CD / Digital

Papillon

Jony Driver

Sente Isto / 2022

Texto de Miguel Rocha

Publicado a: 22/12/2022

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Regressemos, por um momento, ao ano de 2018. Concretamente, a 21 de Março desse mesmo ano. Nesse dia, aterrava no mundo Deepak Looper, disco com que Rui Pereira – que mais conhecemos como Papillon – ingressou nas aventuras a solo. Se o caminho que já havia traçado lado-a-lado com os seus GROGNation era um de reconhecimento, com Deepak Looper o artista de Mem Martins confirmou-se como um inovador, um storyteller nato, um MC com a capacidade delicada de ombrear a palavra com agressividade e melodia, levando-nos numa viagem pela escola da vida. Brincando um pouco com as palavras, e para quem só comia, cagava e dormia, Papi tinha-nos acabado de brindar com um enorme trabalho. Foi o disco nacional do ano para o Rimas e Batidas. Merecido.

Volvidos quatro anos, muito mudou – para Papillon e para o mundo. Deepak Looper já faz parte (muito merecidamente) do panteão do hip hop tuga. Papillon cresceu, amadureceu, fez experimentações. Aconteceu uma pandemia. A vida mudou. Os GROGNation terminaram. Jony Driver foi lançado.

Quando falamos de um segundo disco, surge sempre à cabeça a discussão, o velho tópico de sophomore slump, ou seja, o segundo lançamento de um artista não corresponder à qualidade do primeiro. Num primeiro disco, um artista tem a vida toda para se preparar – no segundo, o tempo existente já é inferior. Corre-se o risco de a coisa não ficar tão aprimorada. No caso de Papillon, podemos dizer que a expectativa e, consequentemente, a pressão sentida era elevada. Deepak Looper, criado com a ajuda de Slow J¸ responsável pela produção-executiva do álbum, é uma epopeia de 13 estórias da vida de Papi, contadas com o dedo de quem tem o dom da palavra, ornadas por instrumentais que, se por um lado mostravam que Papi e J estavam a par das tendências – e sabiam como utilizá-las para inovar (Deepak Looper é um trabalho bem eclético) –, servem também como backdrop para o storytelling, cavalgando ondas de emoção pujante (nunca nos iremos cansar de “Impasse”) e nostalgia – uma guitarra suave bem posicionada, uma bateria mais espaçosa, um sintetizador mais onírico – que soam como parte da criação do presente. É Papi a transportar-nos por reflexões e considerações de alguém que se mostra estudante da vida. Das situações. De quem o rodeia. 

Com segurança, podemos auferir que Jony Driver não sofre do vírus de um segundo longa-duração revelador de decadência artística. Lançado no passado dia 22 de Novembro, o projecto, em termos de conceito, é uma continuação/sequela de Deepak Looper em múltiplos sentidos. Tal como Deepak Looper, Jony Driver é uma epopeia cinematográfica (a curta de apresentação do disco também aponta nesse sentido) onde a personagem principal são as estórias, antigas e novas, de Papillon. E quando falamos de uma epopeia, não estamos a gozar – Jony Driver tem 13 músicas e 78 minutos de duração, com praticamente todas as faixas a caminhar ou próximas ou acima dos 6 minutos de duração. Arrojado? Sem dúvida, especialmente numa era em que o single é cada vez mais privilegiado ao invés do conceito de álbum. Se podia ser de outra maneira? Não. É denso, o tipo de disco que, com a cultura certa, iria merecer muitas contribuições sobre o significado da sua poesia no Genius. Todavia, assim se requer. A vida também o assim é – densa e complexa, recheada de cinzentos por explorar.

Papillon tem, em si, uma capacidade para se desafiar e parar quebrar pré-concepções sobre a sua música e, em Jony Driver, essa parte do seu ADN torna-se o ponto-chave para entender, pelo menos, as primeiras valências do álbum. Musicalmente, é um disco tão ou mais eclético que Deepak Looper, progressivo nas suas explorações de sons contemporâneos do hip hop e além. Para o ajudar, a lista de ajudantes é de peso. Charlie Beats, lado-a-lado com Papillon, assume as rédeas da produção de grande parte do disco, ficha onde ainda encontramos créditos nos instrumentais de Slow J, Juzicy, Holly, Fumaxa, Nadav e Boss AC.

As faixas longas de Jony Driver oferecem tempo e espaço para existirem as mais variedades paisagens sonoras ao longo do disco. Após aperitivos como “Sweet Spot”, “Chill”+“In” ou “01 Coisa Leve”, lançados entre 2018 e 2022, essa variedade parece ter naturalmente surgido a partir das experimentações e maturação artística traçada pelo artista de Mem Martins durante esse período. “.Y”, terceiro capítulo desta odisseia, é um bom exemplo das várias dimensões que conseguem coexistir dentro da mesma faixa em Jony Driver, o seu momento de trap psicadélico e braggadocious a abrir espaço para noções mais melancólicas e nostálgicas (facto interessante: existe um momento nesta faixa em que o flow de Papillon lembra Holly Hood).

O edifício que se ergue em Jony Driver vive muito das nuances existentes entre a pujança emocional, quasi-indomável de Papillon a lutar contra a passagem do tempo, do avançar da vida, com momentos de reflexão em que se posiciona no presente a lidar com aquilo que passou (e, por consequência, prepara o seu futuro). Em Deepak Looper, já encontrávamos esse lado de Rui Pereira, no contraste entre faixas como a já referida “Impasse” ou “Imediatamente”, fundadas no seu vigor intenso, e “1:AM” ou “Impec”, vitoriosas na sua catarse emotiva. Contudo, em Jony Driver a exploração desses dois momentos ocorre com mais detalhe tanto no storytelling, capaz de evidenciar com mais detalhe a emoção, como nos instrumentais, prontos a alterarem-se conforme o mood que Papi apresenta na sua voz. 

Em “Fe.”, faixa mais curta do disco, Papillon adapta-se, sem problema, ao instrumental tristonho e noturno, cantando um refrão cuja melodia é deliciosa – “Guarda um lugar para mim até voltar a te encontrar/ Que a eterna chama te ilumine, tenho fé que tudo vai passar/ Eu sei que sim, eu sei que sim/Eu sei que sim, eu sei”. “Desperta.” parte da contemplação — dos pedidos de querer “voltar p’rá a ilha” e de o deixar “’tar na minha, na minha miséria” — para a aceitação, com Papillon a dialogar sobre o papel da música da sua vida, de como “Costumava vaguear, por aí, com os meus fones no ouvido/ Sons em modo repetido, só a fingir que não existo” até ao momento actual – “Hoje eu faço parte da música e ela é parte do que eu sou”. Em “Tenta”, em diálogo com Silly (a sua voz incendeia a música), escutamos uma balada deliciosa, capaz de arrebatar corações, com as barras mais românticas que Papi já interpolou – “Histórias de amor de verdade nunca acabam p’la metade/ Ou ‘tamos colocar a teimosia à frente da felicidade?/ Eu não quero ‘tar equivocado nem perder uma oportunidade/ Quero bem mais que um bom bocado/ Quero um pedaço dessa eternidade” –, o refrão soando carinhoso e enternecedor, com as vozes de Rui Pereira e Maria Bentes a interligarem-se como uma só ao cantar “Se eu não tentar, nunca vou saber/ Poder ser que dê certo, pode ser quer não, mas/ Não pares p’a pensar no que poderia ter sido/ O que poderia ter sido não existe, hey”. Belo.

Papi é um contador de estórias nato – já o sabíamos –  mas Jony Driver mais que o confirma como um criador de universos digno de longa-metragem para o grande ecrã. Em “Corre. da Morte”, faixa em que o instrumental revela que Papillon está atento aos movimentos da “Nova Lisboa” de Dino D’Santiago (algo também evidente em “.Sais e Minerais”), o MC rima sobre a sua relação com as forças policiais, construindo uma canção que tanto resvala na empatia como na crítica social. Em “Com.” – faixa que nos faz torcer um bocadinho o nariz por cair numa visão unidimensional da mulher (a de “gold digger“) que já está mais do que gasta –, apresenta um mundo e personagem que lhe permite, em três histórias, auferir notas (quiçá um pouco imperfeitas) sobre dinâmicas de poder e sobre a nossa relação com o capital monetário. Em “Corpo. Mente” e “D.O.R.”, a centerpiece do álbum, apresenta o seu já falecido pai, aproveitando a sua história e a sua relação com ele para lidar com traumas, conversar sobre racismo estrutural e precariedade, deambulando entre várias emoções que reflectem as relações que vamos criando com os nossos. A música, para Papillon, é um escape, e há um verso em “D.O.R” que nos oferece um dos retratos mais crus do artista: “Foi essa dor que fez o Papillon que anima as massas”. Ao referir isso, e com o rewind por vários momentos de Deepak Looper que referem o seu pai em “Jony Driver”, faixa que termina o álbum a que dá título, podemos concluir que este conjunto de temas é a configuração que o artista arranjou para mostrar porque é que ele como é. 

Se Deepak Looper era a carta de apresentação da sua identidade, Jony Driver é a revelação de como esta foi construída. São discos que se complementam e que, em conjunto, apresentam quem é Rui Pereira – fã de pop culture (notem as referências à sétima arte ao longo do disco, de O Lobo de Wall Street até À Procura de Nemo), tipo engraçado, pensador crítico, trabalhador capaz de potenciar o seu talento rumo ao alcançar do sonho. Com isso tirado da checklist, Papillon toma finalmente controlo – está apresentado. É agora ele “quem conduz”, como canta em “Metamorfose Fase I”, canção que faz a ponte entre os projetos e abre Jony Driver (é uma das mais orelhudas do álbum). Daqui para a frente, com tanta história por contar, é que ele quem dita o game – poucos chegam ao seu nível.

Jony Driver é um daqueles trabalhos discográficos em que continuadas audições permitem novas descobertas. De cada vez que carregamos play encontramos algo novo nos instrumentais, descobrimos uma barra que ajuda a erguer uma nova camada no edifício que é Rui Pereira, indíviduo, e Papillon, o artista. Um não existe sem o outro, o segundo a surgir como uma extensão do primeiro, capaz de musicar as suas considerações sobre aquilo que passou, aquilo que o rodeia, visando aprender e crescer. 

Ao expor a sua própria vulnerabilidade – mais uma vez –, e deambular pelos seus próprios traumas, Papillon meteu mais um tijolo seu nesse edifício que é o hip hop tuga, adicionando uma nova entrada a um legado artístico que, apesar de tudo o que já mostrou, o torna num dos mais criativos e excitantes artistas portugueses. Como este outrora disse: “Se eu morrer isto é para sempre”. Isso é cada vez mais uma certeza.


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