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Fotografia: Alexandre Delmar/Casa da Música
Publicado a: 20/07/2022

Um poliglota musical no total domínio das suas capacidades.

Robert Glasper na Casa da Música: um brilho contínuo

Fotografia: Alexandre Delmar/Casa da Música
Publicado a: 20/07/2022

Quantos concertos de jazz começam com um DJ a tocar “4th Chamber” de GZA e “The Healer” de Erykah Badu? Provavelmente só aqueles em que Robert Glasper decide que antes de se sentar ao piano é importante deixar a plateia em ponto de rebuçado. Missão que DJ Jahi Sundance cumpriu com distinção conseguindo ainda encaixar no seu preâmbulo de 10 minutos clássicos de Marvin Gaye, Busta Rhymes ou P.M. Dawn. E se há muitos concertos de jazz que terminam com audiências arrebatadas a aplaudir de pé a performance dos músicos, não serão assim tantos os que começam da mesma maneira. Mas foi precisamente com uma generosa ovação de pé que Robert Glasper foi ontem recebido no Porto, numa Sala Suggia da Casa da Música completamente esgotada.

Robert Glasper foi há dias agraciado com o prémio Miles Davis atribuído pelo Festival de Jazz de Montréal, reconhecimento de uma importante instituição que faz parte de uma cultura que o músico que tem colaborado com artistas tão diversos quanto Common, Flying Lotus, Leon Bridges, Seun Kuti, Herbie Hancock ou, por exemplo, Anderson .Paak nunca permitiu que o contivesse. E, sim, ontem percebeu-se que a linguagem musical exportada de Nova Orleães para o mundo há mais de um século é dominada com fluência absoluta pelo pianista e teclista, mas, como qualquer poliglota que se preze, Glasper é igualmente capaz de “discursar” noutros idiomas, do hip hop à soul, da clássica ao rock. E Glasper fez tudo isso improvisando livremente entre composições estabelecidas, originais da sua lavra e peças criadas no momento em sintonia total com os dois excelentes músicos que o ladeavam: o discreto, mas excelente baixista Burniss Travis (Cécile McLorin Salvant, Samora Pinderhughes, Common, Jamire Williams ou Lianne La Havas contaram todos com a sua mestria em registos lançados no último par de anos) e o monumental Chris Dave, o baterista que apontou a direcção à nova geração (de Makaya McCraven a Kassa Overall e mais além) ao ousar transcrever para o seu kit acústico as síncopes livres de quantização de J Dilla (e que nos últimos anos gravou, por exemplo, com Pino Palladino e Blake Mills, Adele, Kamasi Washington, Raphael Saadiq ou Robbie Robertson!!!). Três monstros, portanto.

Quando entrou em palco, Glasper explicou logo ao que vinha. Para o receber, Jahi Sundance meteu a tocar “Still Shining”, mega clássico que J Dilla produziu para Busta Rhymes: “Adoro este tema”, explicou. “A bateria é toda composta, isto não é um loop, cada elemento serve um propósito”, disse-nos, antes de se mostrar feliz por se estrear finalmente no Porto. “Sempre toquei em Lisboa”, comentou, gerando uma reacção instantânea no público. “Oh shit, there’s a east coast versus west coast thing going on here” foi o desabafo certeiro e bem humorado de Chris Dave.

Glasper avisou que não ia haver setlist e cumpriu, oscilando entre peças que partem de excertos de temas que poderemos reconhecer da série Black Radio, incluindo uma curiosa versão de “Smells Like Teen Spirit” dos Nirvana, e devaneios livres, criados sem mapa, sem ponto de partida óbvio ou resolução assumida. Para lá do piano MIDI (opção curiosa, uma vez que teria certamente sido fácil, tendo em conta a sala que era, ter ali um piano acústico), sintetizador e piano eléctrico Fender Rhodes, Glasper ainda se fez ouvir bastante ao microfone, não temendo usar a sua voz algo alheia à afinação em vários momentos. Obviamente não era defeito, antes feitio, mais uma forma de reclamar liberdade e de não ceder quando o ímpeto para a expressão é total. E como cantava o grande João Gilberto usando as palavras do não menos enorme Tom Jobim “no peito dos desafinados também bate um coração”. 

Todos os músicos solaram bastante ao longo das duas horas de concerto. Burniss Travis é claro devoto da escola Pino Palladino e soa como alguém que estudou a fundo a obra de D’Angelo: é dono de toque suave e ultra melodioso, mas sabe igualmente orientar-se nas curvas e contracurvas rítmicas que Chris Dave lhe apresenta. E o baterista é um mestre absoluto, um poço sem fundo de recursos, tão capaz de swingar com groove amplo quanto de partir o tempo todo em mil estilhaços. Nos “duelos” bem humorados que travou com Glasper saiu quase sempre a ganhar. Mas também a quem é que passa pela cabeça pôr-se a discutir o tempo com quem tem os membros mais afinados que uma peça de alta relojoaria suíça?

Uma sala deste tamanho esgotada para o concerto de um artista que não passa nas rádios de maior audiência e tem espaço reduzido ou nulo na imprensa generalista é facto digno de nota. No público bem diversificado tanto social como culturalmente (a “olho nu” e em observação rápida a plateia parecia ir da Foz ao centro, dos escritórios de advogados aos ateliers de design, da Armani à Vans…) pode também adivinhar-se uma apetência por este tipo de artistas que deverá interessar a programadores e produtores, algo que aliás já se sente num ano que nos tem proporcionado concertos de gente como Joel Ross e Immanuel Wilkins, Cécile McLorin Salvant, Alfa Mist e Camilla George ou James Brandon Lewis e que ainda nos reserva a possibilidade de podermos aplaudir Ashley Henry, Ben LaMar Gay, José James, Irreversible Entanglements ou Anteloper. Venham todos, que temos ouvidos que cheguem.


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