego de plataformas multinacionais. Isso não lhes interessa. Por isso é que tens miúdos que são campeões no YouTube com um single e estão a assinar com multinacionais.
Mas ao mesmo tempo, para quem cresceu com tão pouco, tão longe dos centros, e com a sociedade a dizer-lhe para não terem muitas expectativas, não é natural algum orgulho com a chegada a editoras onde nunca imaginariam poder editar?
Claro, mas tão rápido entras como vais sair. Eles vão chupar a estética enquanto durar. Não há ali nada que realmente prenda, que lhes interesse. Podes ter a tua mensagem, a tua t-shirt, mas eles estão a agarrar aquilo, a fazer o produto deles, estão a aproveitar essa cena toda consciente, mas no fim do dia estão-se marimbando para o artista. Os artistas sim, são uma voz, é bom estar a haver cantores em crioulo, e pessoas que poderem falar do que vivem, mas lá está… Estás a ver quando um cantor ia ao Ídolos e diziam-lhe: “Então e quem é que tu és e de onde vens?”; “Os meus pais faleceram, sou órfão, comecei a cantar na rua”… Eles pensam logo: “Temos aqui um gancho! Ele pertence a esta classe, vem de um meio desfavorecido, consegue vencer, até tem jeito com as miúdas, bora dar uma oportunidade!”. Mas estão-se marimbando para ele.
É um produto.
Lá está, não faças ondas, continua a ser escravo e não faças ondas, não abanes o barco.
Em breve vais voltar à estrada e queria-te perguntar sobre a relação com o público. Há músicas com muita força social por te fazerem dançar, mesmo quando falam de luta e sofrimento. Mas especialmente em Lisboa o que muitas vezes vemos são festas de “músicas afro” ou de “músicas do mundo”, com uma plateia quase toda branca, porque as pessoas negras ficaram à porta. Nessas festas entra, por exemplo, o disco do Bitori e parece irrelevante o que está ali a ser dito.
Com certeza.
Sentes isso no teu caso? Achas que corres esse risco, até pelo facto de muito do teu público não perceber crioulo? Achas que podes ter público com uma relação um pouco mais alienada com o espetáculo, que vão pela estética, mas não estão realmente conectados?
Eu acho que sim, ainda que no meu caso não tanto como nos exemplos que acabaste de dar. As coisas que são ditas no Bitori são muito sérias. Eu acho que isso parte do mesmo princípio que é esta mercantilização da estética e da música. É despi-la de todo o contexto em que é feita, e para o que é feita, para se tornar apenas em algo estético. Mas é um sintoma da música em geral, a nível mundial. Neste caso, eu sofro também um pouco disso ainda que a malta… Eu desde início que tentei mostrar o meu lado politizado e mostrar que aquilo que faço não é só para curtir. Se vais lá e queres dançar é porque está-te a libertar, mas há ali substância a ser transmitida.
Até na própria forma, não é? A forma também é conteúdo.
Exatamente. No meu concerto há ali um conjunto que embrulha aquela música toda. Pode estar malta à mochada, ou no headbang, ou pode estar só a ouvir. Eu também não quero que a minha cena seja reduzida a uma cena estética: “Ah e tal, aquilo é bué fixe, é saltar e suar”. Tu podes ir lá saltar e suar, mas entra primeiro e tenta perceber onde é que estás. Eu não quero mesmo que a minha música seja sequestrada e seja exposta apenas pelo lado estético. A minha música é feita de outra forma, é por isso que estamos aqui a falar. Tem que ter outra abordagem. Não estou a dizer que seja melhor, mas em vez de ouvires as músicas porque são bonitas, ouve e vamos debater porque é que faço paralelismos com isto e com aquilo, é mais esse sentido. E eu também tenho um pensamento de velha guarda, cresci a ouvir gajos como o Adolfo Luxúria Canibal, o Sérgio Godinho e o Jorge Palma aqui em Portugal e bebo um bocado dessa linha em que a música é mais do que algo sensorial para tu te sentires bem. Como bem disseste no início, não é entrar numa onda de missa, com a moral, a dizer que esta é a verdade. Mas é fazer questões que nos dizem respeito a todos. Eu não falo só para os africanos. Se os portugueses tugas nascidos cá estiverem bem, toda a gente vai estar bem também. Se os africanos estiverem bem, toda a gente vai estar bem. Isto é uma comunidade, não podemos estar bipolarizados.
E aproveitando essa deixa, gostas da expressão “música afro-portuguesa” para incluir a tua música?
Eu não tenho nada contra. Mas pá, eu não estive em faculdades.
Até neste disco mandas uns recados para o pessoal deixar as enciclopédias e vir para a guerrilha, muita conversa e pouca ação… [risos]
Meu, foste a tudo [risos]. É outro assunto, é a terceira parte de Fanon. Mas sim, não desgosto do termo. Afro-português: nasci cá, sou tuga, sou de São Sebastião de Pedreira, nasci em Lisboa; mas tenho sangue africano e faço música sobre uma umbrela africana. Não vejo nada contra isso.
E vives bem com essa dupla pertença?
Vivo bem com as duas, não tenho de escolher. Eu sou africano, mas também sou português. Acho acima de tudo, e volto a dizer, que a cultura tem esse papel de mostrar esse caminho, que não tens que escolher só “aqui” ou só “aqui”, há uma zona cinzenta em que podes estar com essa consciência. A consciência é saberes de onde vens, onde nasceste e o que defendes. Eu estou longe de ser nacionalista, a minha cena é abolir os hinos [risos], mas gosto da identidade, obviamente, saberes de onde vens e para onde vais. Eu acho que o maior veículo destes miúdos é a parte da educação. Os professores que andam aí na rua têm de ter essa consciência. Tem que haver uma reformulação de matérias.
O ensino da história então…
Começando logo para aí porque nos manuais em que nós aprendemos eram os navios que atracaram e os gajos que foram atracados. Tu estás ali no meio e não há referências a malta negra que nasce aqui, ou aos negros do sado, ao poço dos negros, não há nada que diga que Portugal também é negro. É que basta mudar o que é dito nas escolas, nos conteúdos, que vais ver logo uma mudança bué rápida na maneira de pensar dos miúdos.
Queria ainda ir a uma outra deixa transversal ao álbum que é a crítica ao ativismo pop, instagramável e ao individualismo que oculta relações de poder e privilégio. Quando morreu o George Floyd tivemos a maior manifestação antirracista de sempre Portugal. Logo a seguir morreu o Bruno Candé e a manifestação já foi mais curta. Depois morre o Danijoy Pontes e em frente ao EPL estava ainda menos gente. Ou seja, parece que se importarmos de fora, com hashtag associado, toda a gente aparece, mas se morre um negro em Portugal já não há a mesma comoção.
Exatamente. Tocaste em pontos que eu aponto mesmo neste disco e que é esse ativismo cor-de-rosa. A cena está tão estilizada que agora todos os movimentos estão a ser inundados pelo lado estético, pelo lado de uma pertença popular, de massas, para tu mostrares que és cool. Vivemos nestes tempos em que é tudo à distância de um click e eu falo desse lado do ativismo feito para a capa de revista, mas também falo que a malta está a dar demasiada importância à antropologia, à sociologia, à malta dos debates, das tertúlias, e o que assistes em muitos casos parece quase uma competição para ver quem leu mais livros.
Eu estando também do lado da academia consigo entender essa crítica.
O problema é que se temos de resolver uma coisa amanhã, ou já daqui a bocado, não há ninguém que se mexa.
O pessoal tem de acabar de ler o livro. [risos]
[risos] Eu sinto-me mais do lado da barricada do “O que é que há para fazer?” Acho que falta um bocado isso nos movimentos. Todos os movimentos, todas a revoluções, têm de ter as duas partes. O próprio Amílcar Cabral dizia isso. Eu fui a todas essas manifestações e hoje em dia não sei se participaria nessa do Black Lives Matter porque acho que foi tão usurpada… Eu vi lá coisas descabidas, de malta a fazer fotografias forjadas para ganharem influencers. Eu parto do princípio que as manifestações não podem ser um culminar de uma cena. A manifestação tem de ser um princípio de luta. Atenção, este é um princípio, estamos a reivindicar isto, os próximos capítulos não vão ser assim, à base da conversa e dos cartazes. E temos de trabalhar também nas comunidades, numa base horizontal, para que toda a gente consiga estar aqui a trabalhar, a autogerir os processos, para termos os nossos advogados a defender as nossas causas. As lutas não podem acabar na manifestação e nem tudo tem de ser gravado ou filmado. Há coisas que têm de ser privadas e guardadas. Se tu estás a contar todo o teu plano ao teu inimigo que te está a ver ali com meia dúzia de clicks, porque é que vale a pena estares a falar?
A polícia nem precisa de ir lá ver quem é que está lá…
Exatamente. Que haja tertúlias, colóquios, debates, acho muito bem, mas isso não pode ser o culminar a luta. Fez-se essa grande manifestação e o que é que mudou? Morreu o Danijoy, morreu o Candé, vai morrer mais alguém. Eu não falo de racismo neste disco. O racismo existe, para que é vou falar sobre isso? Temos é de trabalhar sobre isso.
Para acabar, e voltando ao início, logo na primeira música do disco cantas “li nez txada skuru dentu skina na braku fundu / na diskansu iterno nta ben buskabu la frenti”, que se pode traduzir como “nesta achada escura dentro da esquina num buraco fundo / no descanso eterno eu venho buscar-te mais lá para a frente”. Remetes para um lugar de “descanso eterno”, mas dizes que nos virás buscar mais à frente. Há uma ideia de porvir, de futuro. O disco trabalha sobre temas difíceis, o futuro está difícil, como podemos insistir com a esperança?
Cena mais básica é a educação: 100% educação. É o pilar da sociedade. A educação tem de ser investida a 200 à hora e está a falhar. Os miúdos estão a ser educados por telemóveis, tik toks. Essa tem de ser a propriedade. Essa letra tem um lado ainda mais dark, mais pessoal, mas sim, também acaba por ter essa perspetiva de esperança. No descanso eterno, eu venho-te buscar lá à frente. No descanso eterno estás descansado, mas eu venho-te buscar lá à frente. Está a haver muita merda, mas isto pode terminar bem.