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Fotografia: Paradigm Disc
Publicado a: 29/01/2022

Techno, house, hauntology e outras ondas.

Oficina Radiofónica Série II | #4: Especial Danny Wolfers (aka Legowelt)

Fotografia: Paradigm Disc
Publicado a: 29/01/2022

Oficina Radiofónica é a coluna de crítica de música electrónica do Rimas e Batidas. Música Electrónica? Sim. Techno e footwork, house e hauntology, cenas experimentais, ambientais, electro clássico e moderno, drum n’ bass e dubstep, dub e o que mais possa ser feito com sintetizadores e caixas de ritmos, computadores e osciladores e samplers e sequenciadores e outras máquinas que façam “bleep”, “zoing”, “boom” e “tshack”.



[Alchemulator] Larping at Fairsnake Hamlet / Hunger!

Por esta altura já ninguém se surpreende com a profusão de máscaras que o produtor holandês Danny Wolfers, conhecido principalmente como Legowelt, vai criando para dar vazão à sua ultra-intensa agenda criativa. A sua página no Discogs lista 40 alter-egos a que se devem adicionar ainda 13 designações para projectos colectivos, o que já dá uma boa perspectiva da sua extrema dispersão identitária. Clendon Toblerone? Dickie Smabers & The Moerwijk Crew? Rising Sun Systems? Todos eles delírios da prodigiosa imaginação de Wolfers. Alchemulator é o mais recente e, desta vez, mais ou menos auto-explicativo alter-ego: “alchemist + emulator = Alchemulator”. O produtor, que tem concentrado o seu output criativo sobretudo na sua Nightwind Records, lançou este mais recente projecto na Hunger!, micro-etiqueta baseada em Haia – há edição digital e em cassete, suporte que tem servido para muitas das suas edições.

Como bem explicado nas notas que servem este lançamento, Larping at Fairsnake Hamlet segue uma estratégia que já previamente (em trabalhos como, por exemplo, Current Explorations in Star Synthesis ou Oberheim Space e Berceuses Pour Sara) deu frutos a Wolfers e assume-se como estudo de um artefacto tecnológico muito específico, neste caso o sintetizador Yamaha PSS-480. Profundo conhecedor da história da tecnologia electrónica aplicada à música, Wolfers, obviamente, está bastante familiarizado com as capacidades dos grandes sintetizadores, do Mini Moog ao DX7 e mais além, mas nunca escondeu o fascínio que igualmente sente pelos mais baratos artefactos que as grandes marcas foram produzindo para apelar a um mais vasto, jovem e amador público, provando por mais do que uma vez ser capaz de extrair ouro sónico de autênticos brinquedos de plástico que vai encontrando abandonados e esquecidos em lojas de velharias. E é esse certamente o caso deste novo álbum.

Explica, o senhor Alchemulator nas notas que acompanham Larping at Fairsnake Hamlet: “A história dos teclados da gama Yamaha PSS FM dos finais dos anos 80 é fascinante e de nicho: um teclado doméstico semi-brinquedo de consumo barato e com funções espartanas, este era um sintetizador baseado num chip de som FM especialmente concebido para o efeito”. E, mais importante ainda: “O chip, que é uma versão reduzida e de baixo custo da síntese FM encontrada no poderoso Yamaha DX7 – o sintetizador digital que definiu a música pop na década de 1980′ – traz à tona um mero esboço do seu distante primo DX7. As tentativas de emular o poderoso piano eléctrico do DX7 ou os sons staccato de baixo num destes teclados são fúteis. Em vez disso, ressoa com uma plétora de sons lo-fi únicos. Os artefactos inesperados são abundantes: fendas e silvos estão presentes, dando aos sons a estranha, orgânica e extraterrestre personalidade que se pode escutar no álbum”.

Pode entender-se este constante trabalho de arqueologia tecnológica de Danny Wolfers como a sua forma de reescrever a história do género ou pelo menos de a alargar, celebrando na sua visão artefactos que estavam condenados ao esquecimento. E, por outro lado, este trabalho assemelha-se bastante ao tipo de gestos levados por vezes a cabo por investigadores e arqueólogos, quando, normalmente no âmbito do tipo de programas que se podem apanhar no canal de História, demonstram no presente, usando ferramentas de época, como os nossos antepassados construíam pirâmides, erguiam menires ou esculpiam pietás em eras em que não se podia contar com a força do vapor, do diesel ou da electricidade.

O chip que serve de “alma” ao PSS-480, adianta ainda Wolfers, foi bastante usado em placas de som de computadores dos anos 90, ajudando a que toda uma geração se tenha habituado aos seus sons muito comuns em muitos jogos. “A associação instantânea com aventuras fantasiosas torna-o ideal para composições de sintetizador de masmorra da velha escola”, conclui, ironicamente, o produtor. Na verdade, o que se escuta neste fabuloso Larping at Fairsnake Hamlet (só o título já é indicativo da absurda inventividade do autor) é música que se apoia nas referências da memória, profundamente nostálgica e evocativa, desprovida de componente percussiva e resultante, sobretudo, de jogos de equilíbrio entre pulsares rítmicos e desenhos melódicos e harmónicos alcançados com as diferentes “vozes” do pequeno sintetizador. E esses sons, essas “vozes”, são autêntico algodão doce aural, massagem sonora perfeita para quem regista alguma sintonia geracional com estas texturas, cristalinas, mas subtilmente datadas. Certas passagens do álbum fariam sentido no catálogo hauntológico da Ghost Box (escute-.se “The Key to Paragons Heart”, por exemplo), soando como oníricas referências a um universo algo infantil e mágico. Perfeito para escuta atenta durante um passeio por ruínas perdidas algures no campo. Façam o favor de experimentar.



[Lobosquillo] Love on the Edge of Time / Dim Garden

O Lobosquillo é mais uma criatura resultante da imaginação fantasiosa de Danny Wolfers, uma  identidade criada para designar novo projecto colaborativo com Dim Garden, aka Sara Vollmond, DJ e produtora de Haia com quem o produtor também conhecido como Legowelt já tinha colaborado, por exemplo, no projecto Folk Triunfator assinado como Zandvoort & Uilenbal (embora esse disco resulte de uma colaboração entre Wolfers e Jimi Hellinga, couberam a Dim Garden os créditos pela spoken word). Este álbum resulta dos trabalhos de uma única sessão que teve lugar a 5 de Abril de 2021, “uma segunda-feira à tarde tempestuosa” e é uma consequência da harmonia pandémica, “um obrigado ao mundo por nos ter unido”.

Essa harmonia guia a música de Love on The Edge of Time, servida por uma evidente densidade emocional, talvez até mesmo romântica (o título não engana e pode apontar para uma relação pessoal já intuída em Berceuses Pour Sara, trabalho que, curiosamente, também foi gravado numa tarde chuvosa de uma segunda-feira, “algures em 2017” ). É música de delicada filigrana electrónica, construída com recursos escassos, improvisada e de toada ultra-tranquila, como aliás os títulos revelam: “Casio’s Ballad”, “Rosarioum Radiance”, “North Sea Sails” ou “Whisking Daydreams” apontam até para uma aura algo new-age que o duo não enjeita na forma como confere às suas jams uma dimensão algo meditativa ou, pelo menos, contemplativa. Música diáfana, esparsa, tão leve como a neblina, livre e solta, sem estruturas repetitivas, em permanente deriva, facto que aponta para gravações directas, sem montagens posteriores, sem mapas prévios e por isso de cariz verdadeiramente aventureiro. Música de comunhão. Quanto mais não seja da alegria sentida por duas pessoas por partilharem o mesmo espaço numa altura em que fomos todos obrigados a impor distâncias e a cumprir isolamentos.



[Danny Wolfers] Song of Moss / Nightwind Records

A arte de Danny Wolfers que adorna boa parte dos seus lançamentos na Nightwind Records é absolutamente fantástica, uma extensão das suas capacidades artísticas para um outro território igualmente fascinante. Estes desenhos coloridos a aguarela oscilam entre cenas de puro quotidiano, visões idealizadas de arquitectura (aqui ou aqui) ou o que se poderia descrever como naturezas mortas que em vez de flores, fruta ou peças de caça prefere idealizar instrumentos (como acontece aqui ou aqui). Essa distinta capacidade criativa foi até já usada pelo produtor português Lake Haze que desafiou Wolfers para lhe criar a capa de Glitching Dreams.

Não sei o que nasce primeiro, se a música ou os quadros que estas capas revelam, mas olhando para o artwork de Song of Moss – um autocarro em que surgem estranhos caracteres, provavelmente asiáticos, mandado parar por dois caminhantes no meio de um bosque verde de vegetação abundante – tem-se a imediata sensação desta música ser uma banda sonora. A leitura das notas de lançamento confirma a sensação: Song of Moss é realmente a banda sonora de um filme de Alexander Falk de 2020, “uma curta-metragem sobre uma viagem à ilha japonesa de Yakushima”.

Sobre a música, Wolfers esclarece: “Algumas destas faixas não foram usadas no filme e foram expandidas com vocais e pedaços extra inspirados pelas imagens desta ilha intrigante. Definitivamente, (a música) partilha esta vibração de floresta sempre verdejante, pesada no lado melódico sinistro e ambiental das coisas, com pedaços pouco definidos de jazz espacial amador. Também experimentei um pouco mais fundo no lado vocal das coisas, desta vez”. Tudo verdades.

A música é realmente evocativa, servida por texturas electrónicas de datação imediata, apontando para os 80s e 90s, mas descartando o lado mais “corporativo” e “hi-fi” a que alguma música dessa época produzida com semelhante tecnologia aspirava. Tudo em Wolfers é delicado, de lento crescimento orgânico, como o musgo aliás que o título do projecto menciona, uma matéria que resulta da abundante “humidade” produzida pelo clima e pela flora, neste caso peças que soam saturadas de espaço virtual e digital, com os drones envolventes a traduzirem essa imersão num meio-ambiente diferente e “exótico” no melhor sentido. Há também por aqui uma evidente dimensão espiritual, como tão claramente se adivinha em “Devotional Dawn Sequence”, com a música de Wolfers a largar um pouco do lastro irónico que por vezes a mantém ancorada em certas fantasias para ascender a uma solenidade de recorte profundo. Porque em Wolfers habitam muitas camadas criativas: o raver, o criador de bandas sonoras para tramas de espionagem imaginária, o romântico incurável, o arqueólogo sónico, mas também o criador que acredita ser capaz de libertar os espíritos que habitam certas máquinas. É esse o caso, neste Song of Moss.

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