CD / Digital

Armand Hammer & The Alchemist

Haram

Backwoodz Studioz / 2021

Texto de Rui Miguel Abreu

Publicado a: 13/04/2021

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ELUCID e billy woods, que juntos assumem a identidade Armand Hammer, têm vindo a construir uma vincada e distinta marca no underground, oferecendo à arte do rap uma nuance diferente daquelas que os vários membros da Griselda ou gente como Freddie Gibbs, Roc Marciano, Pink Siifu, Fly Anakin ou Ka tem vindo a explorar.

A intrincada riqueza imagética da dupla traduz-se logo no nome escolhido: Armand Hammer foi um multimilionário da área do petróleo com fortes ligações à União Soviética, mas ELUCID e billy gostam de pensar no nome como uma contração das palavras “Arm” & “Hammer”, braço e martelo, sendo que esta ferramenta é, obviamente, simbólica da classe operária no imaginário comunista. Níveis e níveis de simbolismo e significação.

O mesmo se aplica ao título do novo álbum realizado em estreita colaboração com o recentemente apontado aos GRAMMYs The Alchemist, homem que, como bem sabemos, é capaz de transformar vinil em ouro sampladélico da mais elevada pureza: Haram é a palavra islâmica que designa o que é proibido, como, por exemplo, a carne de porco. Ora, a capa, que parte de uma fotografia de Alexander Richter, mostra duas cabeças de porco ensanguentadas, representando não só o que é proibido, mas também uma forma de abate que não é consagrada na lei islâmica. Pig é também, pois claro, calão que designa de forma negativa um agente das forças de autoridade. Mais achas para uma fogueira de vívida carga poética e discursiva.

Esses labirintos de expressão e sentido são, obviamente, importantes para a dupla: billy woods é filho de uma professora de literatura nascida na Jamaica e de pai marxista, do Zimbabué, país onde, aliás, toda a família residiu até ao seu falecimento, momento traumático na vida do futuro rapper que então regressou aos Estados Unidos, ainda criança, sem uma figura paternal capaz de o guiar em vésperas de entrada na adolescência. ELUCID, que além de rapper é também beatmaker, nasceu no bairro de Jamaica, em Queens, Nova Iorque, filho de um casal de músicos (mãe cantora, pai baixista). A arte e a expressão de ideias enquanto pessoas racializadas no seio de uma América violenta foram, portanto, eixos estruturantes importantes na vida de ambos.

As discografias a solo dos dois artistas têm diferentes fôlegos, com o output de billy a recuar quase duas décadas, até 2003 (é o mais velho da dupla) e a de ELUCID a começar a manifestar-se alguns anos mais tarde, com a sua primeira mixtape a ter sido lançada em 2007. Race Music, o título de estreia de Armand Hammer, data de 2013. Rome, Paraffin e, sobretudo, Shrines, que foi editado no ano passado, cimentaram a reputação do duo. Mas, não há dúvidas, Haram eleva a fasquia desde logo por proporcionar aos Armand Hammer a possibilidade de trabalharem com um único produtor, ainda por cima um dos mais respeitados neste cada vez mais entusiasmante “jogo”.

Explica woods, em declarações à Okayplayer, que este método de trabalho muda a dinâmica a que o grupo está mais habituado: “Quando há três pessoas envolvidas, penso que há mais adaptação, algo que desafia a criatividade e obriga toda a gente a seguir caminhos diferentes”.

Terá sido isso, certamente, o que aconteceu aqui. Na já mencionada entrevista, a dupla explica como os beats de Alchemist foram cozinhados à medida do projecto. E esse cuidado escuta-se claramente num alinhamento que encadeia beats com uma personalidade distinta, obscura, sofisticadamente cinemática, com densidade orquestral, toneladas de drama, e inesperadas colorações musicais derivadas dos samples escolhidos: loops de bateria de cadência fúnebre, baixos fantasmagóricos, vozes soul espectrais, pianos carregados de melancolia, guitarras rock em derrapagem psicadélica, flautas, cordas, orquestras filtradas e tornadas sépia, jazz desconstruído, tudo pensado para se encaixar em palavras que exploram a dureza da experiência negra, servidas por flows imaginativos e mais melodia a arredondar os sentidos do que era costume escutar-se até aqui nas barras da dupla.



E as palavras? Incríveis, pois claro. O álbum abre com um pedido de desculpas, com uma voz que lamenta perturbar a nossa “prazerosa dança”, mas que pede que nos reunamos para escutar o que billy e EUCLID têm para nos dizer. E é o homem que recentemente fez dupla com Moor Mother que arranca:

“Dreams is dangerous, linger like angel dust
Ain’t no angels hovering, ain’t no savin’ us
Ain’t no slaving us, you gon’ need a bigger boat
You gon’ need a smaller ocean but here’s some more rope
Barefoot in the bush burnin’ dope, kush smoke out my big nosе
My favorite game is let’s supposе, let’s suppose”

Depois, em “Indian Summer”, o veterano MC prossegue, relatando um episódio que o situa em termos de idade já que na entrevista à Okayplayer explica que esses versos se referem ao que sentiu quando regressou à América, zangado com o mundo após a morte do pai, corria então o ano de 1989, teria ele uns 12 anos:

“I swore vengeance in the seventh grade
Not on one man, the whole human race
I’m almost done, God be praised
I’m almost done, e’ry debt gets paid”

Depois, em “God’s Feet”, por exemplo, é EUCLID que nos revela como olha para o mundo, deixando claro que já ponderou como há-de receber a morte:

“You havin’ enough air in your lungs, when it’s time, you’ll know
You won’t have to think, you’ll just do
In the blink of an eye, the faithful go where they are made whole
So the story goes, if the dead comin’ home
Prepare a table, make ‘em a pallet, leave your freshest linens
Find a spirit getting lifted, singing murder ballads
Looking for a body
The dead is comin’ home”

Mais adiante, em “Falling Out The Sky”, tema em que Earl Sweatshirt também larga umas quantas barras, EUCLID pinta o retrato de uma infância afro-americana num verão distante:

“Days of summer, carefree, haven’t found an equal
We all knew the Isleys before the Beatles
Red moon over the rec room in direction of discovery
Idle time wonderin’
Thumbin’ 70s Ebony mags, drippin’ red ICEE on the pages
Learned to swim in a pool where a boy drowned last year
Wax in my ear
I heard voices I couldn’t make out in the deep end
When I dipped my head under—come again?
Burrs stuck to my socks
Pinch every few steps on the way to the graveyard
Old man Cropsey’s head in my foot locker”

Além de Sweatshirt, no alinhamento descobrem-se ainda os nomes de KAYANA, Fielded, Curly Castro com Amani e Quelle Chris, mas são naturais questões de afinidades estéticas que justificam os convites, não alguma ponderada estratégia de empolamento comercial.

Com a ultra-cuidada marca de água de Alchemist impressa nos beats, a dupla Armand Hammer demonstra aqui ser justa parte da elite que nos subterrâneos da América hip hop tem vindo a cuidar da arte sem ligar aos parâmetros industriais que embora possam igualmente gerar obras de qualidade assinalável também tendem a normalizar um certo discurso que sabemos ser condizente com as mais populares playlists e tendências que ditam o tom do topo das tabelas de vendas. Aqui respira-se um ar diferente: arte pela arte, fracturas emocionais expostas sem adornos coloridos, sinais de uma América que não é complacente quando se cresce no lado “errado” da cidade. Parem lá de dançar só um bocadinho e escutem com a devida atenção.


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