As conversas, as ideias e o seus tempos, dos que se encontram uma vez mais neste festival, e as que oficialmente estão programadas. As que juntaram Matilde Meireles a Raquel Castro no final de tarde de ontem, 2 de Outubro, seguem em arco temporal e fazem o convite ao final da edição de 2025 do OUT.FEST — Festival Internacional de Música Exploratória do Barreiro. Esta 21ª edição é a mais alargada de sempre em conversas com artistas presentes. Já a noite anterior, que marcou o verdadeiro arranque da presente edição (no dia 1) assim apontava. A conversa foi com Erik Dæhlin, que apresentará uma performance sonora ao ar livre na tarde de domingo (5 de Outubro) procurando o ressoar do espaço pós-industrial do Barreiro. Já Meireles, como artista sonora, estreará nesse mesmo dia “Tangled and in Perpetual Motion”, partindo do vasto arquivo sonoro desta cidade. Dæhlin e Meireles estão em trabalho de campo, na cidade, e no seu espaço acústico para ligar memória e dinâmicas deste presente como fonte de estímulos. Meireles assume uma razão: “Toma tempo”, precisa de tempo com as vozes dos lugares; “sou lenta, porque preciso de entender como as coisas se desdobram em diferentes tempos humanos — é preciso despender tempo”. E isso é uma constante a operar nos seus trabalhos, mulher no campo da arte sonora dominada no masculino.
A exploração e novos paradigmas sonoros partindo de instrumentos convencionais como prática artística feminina, é apontada de forma subliminar nas primeiras propostas do dia. Primeiro com Carme López e mais adiante com Leila Bordreuil. López traz consigo uma ideia de dócil confrontação com a gaita-de-fole galega. Instrumento estridente e de predomínios masculinos, de carácter de afirmação social e marcial, como é expoente em tantas paradas. Assim como a Brìghde Chaimbeul — que passou pelo OUT.FEST’23 —, apontada ao experimentalismo deste instrumento desde a Ilha de Sky, assim pode ser escutada Carmen López desde a Galiza. Contudo, López fá-lo — o concerto demonstra-o — como música para ser vista desafiando a tradição, como desvelado no registo debutante Quintela (2024), onde constrói uma narrativa feita de elementos soltos. Começa por dar mais vozes auxiliares drones do bordão e ronquetas da sua gaita-de-fole. Escusa-se ao incisivo timbre melódico da ponteira, e são notas pedais acumuladas nas tonalidades graves as que saem tubulares, que liberta como pré-gravadas e que emulam o sentido tonal dominante. Um coro de drones efectivo. A melodia recria-a à parte num momento posterior através do teclado auxiliar. Para depois fazer da alma do instrumento — a dupla palheta de cana — um elemento exterior e dócil, sussurrante entre lábios. Eis que volta às notas pedais, para tudo ligar por partes, vindas de um todo — desmoronando hegemonias tímbricas e instrumentais.
Para o sírio-germânico rashad becker, o mundo que conhecemos será provavelmente um lugar sem escapatória. Força maior na medida que é através da sua electrónica de dispositivos semi-modulares que concebe um outro universo. Capaz de estabelecer padrões de convivência e existencialismo sónico com entidades e paisagens intricadas que desenvolve de forma austera e até cómica em simultâneo. Revelados os capítulos iniciais com Traditional Music of Notional Species, em dois volumes por separado, tem no fresco the incident (2025) um notável epílogo e que se liga à hora de implantação espectral na SIRB “Os Penicheiros” que oferece. Agora sim, e ao contrário do experimentado no estrado de Carmen López, as luzes e as máquinas de fumos fazem mais sentido. becker, mais que um apresentar, inscreve um ecossistema sónico onde habitam entidades que de pronto como que estão em processos de fuga constante. Há um processo que, embora ausente na batida, desponta ao ritmo frenético, fluxos sensoriais, numa contemplação estática e cerebral — havendo mesmo alguém que dança.
De volta ao tema das mulheres artistas e da desobstrução de instrumentos musicais convencionais no palco da ADAO, Associação Desenvolvimento Artes e Ofícios — Leila Bordreuil. Segundo momento dessa ideia subtil apontada horas antes com uma gaita-de-fole e agora com novo desenvolvimento e demonstração partindo de um violoncelo. Agora numa via feita de assombro sonoro e de forma caustica e contundente. Bordreuil que se assumiu a solo, numa lavagem cerebral sónica com o apropriadamente intitulado Headflush (2019), desde um violoncelo hiper-amplificado e em nada processado. Apresta-se a co-adjuvar com sintetizador modular, leitor de cassete e outros auxiliares de memória sónica em palco. Tudo bate certo quando na memória do espaço estamos um antigo quartel de bombeiros e o mais recente registo dá por título 1991, Summer, Huntington Garage Fire. Desponta numa presença obsessiva sónica com o violoncelo, volumetria aturada a alimentar-se por si mesma — feedback gravíssimo. Trespassa ao modular e afins, abandona as cordas. A música ouve-se numa impressão sonora de múltipla exposição, como numa fotografia em que co-habitam diferentes momentos no mesmo instante. Memória e acção continuada, feita com recurso à massa densa e impenetrável. Mesmo quando termina, em dócil melancolia com arcadas sobre as cordas, inscreve um estado sónico inquebrantável, sem concessões — figuração sonora do inalcançável e nisso luz.
O OUT.FEST quer, os músicos sonham, a obra nasce. Foi a pedido do festival, em parceria com a Galeria Zé dos Bois, que os Wolf Eyes se juntaram a DJ Nigga Fox para uma residência artística com vista a criar um alinhamento inédito para o espectáculo de ontem — estreia absoluta, portanto. Não seria uma ideia de casamento que imediatamente atiraríamos para cima da mesa como sendo óbvia, mas a clarividência do OUT.FEST anteviu o potencial que esta união de forças seria capaz de alcançar. Entre as púrpuras neblinas noise que a histórica dupla de Michigan fazia evaporar da sua maquinaria, o DJ e produtor da Príncipe Discos encontrava espaços por preencher onde cabiam as suas batidas quebradas, umas mais vincadas do que outras. No início as sonoridades eram mais esparsas, levando-nos a levitar no desconhecido, e à medida que o programava avançava também os ritmos de Nigga Fox se iam tornando mais evidentes, alcançando o seu climax já na recta final do concerto quando o clima rave invadiu em definitivo o espaço da ADAO, com o techno e a batida com sabor a Lisboa a penetrar os corpos presentes e a obrigar à dança. Seria definitivamente interessante que estas criações pudessem ficar eternamente cravadas em disco no futuro.
Rock stoner, experimentalismo glitch, electrónica de vanguarda, incursões pelo lo-fi ou hip hop de recorte clássico perfumado de samples de jazz e soul. billy woods tem tudo isso e muito mais espalhado pela sua longa e celebrada discografia, um autêntico mar de pérolas que tem ajudado a dar mais brilho à cena underground. Após uma prestação a solo na Galeria Zé dos Bois e outra a meias com E L U C I D enquanto Armand Hammer neste mesmo OUT.FEST do ano passado, fomos ontem vacinados com a terceira dose de rimas ao vivo por parte daquele que será à data de hoje, sem grandes dúvidas, um dos maiores MCs do planeta em actividade. À escrita irrepreensível e capaz de lançar olhares profundamente poéticos sobre temas historicamente marcantes ou episódios do seu dia-a-dia — da “carta” escrita a um consumidor de crack em “No Hard Feelings” aos dramas familiares em “Asylum” —, junta-se a performance imaculada que woods bem sabe fazer, ao ponto da sua voz soar tão cristalina em palco como em estúdio — e sem recurso a backing tracks vocais ou a outra pessoa que o assista nas dobras. Informal e DIY até ao pescoço, o nova-iorquino não necessitou sequer de DJ, sendo o próprio quem vai escolhendo os temas a seu bel-prazer na tentativa de delinear um espectáculo de diferentes nuances, mas também procurando satisfazer os desejos do público, indo bem mais além do repertório eternizado em GOLLIWOG, o seu mais recente álbum.