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Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 06/10/2025

De Lord Spikeheart a Joana Guerra & Yaw Tembe.

OUT.FEST’25 — dia 4: dez tons de experimentalismo

Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 06/10/2025

Quarta jornada, outras tantas salas e 14 propostas musicais programadas para um sábado, dia farto. É disto também feito o lado exploratório, entre uma ampla gama de possibilidades. Fazer agrupar e suceder os elementos, emparelhar com os espaços é tarefa para sabedores. A escolha do que ver e ouvir é de cada qual, comportando um mapeamento das vontades, em tarde que apenas no arranque se encontra um ponto único. Daí em diante é sempre a optar, ou se está numa ou noutra sala — é da natureza da não omnipresença. Num dia assim, os caminhos que vão dar à SIRB “Os Penicheiros”, à vizinha SALA 6, ao mais afastado Gasoline e ao lugar de confluência ADAO, tornam-se carreiros das gentes que esgotaram os bilhetes disponíveis para este penúltimo dia do OUT.FEST’25

A funcionário cabem as despesas desse ponto único, zeloso cumpridor da primeira proposta da tarde na SIRB “Os Penicheiros”. Pedro Tavares é funcionário, e na função é responsável por uma obra que se vai inscrevendo em arquivos editoriais como Holuzam, Variz ou na Glossy Mistakes. Apresenta-se em momento de revelação do que é horizonte, como álbum lançado na véspera pela Holuzam. Traz na escuta em palco uma visão rumo ao limite do que a vista alcança. Reconhecem-lhe atributos dessa via aberta por Jon Hassell — figura tutelar invariável nestas paisagens que prosseguem a apontar para um “quarto mundo”. funcionário conduz agora por territórios mais livres que outrora, onde desde as possibilidades dos sintetizadores se emanam coloridas nuances, capazes de perdurarem os confrontos luminosos de uma aurora. É por isso mesmo uma escuta que nos detém incólumes na observação contemplativa e proto-meditativa — respirar, só respirar para existir, em compromisso ambiental involuntário.

A coerência do rumo da tarde, sem sair do lugar, trouxe em acrescento a função vital do respiro. Rai Tateishi vem com o poderio da respiração na função do som das flautas ancestrais e nisso no rasto do tal neotradicionalismo. Forma parte da conjuntura goat (jp) como cara-metade da percussão. Precisamente, é essa uma dimensão acrescida que traz enquanto operador de flautas. Fá-las soar em  tantos momentos como instrumentos percutidos. Voraz no sopro, circular na respiração, inquieto no digitar e, por consequência, hipnótico no resultado. Encanto visual no escutar a dupla flauta nativa americana com que começa em respiração circular. Sucede em sopros impetuosos na abordagem pós-canónica à flauta transversal irlandesa, da qual traz um mar de vozes muito pelo processamento em tempo real de Koshiro Hino, também ele um membro de goat (jp). Redobra o espanto sonoro ao visual com a exuberante e imponente fujara, a flauta que emana sobretons em cascata. Um legado da cultura eslovaca e do ciclo pastoril — um monumento sonoro de muito baixas frequências. Adiante ouviram-se os sucessivos pedais pentatónicos com o orgão de tubos bocal khaen, emblemático de Laos. Tateishi é um mestre também no toque do shinobue, a flauta transversal japonesa. Tudo isso está patente em Presence, registo a solo em seis andamentos-presenças. Tempo ainda, em palco, para nos estarrecer, em bom sentido, com a shakuhachi, uma ancestral forma japonesa de flauta bisel em bambu. Fez-nos recordar a recente passagem de FUJI||||||||||TA, pelo ímpeto do ar, ou até mesmo entender mais o enveredar de outros músicos pelas flautas orientais como sucede com Shabaka Hutchings.



A sucessão das proposta segue inatacável com a dupla formada entre a violoncelista Joana Guerra e o trompetista Yaw Tembe. Juntos movem montanhas — apetece tanto assim designar a sua música —, já que atribuíram o sapiente nome Orogénese ao seu registo pela Facada Records. Dispostos aqui, nós e eles, a enrugar a crosta terrestre transposta ao espaço aural. Há muito para além de violoncelo e trompete ao dispor, embora despontem desse conjugação. Juntam-lhe elementos vários, de ciclos de maracas a um vozeio lírico, processamento sonoro em pedais que sobrelevam os sons e produzem uma ideia de antiguidade, não-humana, antes geológica, de milhões de anos. O tempo é uma condição para tais processos terem lugar. A voz traz-nos essa dimensão, aponta para o mais que remoto. Chocalhares e linhas de teclado vislumbram o cimo dos lugares, os relevos erguidos. Abraçam-se recorrentes os sopros e as cordas, em tensões tectónicas, impondo regimes compressivos capazes dos tais moveres que conduzem ao enrugamento crustal. Saber desta construção a dois e da história das montanhas torna-se uma narrativa telúrica de uma conjugação lúcida. Um processo lento e saboroso que teve em momentos vitais impulsos que afirmaram o sentido do movimento. A música a mover montanhas.

A finalizar o bloco da tarde neste espaço, com a prestação de Miki Yui, atingiu-se a beleza intricada dos sons — os orgânicos e inorgânicos, os de campo com os electrónicos. Em estreia em Portugal, a nipónica Yui, radicada desde tempos em Düsseldorf, onde formalizou Japandorf, esteve ligada à lendária figura musical Klaus Dinger dos Kraftwerk e dos Neu! e foi cultivando uma actividade de recolhas e construções de paisagens sonoras. Entre parcerias, destaque para a colaboração à abordagem do poeta minimalista Robert Lax em “Step Across The Border”, com Nicolas Humbert e que agora vê editada a musica em Living in the present. Contudo, Miki Yui tem uma obra individual regular e dedicada em que As If (2025) é o capítulo mais recente. É uma construção táctil e sensível a que transpõe do seu sistema de electrónica compacto. Uma colheita prévia de sons naturais permite-lhe descrever uma paisagem imaginária baseada no real. Uma ficção em que entram sons de aves a insectos, fontes animais sonoras interpostas em paisagens laboriosas de electrónica onde fluí a matéria. Pequenos ciclos sonoros que dispõe e liberta para fruição contínua no espaço, onde a água é um canal recorrente de transporte. Umas vezes emersos, por familiaridade com o concreto som que aponta à chuva, outras por um requintado ambiente como que servindo um delicado chá japonês. Para o final fica uma evidente submersão, sob o efeito de suaves rebentamento das ondas — é como ver o oscilar tentacular de anémonas-do-mar. Flores e florações, como um perfume que sobressai da música de Yui, seja por terra ou por mar.



Entre as 19 e as 21 horas, o OUT.FEST desdobrou-se também pelo Gasoline naquela que foi uma dupla sessão a pensar nos amantes do hardcore. O primeiro foi o queniano Lord Spikeheart, que representa essa sonoridade mais porosa nos campos da música digital, aliando-se de um amplo leque de influências que vão desde o heavy metal mais tenebroso até ao rap vindo das trevas. Muita descarga eléctrica foi sentida ao longo da sua performance, que encheu por completo o espaço e obrigou a que muitos tivessem de ficar ao fundo da sala sem visão para o palco ou, no pior cenário, a ouvir do lado de fora da porta. Gritaria, muito glitch e distorção, carisma e pilhas com bateria infinita foram os trunfos que Spikeheart usou para conquistar o público, que respondeu com incessantes movimentos de headbanging, suor e até um moshpit.

A segunda ronda dentro do Gasoline estava reservada para bbb hairdryer, a banda queercore que tem dado voz aos mais marginalizados através do seu rock caustico e pesado feito de ecos de punk ou grunge. A felicidade fica à porta, pois diante do quarteto formado por Elisabete Guerra, Francisco Couto, Miguel Gomes e chica — que tocou de costas para a audiência — só dá mesmo para purgar e soltar a raiva acumulada de uma vida inteira. Entre feedbacks, relatos depressivos e palavras de ordem anti-machismo, o grupo passou em revista alguns temas patentes nos dois discos editados — Kingdom Hearts II Final Mix: pretty generic radio pop with a few fucks and edgelord lyrics (2022) e A Single Mother / A Single Woman / An Only Child (2024) —, replicando ainda na perfeição o tema “Territorial Pissings” dos Nirvana pelo meio.



Já havíamos apontado um sentido de re-invenção tradicional à música de Amuleto Apotropaico, uma ideia vinda da apresentação própria como “o folclore e as sombras da memória”. António Feiteira e Francisco Pedro Oliveira são nestes tempos mais actuais uma dupla a despertar e a justificar muita atenção — lembramos algo similar com o sucedido com os Ermo. Duplas que partem do caldeirão etnomusical português para servir novas composições, onde as novas ferramentas ao dispor trazem a frescura. Isso fica muito presente em disco e assim definitivamente documentado, já que o tempo em que conduzem a sua autoria musical é extraordinariamente rápido. Depois da escuta na imersiva prestação na ARCA da Osso, agora neste OUT.FEST poderíamos ver retomado um sentido da sua viagem. Mas de pronto fica entendido que, e como melhor definem, “nada disto é uma visão nostálgica do passado a um tempo que nunca o foi”. Aplicação concreta no olhar recobrado já à sua própria música. Dedicados como devotos à electrónica modular que segue com escudo metálico na frente de palco — objectificação da ideia de afugentar males. Emaranhados num tesouro de ritmos prontos a querer soltar dali, um jogo de tensão que vai libertando vontades. Como um pote de ferro ao lume brando da fogueira, onde o borbulhar do caldo liberta o que se há-de vir a provar. É uma tapeçaria de IDM com heranças culturais próximas, que faz com que se saboreie o discurso sonoro com redobrado interesse e numa efectiva expectativa que algo vai acontecer. Em que, mesmo sem um desfecho revelador, se mantém a chama com entusiasmo bem acesa.

Em mais uma estreia nacional promovida pelo OUT.FEST, tivemos a oportunidade de dançar ao som de uma banda sonora cada vez menos habitual nos dias que correm. Foi o alemão GHOST DUBS quem assumiu o palco, trazendo consigo o legado que os grandes maquinistas jamaicanos protagonizaram durante a ascensão do dub. Mas o DJ e produtor é muito mais do que apenas eco de uma memória perdida no tempo, pois a música que cria reflecte todas as mutações — estéticas e tecnológicas — pelas quais este tipo de sonoridade passou, fazendo a emblemática cadência de passo lento percorrer corredores mais contemporâneos como os da bass music ou do dubstep. Muito calor na pista, fumo no ar e suor a escorrer dos corpos numa adesão em pleno ao projecto de Michael Fiedler, que recebeu um forte aplauso na despedida.



Todas as oportunidades são poucas para poder ver em acção um qualquer projecto encabeçado pelo mago Jonathan Uliel Saldanha. Na noite de sábado, o Barreiro permitiu-nos testemunhar mais uma dessas apresentações, desta vez com HHY & The Kampala Unit. Em ano de disco novo — Turbo Meltdown saiu em Abril passado pela influente Nyege Nyege — o mutante grupo apresentou-se sob o formato de dupla, apenas com Jonathan Uliel Saldanha na mesa de operações electrónicas e com Florence Nandawula no trompete e na voz. Foi sem dúvida um dos momentos mais apreciados pelo público, que dançou efusivamente ao som da explosiva combinação de estética clubbing europeia com percussão e polirritmia tradicional africana, que resulta numa selva de ritmos frenéticos e vai do dub ao techno num piscar de olhos.

Num quase fim de festa, surge no alinhamento Moin, trio de Tom Halstead, Joe Andrews (aka Raime) e Valentina Magaletti. Numa noite com a participação especial de Sophia Al-Maria na voz e poesia dita. Tivessem trazido o saxofonista Ben Vince e a recreação de “See” do último longa duração Belly Up poderia estar assegurada em todas as vertentes. Entra-se numa bolha que leva para uns já longínquos anos 90, com um pós-rock a inundar o reduto da ADAO. Moin vão alicerçando a sua música numa ideia de “pós-whatever”, dispostos a acumular densidade e disparos estimulantes, retardando um qualquer desfecho da noite. Propagada a mensagem “Hello? Do you hear me? / Can you hear me? / You don’t know me / But I know you / I sure as fuck know you”, estava criada uma atmosfera de recusa improvável, partindo desse “Melon”. A tarola de Magaletti soava apetecível, em disparos ecoantes — dubianamente. As “aparições” de Sophia Al-Maria redobraram de interesse o discurso sónico, rejuvenescido pela palavras cativando a atenção. Uma passagem refrescante num dia já de si farto e de boa colheita de sons, em que houve espaço suplementar de encaixe numa sonoridade em nada nova, mas com toque certeiro. Servido com duas pedras de gelo na última bebida — não mais que duas, que podem ser atribuídas tanto à tarola como às palavras. E assim se ouvem bem contínuos riffs de guitarras num final de missão pelo certame do Barreiro.


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