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Fotografia: Pedro Mkk
Publicado a: 27/10/2021

O caos interior que ganhou corpo e voz.

Rita Vian no Teatro Tivoli BBVA: uma inquietação tranquila nos labirintos da vida

Fotografia: Pedro Mkk
Publicado a: 27/10/2021

As luzes baixam, o palco torna-se umbroso, o instrumental percorre a sala e Rita Vian entra em cena. Toda a gente aplaude com o mesmo entusiasmo e anseio com que de imediato abraça um silêncio cúmplice e coletivo. Uma quietude firme e tranquila de um público que se rende instintivamente mal a sua voz ecoa, profunda, íntima e delicada, em todos os cantos do teatro. Estávamos todas e todos ali para ver e ouvi-la, naquele que era o seu primeiro concerto em nome próprio em Lisboa.

Há cantoras e cantores que são notáveis intérpretes e que se agigantam recorrendo e homenageando textos poéticos de outras pessoas. Há também quem escreva magníficas canções, brilhando na generosidade com que oferecem as suas palavras à voz e à interpretação dos outros. Rita Vian abraça os dois mundos de forma simétrica e intuitiva, conjugando, delicadamente, o seu lado autoral, poético e íntimo, com uma interpretação sublime na hora do canto e no tempo do encontro com o público. É uma artista que canta aquilo que escreve e que escreve aquilo que canta, sem que, em nenhum momento, pareça propositado comparar em quais das duas vertentes é mais prolífica. Elas não existem uma sem a outra: o canto e a escrita, a pessoa e a artista, o diálogo e a intimidade, o mundo da arte e o mundo da vida. É isso que torna a sua música, tal como o seu concerto, algo realmente tocante e emotivo. 

Rita Vian representa e atualiza, de forma sublime, essa longa história da poesia na forma cantada e do canto na sua forma poética. Em palco, perante quem a escuta, faz da sua poesia uma inquietação tranquila, abraçando e oferecendo-nos o seu ainda curto, mas tão aprimorado reportório, cuidadosamente construído no entrosamento do canto de inspiração fadista e popular com as sonoridades eletrónicas de compasso lento e melódico. Um diálogo que só é verdadeiramente fértil porque se alimenta da substância poética de alguém que escreve à procura das causas da vida e do seu lugar no mundo. Um diálogo que, apesar do tom dramático, e por vezes soturno, é sempre combinado com a procura de brechas de luz onde podemos ser mais do que imaginamos. 

Soturno e luminoso: assim podíamos, paradoxalmente, definir o concerto no Teatro Tivoli BBVA de Rita Vian, que se apresenta em palco de forma minimalista, apenas acompanhada por João Pimenta Gomes, deixando que seja a música e a poesia a assumir a força de comando do encontro. Num tempo marcado pela omnipresença das luzes e dos ecrãs, do barulho e dos efeitos especiais, a artista apresenta-se ao vivo a contraciclo, mostrando que não é preciso uma parafernália de dispositivos para construir um encontro onde a música e palavra revelam o que é essencial. E o essencial é mesmo saber o que se tem para se dizer ao mundo e que verdade é essa que está nas entrelinhas das palavras e dos sons. Nesse encontro, Rita Vian conquista o público com um tom sereno, elegante e discreto, mas não menos íntimo, profundo e acutilante. 

A sua serenidade é, aliás, aquilo que lhe oferece uma enorme segurança em palco, bem patente no controlo da respiração, na plena noção do tempo, numa afinação e controlo vocais irrepreensíveis, mesmo quando as letras tocam fundo no corpo e no íntimo. Uma segurança que é apenas própria de quem pisa o palco sem pretensões de provar nada a ninguém, antes guiada pela pulsão indeclinável para encontrar e comunicar algo de si e algo de nós. Pulsão de quem tem razões profundas para cantar, para escrever e para se encontrar connosco naquele dia. 

Assim, naquela hora do concerto, percorreu um alinhamento que passou por “Diágonas”, a remistura de “Sereia” ou a sua versão solitária de “Carmen”, que brilhou junto das cinco pérolas com que, acompanhada de Branko, construiu o seu EP CAOS’A e que se engradeceu, ainda mais, com dois acapelas que arrebataram o silêncio e os corações da sala. Nota-se, e bem, que à nossa frente está uma artista que comanda o seu próprio tempo. Alguém cujo canto vem de longe, de muitos lugares e dos muitos encontros que a vida lhe foi oferecendo. 

Costuma-se dizer que o fado não é apenas algo que se escuta, é algo que acontece. Felizmente para nós, Rita Vian foi também algo que nos aconteceu. O seu reportório, apesar curto, contém matéria substantiva para todos os seus futuros possíveis, por mais imprevisíveis que sejam. Nada que, no entanto, suscite grande preocupação. Se há algo que o seu concerto nos prova à exaustão é que o seu canto é algo orgânico e pulsional, independentemente das salas e das conjunturas. É isso que nos descansa: essa segurança de saber que Rita Vian continuará a cantar, não importa onde, nem quando. A sua jornada vem de longe, mas ainda vai no adro. São muitos os encontros e os caminhos que a esperam. O que lhe podemos desejar é que, citando Adília Lopes, se continue a perder e a ganhar nos labirintos da vida. E que, se possível, nos continue a emocionar com a mesma inquietação e tranquilidade com que o fez nesta magnífica noite.  


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