pub

Texto: Paulo Pena
Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 05/10/2024

Levar-se demasiado a sério também pode ser uma virtude.

Armand Hammer no OUT.FEST’24: o casamento perfeito não exis…

Texto: Paulo Pena
Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 05/10/2024

Curioso o fenómeno do encontro inesperado. Não porque nos leva a crer em desígnios maiores que a razão, mas a coincidência, por si só verificada, já justifica espanto suficiente e não deixa de, ainda assim, dar que pensar. É certo que a probabilidade de se dar de caras com billy woods e E L U C I D numa noite de orvalho no Barreiro, noutras circunstâncias que não estas, ronda a nulidade absoluta, mas também não seria assim tão provável cruzarmos a Rua Doutor Eusébio Leão exactamente à mesma hora — ao mesmo segundo, na verdade — que os dois rostos por detrás da dupla Armand Hammer. Mais sinal vermelho, menos cedência de passagem, e esse primeiro encontro ter-se-ia dado somente no seu devido momento: à subida dos dois rappers de Nova Iorque ao palco do auditório d’Os Penicheiros, por ocasião do segundo dia do OUT.FEST’24. E, no entanto, ali vinham eles estrada abaixo, de malas às costas, vindos de Braga (haviam actuado no gnration no dia anterior), com ar de quem olha para os pacatos becos do Barreiro a uma quinta-feira à noite e se questiona: “Como é que da cidade que nunca dorme viemos aqui parar?”.

Também não sabemos. E é recostados aos nostálgicos espaldares de madeira, debaixo de um dos dois balcões-varanda laterais do centenário anfiteatro da Sociedade de Instrução e Recreio Barreirense, que no preâmbulo da actuação que nos trouxe a esta sala estranhamente familiar ecoam com especial significado as palavras versadas por billy woods em “Dog Days”, do seu Terror Management (2019): “Wave goodbye to Portugal / The wave high, I’m a long way from seventh-grade portables”. De parte a parte, já lá vão os anos de ensino básico, mas nesta espécie de teatro-escola paira uma sensação de reencontro alumni: caras conhecidas várias entre o fumo abrasadoramente denso, que de uma margem do Tejo à outra (porque o B.leza também merece descanso) não perdem uma reunião destas à medida que se vão sucedendo com cada vez mais frequência. E não é, por isso, de estranhar que umas quantas delas mimiquem os lábios de ambos os protagonistas em cena melancólico-dramática, com uma dose indisfarçável de incredulidade estampada nos olhos. Não se trata, propriamente, de uns Outkast num festival alternativo português. Quando muito, uns outcasts entre uma série de outros actores da resistência nova-iorquina com muito mais visibilidade — e presença, sobretudo — mediática. E é precisamente por essa razão que vê-los ao vivo, no caso de woods pela segunda vez (com a primeira a dar-se em Fevereiro do ano passado, na Galeria Zé dos Bois), ainda para mais num festival periférico e longe de ter como prioridade programática o hip hop, se revela, mais uma vez, particularmente improvável.

Novamente, damos por nós embasbacados com o que nos havia de reservar o terceiro dia deste Outubro: a presença verdadeiramente magnânima de E L U C I D, a face de billy woods de novo destapada, numa hora de compromisso sério com o rap que, em conjunto, trazem na bagagem. Percorrem, ora juntos, ora à vez — ainda que sempre amparados um pelo outro —, quer a discografia comum — com o ainda pintado de fresco We Buy Diabetic Test Strips (2024) em evidência —, quer os respectivos reportórios — destaque ao material inédito de REVELATOR, novo disco de E L U C I D com edição prevista para o próximo dia 11, ou para o seu mais recente I Told Bessie, assim como da parte de woods com a sua opus magnum (Hiding Places, no nosso critério incontornavelmente subjectivo) em parte apresentada.

Servem “Spelling”, de um lado, e “Spongebob”, do outro — curiosamente, faixas inaugurais dos respectivos discos assinalados —, como expoente máximo da contínua catarse em palco expurgada por estes dois incansáveis operários da palavra ritmada. Como se os nós de garganta que os acompanham entre costas atlânticas não lhes tirassem fôlego ao verbalizá-los. Tanta coisa por dizer… E, por incrível que nessa hora nos pareça, apesar do orvalho da rua ou do calor da sala, da linha programática do festival ou do tom do próprio alinhamento, do carácter circunspecto dos protagonistas ou do estado de espírito contemplativo dos espectadores, apesar dos apesares, estão à nossa frente dois homens feitos e comprometidos com o seu ofício, que nem por sombras recai no que se advoga como “levar demasiado a sério”, totalmente entregues ao momento irrepetível que os trouxe a nenhures. De Nova Iorque ao Barreiro para cantar dores a uma centena de gatos pingados? Fazem-se anedotas por menos. Mas, quando o rap é coisa realmente séria, as palavras movem montanhas. Do tamanho destas duas que se ergueram onde menos seria de esperar.


pub

Últimos da categoria: Reportagem

RBTV

Últimos artigos