pub

Fotografia: Paradigm Disc
Publicado a: 03/02/2022

Techno, house, hauntology e outras ondas.

Oficina Radiofónica Série II | #5: Bezbog / Discrepant

Fotografia: Paradigm Disc
Publicado a: 03/02/2022

Oficina Radiofónica é a coluna de crítica de música electrónica do Rimas e Batidas. Música Electrónica? Sim. Techno e footwork, house e hauntology, cenas experimentais, ambientais, electro clássico e moderno, drum n’ bass e dubstep, dub e o que mais possa ser feito com sintetizadores e caixas de ritmos, computadores e osciladores e samplers e sequenciadores e outras máquinas que façam “bleep”, “zoing”, “boom” e “tshack”.



[Bezbog] Dazhbog / Favela Discos

Bezbog é a entidade que congrega os espíritos criativos de David Machado e Dora Vieira. O novo álbum do duo, Dazhbog, é o mais recente capítulo de uma obra que, em termos discográficos, remonta a 2014, data de edição do primeiro e homónimo EP. Seguiu-se o álbum Biez (2017) e o EP Chernobog (2019), sempre com chancela da Favela Discos.

Na apresentação do novo trabalho, sublinha-se a mudança de metodologia em relação a Chernobog, EP que reuniu duas peças, “curtas e pesadas”, que resultaram de aturado trabalho de meses. Ao invés, o novo material foi gravado ao vivo e assume a estrutura de uma suite que se estende por oito “movimentos” – “Ar”, “Ovo”, “Salamandra”, “Loja”, “Ocaso”, “Caçador”, “Pergelissolo”, “Alba” – que, juntos, somam mais de 40 minutos.

Em Dazhbog, Machado escuta-se em saxofone, mesa de mistura, computador, pífaro, flauta, tarola, cavaquinho e “mouth harp”; por seu lado, Vieira assume o “water whistle”, pífaro, mesa de mistura sem input, chapa de aço, trompete, rádio e sampler. E da lista de instrumentos já se pode assumir muito sobre a música que os Bezbog aqui apresentam: entre instrumentos de sopro que se encontram presentes nos modos mais populares (pífaros de lata, apitos de água, cavaquinho, berimbau de boca, flauta…), os que têm firme tradição no jazz e na música clássica (saxofone, trompete) e outros ainda que poderão remeter para terrenos mais electrónicos, exploratórios e contemporâneos (mesa de mistura, sampler), facto que ajuda a compreender as coordenadas apontadas pelo próprio duo para o seu som: “folclore português e pagão, música de câmara e música sacra, doom metal, as improvisações estruturadas do jazz norte-americano, alucinações psico-acústicas e os duros e transitórios (sons) da música electrónica”.

Conceptualmente, o álbum aponta para as lendas pagãs eslávicas, com o título, Dazhbog, a referir directamente “a divindade solar” dessa tradição, “a divindade que dá e cuja ideia flui directamente para o conceito deste disco através dos temas da vida, luz e escuridão, nascimento e renascimento e a ideia do ciclo omnipresente”. E de facto, como acontece no tema “Ovo”, marcado por uma bucólica figura desenhada na flauta, há uma busca pela raiz pagã da folk que também se adivinha em certos momentos de um projecto como o Focus Group, igualmente interessado em destilar ecos distantes de um certo folcore à luz de uma prática experimental contemporânea.

É com o ar que flui pelo saxofone, estendido em artificial drone, que Dazhbog arranca no apropriadamente titulado “Ar”, tema que impõe o tom psico-emocional da viagem que se seguirá, com o multi-tracking do instrumento a criar uma densa neblina harmónica, como se estivéssemos prestes a entrar num misterioso terreno tomado por nevoeiro. E depois do já referido “Ovo”, para flauta e processamento electrónico, desenrolam-se passagens mais percussivas com toada ritualística e até algo marcial, desconstruções de modos populares com cavaquinho ao centro, intrigantes labirintos de sentido através de sons altamente processados, mergulhos electrónicos em oceanos de som captado com microfones de contacto, feedback, graves abissais e a chegada, enfim, a um lugar de inocência e luz, quando o berimbau de boca e o trompete dialogam após viajarem para um tempo remoto. 

Esta música que os Bezbog aqui apresentam é sempre estimulante para a imaginação, nunca se permite ser indulgente ou gratuitamente obtusa, com cada gesto dos membros do duo a parecer nascer de uma funda intenção ilustrativa: há mesmo uma história a ser contada aqui, enigmática, certamente, porque fundamentalmente íntima, mas com suficientes pistas para que cada pessoa que a ela se entregue com generosa atenção possa encontrar o caminho através do labirinto. Sinais nas paredes não faltam.



[Vários Artistas] Antologia de Música Atípica Portuguesa, Vol. 3 / Discrepant

A trilogia que Gonçalo F. Cardoso dedicou à música experimental portuguesa contemporânea, Antologia de Música Atípica Portuguesa, remete inteligentemente para o imaginário espaço que poderia existir entre a mítica série Antologia da Música Regional Portuguesa, a que colecionadores se referem como “os discos de serapilheira” (por causa da forma como foram originalmente embalados), e os talvez ainda mais celebrados trabalhos antológicos da Folkways de Moses Asch, sobretudo os que remetiam para geografias e culturas muito específicas, ou até as mais antropológicas recolhas da Ocora de Charles Duvelle que também lançou preciosos documentos de um mundo que estava a desaparecer. Conceptualmente, este tríptico ocupa ainda um espaço semelhante ao que a Abstracke Records propôs na sua Encyclopedia of Civilizations, (para já…) também uma tripartida edição que reimagina tradições passadas/futuras do Egipto, Atlântida e Índia (o primeiro volume data de Abril de 2017, três meses depois do arranque da Antologia de Música Atípica, refira-se).

Depois de sob o tema “Trabalho” ter no primeiro volume (Janeiro de 2017) alinhado material de projectos como Live Low, Luar Domatrix, Filipe Felizardo ou Calhau!, Gonçalo F. Cardoso lançou (em 2019) um segundo volume – “Regiões” — com música de Ondness, Filho da Mãe, Síria (aka Diana Combo) e, uma vez mais, de Live Low e do seu próprio projecto que abriga sob o alter-ego Gonzo. E agora chegamos a um terceiro volume, dedicado ao “Canto Devocionário”, que reúne peças assinadas pelos Niagara, Serpente (outra das máscaras de Bruno Silva que também assina Ondness), João Pais Filipe, Jibóia, Joana Guerra, Filipe Felizardo, Folclore Impressionista e Atelier Radiofónico. 

A natureza de boa parte das propostas estéticas aqui documentadas e a presença de projectos como Folclore Impressionista ou Atelier Radiofónico poderiam até valer a este volume o título alternativo de Hauntologia da Música Utópica Portuguesa. Em declarações para uma peça de Mário Lopes no suplemento Ípsilon do Público (edição de 21 de Janeiro), Cardoso confirmou essa mesma ideia ao discorrer sobre a inspiração hauntológica que se traduz numa música “com uma nostalgia particular, às vezes soando indistinguível daquela que foi composta décadas atrás” e que, como explica depois, aborda a forma “como futuros ‘mortos’ podem assombrar o presente”. Escutando este terceiro volume percebe-se que as palavras do ideólogo da Discrepant não podiam ser mais certeiras. E entre a fragmentação do continuum temporal numa chuva de detritos aurais criada pelos Niagara e pontuada por um eco gregoriano distante e o “Mata-Lobos” conjurado pelo Atelier Radiofónico por entre drone orgânico de igreja e espanta-espíritos digital, há um quadro musical tão fantasticamente absurdo quanto as sugestões gráficas que resultam das colagens de Ruca Bourbon que têm adornado as capas da série (a mais recente coloca um contrabaixo nas mãos de um mineiro prestes a aventurar-se nas entranhas da terra): hipnotismo reverberante que se solta do pêndulo rítmico de João Pais Filipe; fantasmas que habitam a garganta e o corpo do violoncelo de Joana Guerra; uma exótica de falso oriente e de contornos hassellianos reinventada por Jibóia; poli arritmias serpenteantes de… Serpente, pois claro; electrónica folk emitida do futuro para os televisores a preto-e-branco do passado pelos Folclore Impressionista; e, finalmente, na mais longa peça do álbum (que ultrapassa os 7 minutos e meio e que ostenta o melhor título de todos, “Fail Missa TVI”), Felipe Felizardo desenrola um espectral novelo de feedback eléctrico arrancado a cordas estendidas entre tempos. Dentro da cabeça, pelo menos, já todos habitámos um Portugal assim.

pub

Últimos da categoria: Oficina Radiofónica

RBTV

Últimos artigos