Poucos MCs conseguem coabitar de forma tão sinergética numa dupla como billy woods e E L U C I D. A máxima inventada por Akira Toriyama no universo de Dragon Ball, de que o produto da fusão entre dois super-guerreiros será sempre mais forte do que a soma dos mesmos indivíduos, parece aplicar-se na perfeição ao projecto que ambos conduzem sob o nome de Armand Hammer.
Com um pouco mais de experiência do que o seu colega, woods conheceu E L U C I D através de um evento que a sua Backwoodz Studioz criou em parceria com a Uncommon Records, no qual o então novato deu nas vistas com o rap denso com que andava a popular as suas primeiras mixtapes, Smash & Grab (2007) e Police & Thieves (2008). Não demorou muito tempo até que o desafio de ambas as canetas colidirem em estúdio chegasse, mas tal como tudo aquilo em que billy woods se mete, as estreias são sempre o passo mais calculado de todos — basta pensarmos em Camouflage, o seu primeiro álbum, que demorou alguns anos até se materializar de forma a inaugurar o catálogo da editora que dirige há mais de 20 anos, sendo que a partir desse momento os trabalhos seguintes se passam a cristalizar de forma muito mais imediata.
Armand Hammer surge como produto finalizado de uma saga do hip hop nova-iorquino que parece ter ficado por cumprir. billy woods foi um protegido de Vordul Mega, dos Cannibal Ox, um dos nomes que estiveram na linha da frente da Def Jux, etiqueta que foi referência maior do rap alternativo e disruptivo até ao ano de 2010, quando fechou definitivamente as suas portas. Além dos autores de The Cold Vein, na label militavam também Aesop Rock, El-P, Cage, Murs ou Mr. Lif, todos eles grandes promessas dentro de uma nova vaga de liricistas e que, com o passar dos anos, foram perdendo a consistência ou a profundidade nas suas abordagens. O mesmo não aconteceu com o par formado pelos também nova-iorquinos woods e E L U C I D, que desde a sua estreia em disco, através de Race Music (2013), têm vindo a delinear muitos dos versos que mais voltas nos fazem dar pela massa cinzenta, complementando-se na perfeição como praticamente nenhuma outra dupla conseguiu.
Olhando para a discografia do grupo, praticamente só se sentem diferenças nos instrumentais de disco para disco. À medida que os anos foram passando, as batidas tornaram-se mais polidas e requintadas, fossem elas movidas pela doçura do sampling mais clássico ou acidificadas por componentes electrónicas de vanguarda, enquanto que as rimas se mantiveram esotéricas e recheadas de saberes ocultos que nos fazem ter o Google como fiel companheiro durante as sessões de escuta. Se os livros falassem, Armand Hammer podiam muito bem ser o resultado de sessões de field recording em bibliotecas vazias à noite, com os escritos a trocar conteúdos dos mais variados temas entre si — desde poesia e literatura negra a questões dos domínios da física; da filosofia à história mundial; sempre intercalados com as vivências captadas nas ruas e o inexorável knowledge que sustenta a própria cultura hip hop. Umas vezes meditativos, outras mais furtivos: billy woods e E L U C I D não têm quaisquer rodeios para nos fazer colocar a vida em perspectiva enquanto levam os dedos às nossas feridas — doa o que doer.
Depois de Rome (2017), este par de culto foi sempre bem regular nos lançamentos, esgotando facilmente edições físicas em cassete, CD ou vinil — e nos mercados paralelos, a importância das suas canetas facilmente se nota pela inflação das compras e vendas das suas obras em segunda mão. A lista de clássicos prossegue com Paraffin (2018), Shrines (2020), Haram (com produção integral de Alchemist, em 2021) e o mais recente We Buy Diabetic Test Strips (2023), que será certamente fonte de boa parte do material que os dois MCs trazem para o palco na sua estreia em Portugal — e logo em dose dupla. São gramas e gramas de conhecimento enroladas de forma sagaz em mortalha de combustão lenta para fazer levantar fumarada no gnration (Braga, 2 de Outubro) e OUT.FEST (Barreiro, 3 de Outubro).