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Publicado a: 05/10/2018

Os Mandamentos do Moisés #9: Purgarás

Publicado a: 05/10/2018

[TEXTO] Moisés Regalado [ILUSTRAÇÃO] Riça

A história do início do hip hop parece condenado à velha bifurcação: festa e/ou consciência. O leque de motivos que leva alguém a deixar-se absorver pelo movimento é, no entanto, infinitamente mais vasto do que sugere a repetida conversa sobre os primórdios. As dinâmicas colectivas, de relevância inquestionável, continuam a liderar conversas de café, mas o elo comum entre ouvintes e praticantes continua a estabelecer-se na razão individual — sobretudo na possibilidade que a ausência de regras associada ao hip hop oferece a quem procura um refúgio imediato.

Claro que nem todos começam a ouvir ou a fazer rap para exorcizar dramas ou arrumar pensamentos difusos, mas é quase certo que a escrita acaba por ser, mais tarde ou mais cedo, o porto de abrigo de quem a desenvolve ou acompanha — sem exceptuar rappers (e ouvintes) mais dados a momentos lúdicos ou tecnicistas. E até aqui a cultura se pode considerar bafejada pela sorte, isto é, pela diversidade. Se há quem gaste boa parte da sua carreira a corrigir o passado sob forma de rima, há quem visite essa dimensão apenas se necessário.

Há varias maneiras de o fazer, mais ou menos declaradamente. Eminem, T.I. e K Koke têm “I’m Back”; Tyga, Migos e Tory Lanez têm “I Still Got It” — à semelhança de tantos outros que, ao longo dos últimos quarenta anos, usaram o rap como veículo de afirmação — e, portanto, como forma de combater as típicas feridas no ego. Em Portugal, já todos disseram algo como “não estou de volta porque nunca saí”, sendo isso revelador da constante auto-análise a que os rappers, genericamente falando, se costumam submeter.

Outros, como Valete em “Rap Consciente”, levam o compromisso mais longe e colocam o dedo na própria ferida, sem tabus ou falsos moralismos. Viris, que é tão capaz de escrever a pensar nos outros como em si mesmo, usou-se da produção de Baghira como se de um diário se tratasse e, além de atacar os inimigos, imaginários ou não, com que se andava a debater (o que, em si, acaba por já ser uma purga, sem que para isso sejam precisos nomes concretos), aproveitou para enterrar definitivamente assuntos tão delicados como a esterilidade criativa ou o abismo do álcool.

Só Jay-Z foi mais longe, ao erguer um disco (4:44) que pretendeu, antes de mais, confessar as traições a Beyoncé, escrevendo sobre tudo o que isso significou e arrastou, relatando consequências pessoais, conjugais e profissionais. O ponto final — The Carters — não se revelou tão genuíno quanto o desvendar do véu mas não foi por isso que lhe retirou qualquer brilho ou valor. E basta pensar no passado de Jay-Z, pimp por excelência, money maker de profissão e pouco dado a sentimentalismos desde que há memória.

Esta não será uma característica exclusiva do rap e do hip hop, da música ou das velhinhas tribos urbanas, mas é e continuará a ser um dos aspectos mais relevantes do movimento, e é por isso que, fazendo ou acompanhando quem faz, darás partes de ti. “Deixem-me Ser Livre”, pediu Beware Jack num dos singles de Bling Projekt. Tudo bem… O hip hop deixa.

 


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