Digital

Rita Vian

SENSOREAL

Arruada / 2023

Texto de João Mineiro

Publicado a: 06/12/2023

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Parece ouvir-se uma velha e resistente porta a abrir, acesso a um lugar secreto e soturno, talvez um esconderijo, habitado de muitas e outras histórias. São os primeiros segundos SENSOREAL, primeiro longa duração de Rita Vian, antecipando que aqui morará um “passeio com os seus pensamentos”, uma “sala de convívio onde uma alma se pode sediar”. Tudo se precipita desde “Animais”, faixa de abertura e primeiro single, que agora em disco, tanto convida à entrada no mundo interior da cantora, como nos desafia para a possibilidade de um espaço comunicação poética que igualmente a transcende. 

Seguimos então o convite, sem receios, porque a inquietação tranquila de Rita Vian, de que falámos noutra ocasião, intriga tanto quanto conforta, mesmo num álbum que procura muitos dos caminhos que CAOS’A apenas deixara entreabertos. E se nesse primeiro EP tudo parecia controlado, limado e polido, nesta nova e mais longa jornada são muitos os trilhos explorados, exercícios de experimentação sonora diversos, alguns mais felizes que outros, mas todos eles avessos ao artifício e à superficialidade. De “Animais a “Tenta Sempre”, Rita Vian parece não saber escrever sem intimidade, implicação e tensão. E talvez seja o lado pulsional da sua escrita que a tenha conduzido na busca de territórios sonoros onde esta pudesse ganhar novas raízes, motivos e possibilidades.

Mergulha-se, portanto, na descoberta lenta, como acontece sempre na poesia, escrita que exige o seu próprio tempo e que obriga a que com ela nos impliquemos, enlacemos, questionando a nossa própria relação com as palavras, com os sentimentos que as habitam e com os motivos que as convocam. Talvez o primeiro mérito do álbum resida, justamente, na inteligência que Rita Vian revela em escrever com intimidade, sem nunca ser autocentrada, posicionando-se na primeira pessoa, mas sem transformar a comunicação num exercício de narcisismo. A sua voz está sempre lá, profundamente comprometida no que escreve, mas nada do que canta é apenas ou completamente sobre ela. O que não é um exercício óbvio, diga-se, numa indústria alimentada a tóxicos de ego trip e povoada de um letrismo de pronto a vestir, mais dado à superficialidade que à indagação poética.

Em SENSOREAL, Rita Vian é sempre mais interrogativa que proclamatória, parte em busca de perspetivas menos óbvias e nunca foge da tensão, da contradição e do conflito. Vemos isso, por exemplo, quando enfrenta o complexo tema do autocuidado, tantas vezes transformado numa positividade tóxica, naïf e individualista. Em “Estás a Ouvir-me”, interpela um ambiente sonoro atmosférico e introspetivo, onde as palavras tanto relevam a entrega e o desejo emocional, quanto a aprendizagem das relações como espaço comum que está para lá das individualidades, dos seus vícios e necessidades. Em “Cuido de Mim” aventura-se num instrumental mais luminoso, destinado a ser ouvido a caminho do sol, e explorando a complexa exigência de conciliar a necessidade do autocuidado com a imprescindibilidade da escuta do outro. Em “Deixa-me”, qual corridinho-tarraxado à moda osiriana, enreda-se tanto na confiança serena no destino, quanto no instinto repentista do desejo. 

Para Rita Vian, as palavras são importantes, seja para falar do efeito regenerativo de “um bom duche e de um pacote de cajus” (em “Animais”), da urgência de “acordar de novo no meio dos girassóis” (em “Vida a Dois”), das “promessas adiadas que esgotam todas as vias” (em “Eu deixo”), da “ansiedade que domina e prende” (em “Tentar sempre”) ou dos sorrisos feitos lugar de paz (em “Podes Ficar”). Na sua abordagem lírica, há sempre uma fuga à mesmidade e uma procura incessante de relação com quem a escuta, com quem se envolve com o que escreve, criando um efeito espelho onde nenhuma das partes se anula. Uma coesão rara, diga-se, ainda que nem sempre acompanhada por uma coerência sonora que talvez tivesse servido com mais eficácia a narrativa que o álbum encerra. 

Como já acontecia anteriormente, tanto na música gravada, como na que se escutava ao vivo, Rita Vian serve-se das palavras para inquirir as relações, os sentidos que lhes atribuímos e os impasses em que elas nos colocam. E é nas relações se mergulha, sem tremores, e com a consciência de que elas são tão delicadas quanto as flores, exigindo tempo, cuidado e oxigénio. Talvez por isso também sejam tão frágeis, daí nunca aqui se fugir à tensão e ao conflito interior. Afinal, ninguém disse que era fácil contrariar a pobreza relacional de um mundo onde o tempo foge e acelera, onde nunca se falou tanto e, provavelmente, se escutou tão pouco. É assim que estas palavras, e as paisagens sonoras que as habitam, igualmente interroguem, e desta forma suspendam, ainda que brevemente, o ritmo de um tempo que corre em direção ao vazio.

O tempo faz-se, então, matéria de trabalho sonoro, às vezes mais lento e melancólico, outras mais gingado e luminoso. Tal como na escrita, onde a “vontade de dizer de tudo” enfrenta a necessidade de “parar primeiro para o almoço” (em “Animais”); onde a calma da longevidade encontra este nosso viver que é “um tentar acumulado” e “um esventrar do que já está curado” (Em “Temos Tempo”). São muitas as encruzilhadas para onde Rita Vian nos conduz, que são também aquelas onde já nos encontramos. Mas há no seu gesto, também, uma possibilidade de fuga, uma brisa de ar e algumas brechas de luz que invadem o tal esconderijo que havia sido entreaberto. Sentimo-las logo em “Água”, onde do soturno instrumental de Mucky, nasce também a possibilidade da respiração. Revelavam-se, ainda, em “Temos Tempo”, onde se exorta um “andar para a frente”, contrariando o que “impede de viver mais um bocado”. Mas onde tudo fica mais evidente é a caminho do fim, no tocante tríptico acústico que encerra a jornada: “Eu Deixo” faz-se poderoso manifesto de amor próprio onde já não se vai atrás de quem se decidiu afastar; “Ir Embora torna-se emancipada prosa onde a partida surgirá sem aviso; e claro, “Tentar Sempre”, qual mantra poderoso para lembrar que, mesmo quando perdidos, só nos resta continuar a viagem. Aqui chegados, e apropriando-nos de Becket, talvez apenas nos reste tentar de novo, falhar de novo e falhar melhor. Mas tentar sempre, insistindo com a vida, esse milagre improvável, onde ao fundo “há sempre uma luz que acende, para nos libertar”.


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