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Fotografia: Sebastião Santana
Publicado a: 05/02/2023

Rap com elevado instinto de sobrevivência.

billy woods na Galeria Zé dos Bois: a rima como método de auto-defesa

Fotografia: Sebastião Santana
Publicado a: 05/02/2023

Na passada quinta-feira, dia 2 de Fevereiro, estávamos a meio de uma semana diabólica a nível de concertos de hip hop. Dois dias antes tínhamos sido baleados com as palavras de Conway The Machine (a reportagem tarda em sair, mas está para breve, prometemos) e, no sábado, tínhamos de nos meter finos para o mais importante concerto de T-Rex até à data (a reportagem desse espectáculo de ontem, no Coliseu dos Recreios, também não demorará até surgir por entre estas páginas). A proposta era, no entanto, demasiado irresistível para ficar em casa a descansar, com billy woods a assinalar a sua estreia no nosso país, numa noite que teve o português amador a assegurar a primeira parte.

Quando chegámos à Galeria Zé dos Bois, já o artista emergente da cena hardcore das Caldas da Rainha estava em cima do palco a esgrimir as primeiras frases perante uma sala completamente cheia, com alguns dos elementos da plateia a evitar o modo “sardinha enlatada” espreitando pela porta ou pelo vidro que empareda parte da sala. Por um lado, ninguém queria perder um lugar para ver o rapper norte-americano que se seguia; por outro, o autor de amargo estava a dar a vida por aquele momento tão especial, que é abrir o espectáculo para um nome sobejamente emblemático e consensual dentro do panorama alternativo do hip hop, e a agarrar facilmente a atenção dos presentes.

Sincero como a música que tem vindo a coleccionar no seu Bandcamp, nunca quis colher os louros pelo avultado número de cabeças que tinha ali reunidas à sua frente. “Eu sei que não estão aqui para me ver”, soltou a meio da sua actuação, usando o óbvio como forma de incluir algum humor por entre o banho de distorção e glitch das batidas que lhe adornam a voz. A verdade é: mesmo que amador tenha iniciado aquele concerto com zero fãs à sua espera, certamente que saiu de lá com uns bons novos pares de antenas sintonizadas nas suas frequências, as de um rap mascarado de punk que tem tanto tanto dos Death Grips como dos Run The Jewels ou dos Gray (do icónico e multi-disciplinar Jean-Michel Basquiat).

Numa prestação curta e que decorreu, sobretudo, com recurso ao projecto que o colocou sob o radar do Rimas e Batidas — motivou até uma entrevista, que podem ler aqui —, amador conseguiu transportar a ambiência cavernosa do seu último EP sem que a voz ao vivo se desvanecesse por entre as camadas de ruído que esculpiu em casa, com recurso a várias peças de maquinaria musical. É caso para dizer que Caldas da Rainha tem nele um novo filho pródigo no que toca ao cuidado com o som, seguindo as pisadas de gente como Holly, Razat, DJ Ride, Ângela Polícia, L-ALI ou Pesca — nem todos são naturais das Caldas, mas têm na cidade do distrito de Leiria algumas das coordenadas que ajudaram a mapear as suas estéticas, uma electrónica combativa e abrasiva que nunca cede àquilo que podem ser as principais tendências do momento.

Apesar da linha que separa as sonoridades do português e do norte-americano ser tudo menos ténue — o headliner daquela noite também é capaz de desbravar terrenos inóspitos nos campos da electrónica, mas dá clara preferencia à reinvenção de uma estética mais clássica, com beats movidos a drum breaks e samples melódicos — a arte destes dois protagonistas encontra pontos de confluência principalmente nos temas que os levam a pegar na caneta. Por umas horas, a ZDB tinha virado uma espécie de dojo, no qual estes dois senseis ensaiaram as suas técnicas de defesa pessoal contra as maleitas inerentes aos espaços — físicos, culturais e sociais — que ambos habitam, com recurso a letras que colocam vários e sujos dedos espetados por entre feridas mal saradas. No caso de amador, o discurso é mais directo e pouco dado a floreados, enquanto que o mentor da Backwoodz Studioz, filho de uma professora de literatura inglesa, faz mais uso das figuras de estilo que tem ao dispor e mascara alguns dos seus reais sentimentos para que estes fiquem apenas ao alcance dos que estão genuinamente interessados em empregar tempo e intelecto na sua análise.

Dito isto, não é difícil de perceber quais são os demónios que atormentam billy woods — apenas requer um esforço adicional — e o objectivo do rapper de culto nova-iorquino nunca será o de esconder informação, mas sim o de dar aos seus poemas aquele toque de misticismo inerente a qualquer pedaço de texto mais embelezado e visual. E se alguém não conseguiu fazer sozinho os TPC, a aula ao vivo em Lisboa arrancou com algum contexto sobre as primeiras faixas que fez ecoar no sistema de som da ZDB, precisamente as mesmas três que dão abertura a Aethiopes, o primeiro (e seguramente o mais consensual) dos dois discos com que nos brindou durante o ano passado.

Depois de explicar que cresceu entre diferentes coordenadas do globo, cantou sobre quando o lar — quase sempre o porto mais seguro para qualquer comum mortal — mais se parece com um “Asylum”, antes da grande redenção que é “No Hard Feelings”, um dos retratos inspirados no consumo de crack mais vívidos que alguma vez escutámos, trazendo à tona um conflito interior — de um lado, há repulsa em ver alguém a consumir a nociva substância à entrada de sua casa, do outro há a noção do quão árduo é expulsar dali alguém em tão delicada condição, tirando partido da fragilidade do seu semelhante. A exploração do “outro” volta a ser o tema central em “Wharves”, desta vez ligada às questões do colonialismo e do fascínio que existe, nas civilizações mais desenvolvidas, de ver alguém viver em condições mais selvagens, deixando uma referência ao documentário australiano Cannibal Tours.

Interpretado um dos melhores arranques de sempre num disco de rap, woods passou por vários dos inúmeros projectos — a solo ou colaborativos — que amealhou ao longo de um passado mais recente, dos quais se destacaram “Spongebob” (muito provavelmente a canção mais badalada das suas duas décadas de militância enquanto artista de hip hop), “Western Education is Forbidden” (um verdadeiro hino que lança questões sobre dogmas e cruza arte com consciencialização) ou “Checkpoints” e “Spider Holes” (com o MC a mostrar que não há barreiras sónicas para os seus palavreados, em cima de batidas esculpida em pedra de haxe através de laivos de guitarra eléctrica e bateria tocada a socos e pontapés).

Com o seu jeito lento e inortodoxo, o rapper apresentou-se tal e qual como o que escutamos em disco, com entregas certeiras e, acima de tudo, límpidas, facilitando a percepção de alguma barra que nos possa ter escapado durante escutas mais informais de cabeça entre os fones. Algo que também foi transversal à actuação é o “peso” dos diversos produtores que lhe assinam os instrumentais, um showcase pelo qual passaram ondas sonoras assinadas por Kenny Segal, Preservation, Messiah Musik ou até The Alchemist, a lenda viva da Costa Oeste que não teve quaisquer dúvidas em ceder 14 dos seus beats para Haram, o último LP editado pelos Armand Hammer, de billy wods e E L U C I D.

A fazer justiça ao culto que o seu nome gera, o também autor de Church lotou por completo o recinto da ZDB e quase todos quiseram mostrar-lhe apreço no hall de entrada, já depois do espectáculo, onde montou a sua banca de merchandise, ficando o espaço quase intransitável durante os primeiros minutos pós-concerto. A milhares de quilómetros de casa, o artista de Nova Iorque foi simpático e bastante acessível aos fãs que lhe têm acenado do outro lado do oceano Atlântico, perdendo algum tempo a dialogar com os mais curiosos enquanto assinava os discos e os cadernos de rimas que tinha à venda.


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