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Fotografia: Luís Belo
Publicado a: 23/07/2022

Diferentes maneiras e feitios.

Que Jazz É Este?’22 – Dia 3: ser ou não ser, eis a questão…

Fotografia: Luís Belo
Publicado a: 23/07/2022

“É jazz ou não é jazz?” Esta pergunta tem gerado muitos debates ao longo das décadas, mas, curiosamente, quase nunca entre os músicos que têm algum tipo de relação com esta cultura. E há de todos os tipos, pois claro: os que seguem com rigor a tradição; os que a conhecem, mas preferem orbitar em torno dela; os que a ignoram e ainda assim produzem objectos artísticos que até coincidem com ela; outros ainda que a estudam só para a fazer implodir sempre que têm a oportunidade.

O Carmo81 recebeu ontem a última das três conversas para aí programadas. Gonçalo Falcão da revista jazz.pt, Nuno Trocado da Associação Porta Jazz e Eduardo Lopes da Universidade de Évora procuraram responder à pergunta numa acesa conversa moderada por Catarina Machado. No espaço de uma hora não seria possível, certamente, arrumar uma questão tão complexa, mas alcançaram-se ideias válidas: o jazz acontece quando quem o faz tem uma ética particular, respeita a história, as origens e a tradição, compreende as importantes noções de liberdade e democracia, está aberto à invenção espontânea. Acontecerá de muitas outras maneiras e feitios, certamente, mas a mais natural e firme conclusão é que o jazz é muitas coisas para muitas pessoas. E ontem isso ficou claro em três momentos distintos.



No Jardim da Casa do Miradouro, de pés descalços na relva fresca tocaram os Garfo do saxofonista Bernardo Tinoco, do trompetista João Almeida, do contrabaixista João Fragoso e do baterista João Sousa. Sobre eles escrevi, quando lançaram o álbum de que ontem executaram basto material, que mesmo sendo um primeiro passo, “sempre decisivo em qualquer aventura” não deixava de ser “assertivo, seguro, dado com a confiança de quem acredita no desconhecido, de quem não teme guinar numa direcção quando o trilho mais calcorreado parece apontar para o lado oposto”. E depois acrescentava: “Todos os músicos dos Garfo demonstram possuir sólidas competências técnicas, conquistadas academicamente, mas aprimoradas da única forma possível, em múltiplos palcos e contextos, ao lado de outros músicos com mais experiência, explorando diferentes paisagens”.

Foi a primeira vez que os vi ao vivo com esta formação, mas a ideia confirma-se. Há uma intensidade feérica na sua entrega, com o tom fundo e granular de Bernardo Tinoco a impor-se com naturalidade, mas sem tirar brilho ao trompetismo de angulosa abstracção de João Almeida. O interessante, no entanto, é que mesmo havendo espaço para a expressão individual de todos os membros do quarteto, os Garfo soam como uma coesa unidade, facto assinalável já que muitos outros colectivos podem demorar anos a alcançar esse estado de telepática empatia. Notável o solo com arco de Fragoso, com todos os outros músicos remetidos a um respeitoso silêncio, com o tom de madeira do seu instrumento a encaixar-se na perfeição com a natureza circundante. Até os pássaros parecem ter gostado, chilreando pontualmente em harmónica aprovação. Isto é jazz.



Depois do jantar, o Parque Aquilino Ribeiro encheu-se para um enorme concerto de José James que não podia ser mais diferente daquele que os Garfo assinaram um par de horas antes. Estrutura em vez de invenção livre, rigor em vez de flexível demanda, groove em vez de estilhaços de tempo. James é um líder carismático, comunicativo e mostrou-se genuinamente empolgado por estar ali, elogiou as gentes e a comida local (como não?…), mostrou-se realmente satisfeito por ter conhecido jovens músicos, falou directamente com eles. E a dada altura deu-lhes um conselho: “Gravem tudo, até as ideias mais estúpidas. Um dia, ia eu num comboio de Brooklyn para Manhattan, para uma sessão de escrita, sem nada preparado, e ao atravessar a ponte vendo a Estátua da Liberdade ao longe veio-me à ideia uma pequena frase de baixo. Peguei no telefone, pressionei ‘gravar’ e cantei a linha de baixo…” E quando exemplificou o que fez, instantaneamente, a banda seguiu-o, pegando na tal linha de baixo inicialmente cantada e disparando a partir daí. Momento ensaiado, obviamente, um “pormenor” que indicia que estes músicos não temem ser igualmente entertainers, mas ainda assim tremendamente eficazes na sua capacidade de empolgar a plateia. 

James fez-se acompanhar de uma super banda: BigYuki no piano e sintetizadores, um músico tremendo que já conhecíamos de registos de Kassa Overall, Marcus Strickland ou Mark Guiliana além, claro, de registos em nome próprio incluindo Neon Chapter, lançado o ano passado com selo da Universal Classics & Jazz; Yves Fernandez ocupou-se do baixo, tarefa que desempenha igualmente em trabalhos de Lianne La Havas ou Anna Phoebe; e na bateria estava um gigante, Richard Spaven, músico que passou em nome próprio por uma das edições anteriores do Que Jazz É Este? e que, confidenciou-nos Ana Bento da Gira sol Azul, foi determinante para que José James encaixasse esta data na sua agenda — Spaven é um monstro que além de ter vários e muito recomendáveis trabalhos como líder, emprestou ainda o seu pulso a gente notável como Jameszoo, Alfa Mist, Jordan Rakei, Petter Eldh ou Stuart McCallum.

Juntos, Spaven, Fernandez e Yuki são uma locomotiva de incrível poder de tracção, uma unidade coesa que executou todas as indicações do líder com classe absoluta e groove irrepreensível: o baixista não teve problemas em tocar com assinalável fluência um tema que o vocalista lhe tinha mostrado no telemóvel uma única vez um par de horas antes, o teclista mostrou-se tão à vontade em pontuar ritmicamente os devaneios dos companheiros como em expandir-se em solos de complexidade neo-clássica e o baterista, bem, o baterista é um gigante, capaz de desmontar o tempo, dançar à sua volta, e encaixar-se sempre onde é suposto, com uma precisão quase matemática e inumana, mas carregada de arremedos de imaginação retumbante. Um absoluto mestre.

Em cima de um trio de tão elevada qualidade, José James voou com facilidade. Revisitou temas antigos da sua discografia, como a fantástica “Park Bench People”, original dos pioneiros hip hop de Los Angeles Freestyle Fellowship erguido em cima de um sample de “Red Clay” de Freddie Hubbard, como fez questão de explicar, ofereceu a sua interpretação da incrível “The Healer” de Erykah Badu – “it’s bigger than religion, hip hop!” – que ainda há dias ouvimos ser tocada pelo DJ de Robert Glasper, e fechou o concerto com uma sentida vénia a Bill Withers através de uma retumbante recriação de “Lovely Day”. Perfeição sem mácula, com a voz a exibir doçura soul e desenvoltura rap com igual à vontade, e com a humildade suficiente e generosidade sentida para dar espaço aos seus companheiros para se espraiarem longamente – um dos “momentos” de Richard Spaven parece ter-se estendido por uns 10 minutos sem que alguém se queixasse, tamanha a beleza geométrica do “quadro” que ali pintou – parecia um Mondrian feito de linhas rítmicas e cores de néon. Liberdade e democracia, portanto. Isto também é jazz.



Depois veio o final da noite, mais uma oportunidade para escutarmos jovens músicos em busca de um lugar no futuro, todos com nervo, todos com fome, aproveitando a presença de veteranos como João Fragoso, Miguel Rodrigues ou o saxofonista galego Xosé Miguelez para exercitarem os seus músculos criativos, numa animada sessão que teve no momento em que Patcho dos Smoke Hills agarrou no microfone e se sentou na beira do palco um dos seus picos de maior entusiasmo. Bonito. E sim, isto também é jazz.


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