pub

Fotografia: Paradigm Disc
Publicado a: 05/01/2022

Techno, house, hauntology e outras ondas.

Oficina Radiofónica Série II | # 1: Kyron / DarkSunn / Vitor Joaquim

Fotografia: Paradigm Disc
Publicado a: 05/01/2022

A Oficina Radiofónica regressa em 2022 com uma segunda série que se voltará a focar nas diferentes manifestações da música electrónica que se produz – ou produziu – dentro e fora de portas.

Oficina Radiofónica é a coluna de crítica de música electrónica do Rimas e Batidas. Música Electrónica? Sim. Techno e footwork, house e hauntology, cenas experimentais, ambientais, electro clássico e moderno, drum n’ bass e dubstep, dub e o que mais possa ser feito com sintetizadores e caixas de ritmos, computadores e osciladores e samplers e sequenciadores e outras máquinas que façam “bleep”, “zoing”, “boom” e “tshack”.



[Kyron] Ascending Plume of Faces (Library of the Occult)

João Branco, aka Kyron, tem um singular percurso nas margens da pop: recua aos Hipnótica, regista derivas pontuais, como por exemplo o projecto O Maquinista, e, nos últimos anos, assume mais ampla expressão nos Beautify Junkyards, grupo que tem erguido uma deveras interessante obra que cruza, seguindo os mais rigorosos preceitos hauntológicos, folk, psicadelismo e electrónica pioneira incorporando ainda esparsos elementos de cenas tão diversas quando a tropicália, library music ou a kosmische kraut.

Em 2020, com a edição de Starlit Remembrance na Miracle Pond, e assinando já como Kyron, Branco permitiu-se deixar de lado o microfone para se concentrar no seu lado de explorador sónico, sintonizando o seu criativo output com as mais fundas marcas da já mencionada cena hauntológica. Esse caminho paralelo da sua obra ganha aqui mais um capítulo, com este extraordinário Ascending Plume of Faces, trabalho que sai na Library of the Occult (“independente label specializing in limited edition releases for sounds of the dark arts”, explicam eles próprios), mas que poderia perfeitamente ter lugar na mesma Ghost Box a que os Beautify Junkyards chamam casa desde 2016.

Combinando algumas gravações de campo de sons da natureza, como que a reforçar que esta é uma música que vai para lá do mundo natural e procura alcançar dimensões paralelas, com texturas electrónicas que parecem arrancadas a sintetizadores vintage pré-DX7, Kyron desenha aqui uma evocativa obra que parece preferir as sombras e a penumbra à exposição solar a que é submetida tanta da música que cria nos Beautify Junkyards. E escutam-se ecos de bandas sonoras para pérolas obscuras europeias da década de 70 – de facção mais “esotérica” e menos “científica”, diga-se –, aproximações ao lado mais electrónico e esparso da cena kraut (mais Popol Vuh do que Neu!…), resultando a combinação das diferentes referências numa música que à segunda audição parece logo despoletar memórias distantes, provavelmente coleccionadas por quem porventura possa ter despendido horas e horas semi-consciente no arranque dos anos 80 a enganar o sono enquanto à sua frente um difuso ecrã a preto-e-branco debitava o que então pareceria aos olhos de um qualquer jovem pré-adolescente um sem fim de aborrecidas imagens com documentários sobre paisagens naturais distantes, indústria e ciência, filmes com intrigas internacionais tecidas na guerra fria ou curiosos exercícios de animação criados por autores com impronunciáveis nomes cheios de “Zs”, “Ys” e “Ks”. Estão a ver?



[DarkSunn] Almada Velha (Monster Jinx)

Trilhou-se um longo caminho em Portugal desde que Armando Teixeira, aka Bulllet, Sam The Kid ou Fuse ousaram concentrar no plano instrumental as suas particulares visões musicais. E o que em 2002-2004 soava exótico por dispensar as barras com que os MCs então vincavam o particular “sotaque” tuga no contexto de uma mais ampla e internacional cultura, hoje soa perfeitamente normal, tantas as experiências nesse domínio entretanto disponibilizadas. E nesse âmbito particular, é impossível contar a história do hip hop instrumental em Portugal sem dedicar um longo capítulo ao incansável trabalho da Monster Jinx, com DarkSunn a ser uma espécie de porta-voz da avançada guarda que assume com orgulho a cor púrpura.

Bruno Dias, aka DarkSunn, tem sido presença habitual e recorrente nos múltiplos projectos colectivos da Jinx, mas, com a excepção do projecto Crooked n Grinded repartido com Maria em 2020, já há algum tempo que não assumia uma manifestação de maior fôlego – mais concretamente desde Melange, trabalho que já data de 2015. Esta sagração do seu “berço”, Almada Velha, é por isso mesmo um trabalho muito especial.

“É uma carta de amor”, explica DarkSunn nas notas de lançamento, “mas é também uma vénia à cidade e uma tentativa de retribuição, sem cair nos lugares comuns de samplar os seus sons ou os de quem lá vive”. De facto, e nesse sentido, Almada Velha é um retrato muito mais impressionista do que realista, com o percurso pelo núcleo histórico daquela importante metrópole da Margem Sul a ser traduzido de forma muito emocional. Para tanto, concorrem os vastos recursos sampladélicos de Bruno Dias, capaz de extrair real espessura emocional dos diferentes loops que combina, alcançando máximo efeito na sua procura de equilíbrio entre a eficaz secura das baterias, cadenciadas com o balanço certo, desenhadas com cuidado e com os sons dos seus diferentes elementos muito bem trabalhados ao nível de texturas e frequências, e as melodias e harmonias de toada mais jazzy ou, à falta de melhor termo, “cinemática”. O resultado é puro mel que escorre dos auscultadores para dentro dos ouvidos e impõe aquele abanar de cabeça que segue o passo do autor.

É claro que DarkSunn evidencia aqui ser um estudante atento: não apenas desses 20 anos e mais qualquer coisa de história que a beatologia sampladélica de colheita nacional já regista, mas também dos mestres – como Premier e Diamond D, J Dilla, Madlib e Alchemist ou Dj Muggs, Shadow ou Daedelus – que elevaram a arte instrumental do hip hop aos píncaros que hoje todos reconhecemos. Isso não impede, no entanto, que se sinta uma marca de autor na música que cria, patente talvez nessa tal espessura emocional que consegue conferir a cada um dos seus beats, como se todos tivessem dentro uma história à espera de ser desvendada. É experimentar passar um bocado na Casa da Cerca a olhar para Lisboa enquanto “Cerca” ressoa nos ouvidos. Talvez assim essa história se revele.



[Vitor Joaquim] Quietude (Ed. de Autor)

Na recta final de 2021, o prolífico Vítor Joaquim voltou a convocar-nos para a imersão, para a escuta, com a edição de Quietude, o sucessor de The Construction of Time (lançado um ano antes) e um trabalho em que, curiosamente (ou talvez não…), procura desconstruir o tempo ou pelo menos imobiliza-lo.

Resultando de uma encomenda da Sekoia Artes Performativas que propôs ao músico e compositor uma residência artística na casa do Paço, em Vila Meã, onde a escritora Agustina Bessa Luís trabalhou, inspirando-se no lugar para várias das suas criações literárias e situando aí parte da história que atravessa as páginas do seu clássico A Sibila, editado originalmente em 1954. A pandemia travou de alguma forma os planos originais e mais ambiciosos para esse projecto, mas Vítor Joaquim pode concluir a obra que a vivência nesse lugar inspirou. Escreve o autor: 

“Respirar naquele lugar, viver e dormir naquela casa, caminhar por aqueles caminhos, desfrutar da forma como a vida progride naquele vale, e de uma forma serpentina ouvir a calma do tanque como uma “piscina olímpica”.

Sentir a magia dos pássaros a chilrear de manhã e mais tarde as rolas, ou os cucos ou mesmo a portagem do sino da igreja ao longe. E apenas respirar.

Tais eram os ‘passatempos’ que acabaram por se tornar uma ocupação a tempo inteiro durante a residência.

Quietude, é assim, e sobretudo, uma imensa paragem no tempo num local onde a ficção escrita por Agustina nos obriga a olhar para as coisas da natureza de uma forma muito especial, uma forma em que a imaginação do que tem sido a sua presença no local é confundida com as imagens que podemos fazer das personagens que vivem nesse mesmo local. É um ser triplo: O ser de Agustina, o ser das suas personagens e o nosso próprio ser, que é ao mesmo tempo uma tripla ficção em si mesmo. Já não somos o que somos.”

Aqui, Vítor Joaquim assegura voz, piano, demais teclados, sintetizador granular, electrónica, mas também o “sibilar”, “entoar” ou “crepitar”, assumindo ainda o sampling do trompete originalmente executado por João Silva. O registo inclui ainda, como mencionado pelo próprio Vítor Joaquim nas notas que acompanham este lançamento, “alusões espectrais a Ensemble(1967) de Adamo.

E por entre a água que escorre pelo tempo, em “O Tanque”, escuta-se o piano envolto na neblina do reverb, ou o vento, os pássaros e o sino distante captados na “Eira”, ecos de um outro tempo que se faz eternidade quando a natureza se liquidifica por via do processamento e Vítor Joaquim transforma tudo em evocativa matéria sónica, investindo numa tradução psico-geográfica de um lugar que revela ter real capacidade de nos transportar para fora de nós mesmos e do espaço que ocupamos quando esta música ressoa dentro dos nossos ouvidos e nos captura a imaginação. A mais longa peça do álbum, que se estende para lá dos oito minutos e encerra o alinhamento, “Os Caminhos”, começa como exercício de pontilhismo granular antes de convocar a memória do Ensemble de Adamo, rodeando-a pelo ar que se desprende do trompete de João Silva, e embrulhando tudo nos fragmentos de tempo que se foram colecionando nas peças anteriores. Imagens vistas do lado de lá de uma diáfana cortina chamada tempo, essa substância imutável dentro da qual tudo existe. A beleza do lugar que Vítor Joaquim explorou está toda aqui, na Quietude desta música.

pub

Últimos da categoria: Oficina Radiofónica

RBTV

Últimos artigos