A Oficina Radiofónica é a coluna de crítica de música electrónica do Rimas e Batidas. Música Electrónica? Sim. Techno e footwork, house e hauntology, cenas experimentais, ambientais, electro clássico e moderno, drum n’ bass e dubstep, dub e o que mais possa ser feito com sintetizadores e caixas de ritmos, computadores e osciladores e samplers e sequenciadores e outras máquinas que façam “bleep”, “zoing”, “boom” e “tshack”.
[Burial] Antidawn EP / Hyperdub
A história é por demais conhecida: Brian Eno, de cama e a convalescer de uma enfermidade qualquer, recebe a visita de uma amiga que lhe oferece um álbum com música que supostamente deveria ter qualidades terapêuticas e que o famoso compositor pediu para que fosse colocado no gira-discos. Só que o amplificador estaria com o volume tão baixo que a música mal se escutava. Por estar acamado, Eno não conseguiu levantar-se para ajustar o volume, acabando por ouvir a música a fundir-se com os ruídos que o silêncio normalmente amplifica, o que lhe terá dado a ideia para criar uma música que, e estas palavras tornaram-se algo famosas, “fosse tão ignorável quanto interessante”.
De alguma maneira, com o novo Antidawn EP, Burial parece seguir uma direcção oposta. A quase total ausência de marcação rítmica por via de vincadas baterias, como aconteceu com muita da música que assinou no passado destilando até à pura abstracção o pulso rave do techno à (difusa) luz do dubstep, parece atirar estas cinco peças para os domínios da música ambiental, mas Burial não está nada interessado em que o que aqui apresenta possa ser “ignorável”.
Uma vez mais, a cidade, os seus espaços vazios, as reverberantes abóbadas da arquitectura funcional – passagens subterrâneas, arcos de viadutos, estações… – parecem oferecer a espessura acústica de que o seu trabalho vive e, desta vez, são vozes semi-distantes, semi-ausentes, que povoam de fantasmas esses espaços, com a música a ser reduzida a um mínimo espectral e cruzada com detritos aurais – o ruído da agulha que apanha todo o pó que se deposita nas espiras do vinil, o distante rumor do tráfego, o ar que embate em estruturas metálicas, chuva e trovões distantes, sirenes ao longe. A distância – e, portanto, a ausência – parece definir o carácter deste disco, como se os sons dessa cidade vazia pudessem ter sido captados com um microfone pendurado na janela de uma qualquer torre de arquitectura brutalista erguida à beira de uma qualquer estrada em tempos movimentada, observando o centro da cidade ao longe.
E sobre essa desolada paisagem, pairam as vozes que mais não cantam ou murmuram do que fragmentos de pensamento e sentimentos: “You came around my way”, “my love”, “Let me hold you”, “I’m in a bad place”, “When you’re alone”, “Nowhere to go” ou “Come bury me”. Signos aurais de um desespero fundo, ecos fantasmagóricos de vidas perdidas embalados por arremedos de electrónica sintetizada, órgãos de igreja ou trompetes captados à distância quando tocados num túnel. A vida aqui é uma distante memória e esse vazio – essa desoladora ausência – impede que esta música seja ignorável, retendo, no entanto, o interesse, como se aqui se apresentasse um mistério que urge desvendar. Só que tal é impossível. O ano ainda agora começou e já temos o seu disco mais triste, uma diáfana sinfonia composta a partir dos sons que se agarraram ao éter, mas que estão prestes a desaparecer para sempre.
[Armando Teixeira] Cidade Modular / Base Recordings
Sobre vídeos e artwork do artista visual Paulo Romão Brás ergue-se esta Cidade Modular de Armando Teixeira. O veterano explorador sónico que deixou fundas marcas na história mais electrónica da música portuguesa das últimas décadas, começando nos já distantes Ik Mux, passando por Bizarra Locomotiva, Da Weasel, Balla, Bulllet e, mais recentemente, Knok Knok, assume aqui a sua paixão pelos sintetizadores modulares – o músico também ora no altar Buchla…
Os títulos deixam claro que esta é uma viagem, psicogeográfica e emocional, pelas artérias de uma Lisboa particular, parcialmente revelada nos títulos: “Calçada da Mouraria”, “Rua Anchieta”, “Rua de S. Lázaro”, “Campo de santa Clara”, “Arco Escuro”, “Arco do Chapeleiro”, “Rossio”, “Vale do Silêncio”, “Eixo N-S”. Esta última peça, que se aproxima dos 12 minutos de duração, é a mais longa do álbum. Começa com um zumbido, tradução de carácter electrónico do drone que o tráfego intenso envia através do ar, para lá das janelas, para dentro das nossas vidas. Uma lembrança constante de que as cidades não se fazem só de sítios para estar, mas muito também de pontos de chegada e de fuga. De passagem. O crescendo abrasivo da peça, que assume umas frequências realmente invasivas, poderia servir de banda sonora a uma qualquer visão distópica de futuro, mas é apenas o retrato musical de um presente bem real.
“Arco Escuro” é outro momento de dilatada duração no alinhamento de Cidade Modular, ultrapassando os 9 minutos, mas com um carácter bem diferente. Começa com um “ping” que parece vindo de uma qualquer mensagem em código morse, mas depressa se cola a um grave drone de estrutura elíptica que nos guia por entre sombras, desenhando um espaço que faz jus pleno ao título. Esta cidade “pintada” sonicamente por Armando Teixeira é abstracta, angular, mas aqui sobrevive uma clara dimensão emocional, traduzida numa esparsa dimensão melódica que também assombra cada uma das peças. E em “Campo de Santa Clara” há até um vislumbre da dimensão pop que Teixeira sempre habitou, através de um pulsar que poderia sustentar uma canção. “Rossio”, por outro lado, soa como uma canção de embalar hauntológica, uma forma eficaz de adormecer os fantasmas que cruzam, invisíveis, os mesmos espaços que nós. Uma cidade que, sem dúvida, recompensa quem a deixe habitar os seus ouvidos.
PS: Este trabalho vai merecer uma série de apresentações ao vivo que são, obviamente, mais do que recomendáveis: datas e lugares podem ser consultados aqui.
[Pye Corner Audio] Entangled Routes / Ghost Box
Martin Jenkins construiu uma assinalável discografia que se espraia por dezenas de edições e até assume diferentes identidades: além de Pye Corner Audio, já criou como Howling Moss, the House in the Woods ou The Head Technician, por exemplo. Entangled Routes é o seu quarto álbum para a casa mãe da hauntologia britânica, a Ghost Box, e sucede a Hollow Earth, de 2019.
A extensão da obra de Jenkins também serve como prova da sua experiência, algo que se sente claramente na forma como destila uma marca de autor a partir do seu domínio da síntese analógica e da construção de cadências dolentes que parecem erguer-se a partir de um estudo atento do passado dançante electrónico, de Patrick Cowley aos inescapáveis Kraftwerk, de Giorgio Moroder a Conrad Schnitzler.
E isso significa que neste disco – que se inspira na vida que pulsa logo abaixo da superfície como bem explícito em títulos como “New Roots”, “Earthwork”, “Growth Potential”, “Leaf Mould”, “Buried Network”, “Symbiosis”… – essa experiência é aplicada em toda a sua amplitude, traduzindo-se em música que, em termos texturais, poderia ter sido criada algures entre 1978 e 1986 (ou algo aproximado…), mas que na verdade resulta do olhar do presente para uma certa ideia do passado. Sintetizadores curvados aos comandos de sequenciadores adeptos de estruturas circulares e repetitivas, graves fundos que parecem massajar os nossos ouvidos e aquela toada hipnótica que toma conta de corpo e espírito quando o mundo se move em câmara lenta por via do pulsar intermitente dos strobes. Tão bom…