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Texto: ReB Team
Fotografia: Justin Rose
Publicado a: 04/10/2022

De FRET a Vel Nine.

#ReBPlaylist: Setembro 2022

Texto: ReB Team
Fotografia: Justin Rose
Publicado a: 04/10/2022

Os assuntos da alma são a prioridade numa selecção com nove escolhas que vão a quase todo o lado (e, mesmo assim, o rap ocupa uma grande parte da atenção, principalmente aquele que se faz de caneta afiada).


[FRET] “THREE FOOT TWITCH”

Vivemos num mundo sem verdades universais, mas de consensos sólidos — um deles é sobre o talento de Mick Harris, ex-Napalm Death, por muitos considerado o progenitor das cadências grindcore, actual Scorn e, claro, mentor de FRET. Tanto na bateria, como nas frentes mais electrónicas, o britânico Harris tem levado o som extremo a lugares onde poucos se atreveram a chegar antes. Já este mês, com o selo da icónica L.I.E.S., chega mais uma prova disso na forma de 10 malhonas descomunais (e escolher é o grande desafio), no LP digital BECAUSE OF THE WEAK. De fraco não há nada neste conjunto de golpes secos de intercepções techno com industrial de acidez elevada, síncope quebrada e ambientes escuros. Leram tudo bem: não há boa disposição. Contudo, experimentem largar uma bomba como “THREE FOOT TWITCH” numa pista de dança e digam-me se o soalho aguenta com a potência, a sucessão rítmica de várias percussões, os graves protuberantes e as expansões melódicas entre o noise e o melhor que a bass culture tem dado de há 30 anos para cá. Estou disposto a apostar que se abrirão buracos no chão.

– André Forte


[Royal Bermuda] “Milonga Portuñola”

Imaginemos que, num cenário cosmicamente hipotético, algures numa casa de fados heterodoxa, e a funcionar em horário fora de horas, por coincidência cósmica o Paco de Lucía, o Jorge Cardoso e Manolo Sanlúcar se encontravam com o Tó Trips, o Peixe, o Frankie Chavez, o Filho da Mãe e mais um conjunto de anónimos apaixonados por cordas e madeiras. Seria uma bela pândega, essa, a que neste nosso cenário se acrescentavam dois jovens, discretos observadores, sentados numa mesa recatada a observar e a absorver tudo o que ouviam. Esses dois jovens são André Parafina e Diogo Esparteiro, que em dupla formam os Royal Bermuda. Sempiterna, o primeiro álbum da dupla acabado de lançar pela nova Palmtown Records, tem o sabor dessas noites boémias em que se escutam os mestres, e onde os sons nascem, se misturam e acontecem na efemeridade do momento. Mas assume também uma irresistível sonoridade nómada, onde as tradições do fado se podem encontrar com as do flamenco e da milonga, fazendo confluir as paisagens portuguesas, andaluzes, latino americanas. Parafina e Esparteiro são virtuosos no seu manusear das cordas e das madeiras, mesmo que nunca percam a sujidade própria de uma música que também vive do efémero, bem regada com um copo de vinho que sempre chega para quem se juntar ao encontro. Dizem querer que a sua música faça esquecer os problemas terrenos, e daí o apelo hedonista à escuta livre. Mas esta música de trânsitos, de encontros, e amplos espectros sonoros, nunca pode obliterar que a imaginação que nasce do som é também uma forma não de esquecer, mas de superar os problemas terrenos, convidando-nos para uma viagem onde talvez possamos ser mais livres e felizes. Em tempos de pessimismo, que se brinde também a essa bela possibilidade. À nossa!

– João Mineiro


[Blood Orange] “Wish”

Este ano o equinócio de Outono chegou uma semana mais cedo pela mão de Blood Orange e o seu mais recente EP, Four Songs. Além de ser um aclamado produtor, songwriter e multi-instrumentista, o artista nascido Dev Hynes também é capaz de controlar a órbita da Terra. A prova disso é “Wish”, uma música que inaugura esta estação do ano e nos recebe de braços abertos, na ressaca do festivo Verão e dos dias que vão ficando cada vez mais pequenos. 

Hynes acolchoa a chegada desta estação mais fria com um pacato instrumental de bateria e sintetizadores etéreos e ocasionais dedilhados de guitarra envolvida em reverb, suaves como as primeiras folhas castanhas a cair das árvores. À voz de Blood Orange juntam-se as de Liam Benzvi e Eva em diálogos harmoniosamente cantados em cima de arrependimento e desejos que não se concretizam. O resultado é uma música simples com uma progressão natural e bem orquestrada. 

– Miguel Santos


[ALMA ATA] “CLARO”

Se há algo que não é fácil é dar-se clareza a assuntos de alma. E se a única certeza que existe na vida é a morte, ALMA ATA abrem “CLARO” decididos a refutar essa ideia, trazendo outra quase inegável, pela veemência com que a carregam: se há perda, “claro” que há luto, e esta música vem mostrar isso.

Assim que a melodia começa, com notas em jeito de quem ainda se está a habituar ao que quer transmitir, somos transportados para um plano que se adivinharia como nocturno, numa melodia que facilmente se ouviria num passeio introspectivo, de luzes de casas e carros lá ao longe, do topo de um miradouro ou de uma rua numa cidade qualquer; e, embalados nisto, depois de muitos “claros” que tentam ganhar coragem para se materializar em algo mais, forma-se uma composição que nos atinge de imediato, com um assolo que se sente no peito: “Claro, ainda te vejo. Não sossego, é suposto”, seguido pela réplica: “guardo memórias que odeio, em desespero, desde que foste”, versos que, embora enlaçados de mágoa, se mostram de uma beleza digna de evoluir para um nó na garganta.

Há uma liberdade que se sente ao ouvir um desabafo que é finalmente purgado, depois de andar às voltas no silêncio em forma de pensamentos que não querem calar. Este é um sentimento comum a toda a faixa, que parece ser um voltar a uma ferida que ainda não sarou totalmente, apesar do tempo que vai passando sem sequer se dar por isso: “Não é que um dia são semanas, depois meses, depois anos“, algo que funciona como uma normalização, mesmo que indirecta, de que cada um de nós tem o seu processo de cura e que a recuperação não é linear; que se faça uma pausa para apreciar o bonito — e necessário — que é a vulnerabilidade enquanto arte.

Não é todos os dias que aparece uma música que nos relembra da magia que há em ser-se tocado a um nível profundo por uma peça artística. Por isso, este mês temos a agradecer a Caronte, Pedro, o Mau e Tomaz pelo feito. Seguindo as linhas dessa música portuguesa que pretendem honrar, invocando um “se eu chorar, perdoa” de Fausto ou as letras confessionais de outros ilustres nomes como Jorge Palma ou Sérgio Godinho, esta faixa parece ser uma aceitação do que se sente, dizendo “claro” a algo que é tão escuro, com todo o peso que isso traz, na esperança de fazer as pazes com o tumulto interior. Apresentar-se sem máscaras é, para além de um feito, uma virtude, e pode até ser inebriante– já dizia Papillon em tempos: “Não há nada mais sexy do que dizer a verdade”. Um brinde a ser-se honesto.

– Beatriz Freitas


[ALMA ATA] “NÃO MINTAS”

Depois da acupuntura rítmica de “Lúpulo”, “NÃO MINTAS” coloca os ALMA ATA a ir mais além dentro do negrume que ainda cobre certas zonas da música de clube. A guitarra de Tomaz cria tensão sobre a hipnótica sequência de drums operada por Pedro, o Mau, enquanto Miguel Afonso implora por sinceridade e afasta o mau olhado através de rezas e mezinhas, dançando em torno da própria sina, naquela que é uma das faixas mais inevitáveis do enigmático ALMA // ATA.

– Gonçalo Oliveira


[Ab-Soul] “Moonshooter”

Talvez a saída de cena, no palco da Top Dawg Entertainment, de Kendrick Lamar abra o devido espaço a figuras como Ab-Soul que, apesar de beneficiarem do peso do selo que representam há anos ao lado do incomparável K-Dot, se vêem simultaneamente ofuscadas por um talento ainda mais flagrante que o próprio. E nesse aspecto o caso de Ab-Soul é paradigmático, sendo alguém que certamente elevou a fasquia do próprio Kendrick Lamar desde a altura em que a parceria Black Hippy fazia mossa precisamente pela força conjunta. Hoje é mais difícil que nunca defender que Ab-Soul tem uma escrita tecnicamente mais apurada que a do parceiro com estatuto de G.O.A.T., mas também não é isso que nos traz aqui. É, sim, o regresso do “Black Lip Pastor” aos bem-aventurados sermões, de banda sonora apropriada ao tom das passagens: “But who give a shit? The long lost lyricist/ N***** got rich talkin’ nonsense, get yours” A quem sirva a carapuça. “It’s kill or be killed”. E é para a lua que este pastor aponta no seu regresso em “Moonshooter”. Não admira que tenha tantos buracos.

– Paulo Pena


[Nicholas Craven & Boldy James] “Designer Drugs”

Boldy James e Nicholas Craven resolveram despedir-se do mês de Setembro ao complicar as contas de toda a gente sobre qual será o melhor projecto do mês que terminou. Fair Exchange No Robbery estreitou a distância entre Montréal e Detroit, berços de Craven e Boldy, respectivamente, para novo trabalho colaborativo deste duo de mestres nas suas áreas de domínio. “Designer Drugs” é um dos 10 exemplos espalhados por este longa-duração cuja capa é uma referência directa a uma embalagem de sirop d’érable, ou maple syrup por terras americanas e xarope de ácer por cá. Conhecida por este xarope, as texturas adocicadas da cidade de Québec estendem-se muito para lá deste produto, culpa dos beats recheados de melodias e samples divinais que vão açucarando (pun intended) este disco, como é o caso do beat interessantíssimo da faixa que destaco. Um trompete sublime carregado de funk sobressai na produção, mas ainda há espaço para um piano bem alegre que lhe agrega uma camada bastante groovy e uma bateria a definir os tempos do beat. Tudo acompanhado do tom sempre relaxante e descontraído de Boldy James, que, apesar disso, foi debitando de forma intensa munido do seu flow já algo característico várias rimas recheadas de egotripping, alguns duplos sentidos e, claro, algumas linhas para mais tarde recordar como “Real hustler, i could sell a vampire, blood”. Capaz de fazer qualquer ouvinte esboçar um pequeno sorriso seguido de um rewind para garantir que ouviu bem o que o rapper de Detroit acabou de cuspir.

– Carlos Almeida


[Algiers] “Bite Back” (ft. billy woods & Backxwash)

É com “Bite Back” que os Algiers, conjunto de Atlanta formado por Franklin James Fisher, Ryan Mahan, Lee Tesche e Matt Tong, abrem um novo ciclo e, com isso, abrem novos caminhos sonoros, tal como nos têm habituado ao longo da sua discografia.

No primeiro lançamento do quarteto da Matador Records desde There Is No Year, de 2020, os Algiers recrutaram a ajuda de billy woods e Backxwash para esta odisseia de hip hop industrial com seis minutos de duração. O beat lembra algo que os clipping. podiam ter apresentado num dos seus últimos dois discos com a sua junção entre elementos de horrorcore e soul distópico a misturarem-se no caldeirão de rock experimental dos Algiers. É uma faixa desorientadora e intensa, uma experiência sonora viciante, um ambiente perfeito para o carisma expressionista de billy woods e Backxwash brilharem. “Bite back the hand that feeds you if it’s poison”, indeed.

– Miguel Rocha


[Vel Nine] “Big League Chew (Legacies)”

Quando a ouvimos pela primeira vez, Vel Nine ainda era Vel The Wonder e atirava-se ferozmente a um instrumental de 4thBeats no canal de YouTube da Top Shelf Premium. Ficámos logo com vontade de ouvi-la a rimar ao lado de Roc Marci ou em beats de gente como Alchemist e Conductor (e do próprio Marciano), um desejo que, depois do que escutámos em Freakjet, disco que lançou no início deste mês, poderá estar mais próximo de acontecer. Produzido na íntegra por Zoomo, o projecto é uma série de tacadas certeiras da rapper californiana (aqui mais próxima de uma estética/som da Costa Este), algumas delas dadas ao lado de YL, Starker e Koncept Jack$on. Porém, é a solo que melhor vinca a sua autoridade: numa produção com apontamentos rítmicos subtis, graves proeminentes e um sample principal cheio de soul a impor-se de forma mais descarada, “Big League Chew (Legacies)” é uma das melhores demonstrações daquilo que Alyssa Romo consegue fazer quando lhe metem um microfone à frente. Poderosa.

– Alexandre Ribeiro

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