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Oficina Radiofónica é a coluna de crítica de música electrónica do Rimas e Batidas. Música Electrónica? Sim. Techno e footwork, house e hauntology, cenas experimentais, ambientais, electro clássico e moderno, drum n’ bass e dubstep, dub e o que mais possa ser feito com sintetizadores e caixas de ritmos, computadores e osciladores e samplers e sequenciadores e outras máquinas que façam “bleep”, “zoing”, “boom” e “tshack”.
[Steve Spacek] Houses / Black Focus Records
Steve Spacek merece ser muito mais celebrado do que aparentemente é. O cantor e produtor do sul de Londres personifica o típico criador inquieto que foi mostrando diferentes facetas do seu talento através da dupla Spacek, a solo como Beat Spacek ou Black Pocket e até, numa fantástica parceria com Mark Pritchard, na aventura Africa Hi Tech. A sua obra conquistou espaço no catálogo de editoras de referência como a Eglo, Ninja Tune ou Warp e espraiou-se entre a neo-soul e o hip hop, entre aproximações a diferentes capítulos do hardcore continuum, entre o dancehall digital ou o house.
Houses é, aliás, o título do seu novo registo na Black Focus de Kamaal Williams. E a associação a essa editora é mais um sinal de que Steve Spacek tem sabido manter-se pertinente para o agitado mapa do presente, nunca descansando à sombra de glórias passadas, aproximando-se sempre de quem, como ele, não teme a exploração. Como Madlib no recente
Bandana produzido para Freddie Gibbs, ou como o português Kilú, também Steve Spacek enaltece as capacidades das ferramentas iOs para produção, com a parte de leão do novo trabalho a resultar de apps instaladas nos seus iPhone e iPad. Como explica o próprio Spacek nas notas que acompanham o lançamento do novo álbum, sempre que abraça uma nova ferramenta de produção a house music é o seu ponto de partida no processo de aprendizagem das dinâmicas da nova tecnologia: “Sinto que é a música mais fácil de fazer e sempre brinquei com o facto de ser capaz de criar um
beat house em 10 minutos. Pois bem, desta vez fiz um álbum inteiro…” Nessas notas, Steve também sublinha a importância que o house sempre teve para si, desde que o descobriu nas pioneiras raves de Londres facto que, mais tarde, o levou a investigar as formativas cenas de Chicago e sobretudo Detroit, cidade que é talvez a sua principal inspiração, com a música de artistas como Moodymann, Theo Parrish ou J Dilla a funcionar como assumida referência.
Houses é uma criação solitária, uma espécie de “loner folk” para o século XXI que em vez de nos remeter para as montanhas da Apalachia ou para as desoladas paisagens áridas dos desertos americanos nos planta no centro de uma pista idealizada, com a voz de Spacek a funcionar com um bálsamo, sobretudo se a aproximarmos dos nossos ouvidos com um bom par de auscultadores. E na base de tudo há um elegante pulsar arredondado por pads jazzy e quentes texturas digitais organizadas em arranjos de arquitectura tão linear e económica como o design da tecnologia que os ajudou a erguer. O resultado final é uma voz de angélico falsete envolta numa cadência que soa a veludo. Tudo certo aqui. Steve Spacek merece mesmo o vosso incondicional aplauso.
[Pedro Magina] Olímpia / Holuzam
Já passaram cinco anos após as últimas notícias de fôlego oferecidas ao mundo por Pedro Magina:
11, álbum lançado com duplo selo da Maison Cannibale e da Crash Synmbols, saiu em 2015, culminando um período de intensa exploração que assistiu ao final do sonho pop dos Aquaparque e o viu a espalhar delírios tropicais de diferentes intensidades febris em editoras como a Not Not Fun ou Mental Groove. Depois, Magina abalou, foi para Barcelona e manteve-se em relativo silêncio que é agora interrompido com a edição de
Olímpia na portuguesa Holuzam. Com alguns sintetizadores ao lado (Korg R3 e Uno Synth, dizem-nos as notas de edição) mais baixo, guitarra e samples improváveis (as mesmas notas apontam para fontes “cheesy”), Magina parece evocar o mesmo senhor Wollogallu que em tempos assombrou os delírios de Nuno Canavarro e Carlos Maria Trindade aportando na mesma costa tropical de fantasia visitada no início dos anos 90 pela dupla portuguesa. O tom baleárico da música de Pedro Magina é pautado por alguma efervescência “quarto mundista” que o leva à projecção de mundos verdes que só existem na sua imaginação: a última faixa, “Dada”, cruza ruídos de fauna que (mais do que provavelmente…) não pertencem à mesma geografia de onde foi subtraído o sample de tablas que carrega a peça, permitindo depois a entrada de uma camada de névoa melódica electrónica que parece chegar directamente da banda sonora de um clássico dos anos 80 que sobrevive há décadas numa VHS já gasta. A new age da escola californiana criada por velhos hippies que a dada altura trocaram as guitarras acústicas por sintetizadores DX7 parece ser outra das referências para Pedro Magina que injecta nas suas criações uma dimensão contemplativa que nos submerge em paz e harmonia (escute-se “A Matter of Logic” sempre que for preciso esvaziar o espírito de preocupações mundanas). E, claro, a ideia de dançar dentro da cabeça enquanto se repousa na areia morna de uma praia que combina uma palmeira inclinada com um por de sol de estúdio de cinema é mais ou menos transversal a todo o disco, mas muito premente em “Everybody’s Boogie”, que soa como italo disco desacelerado até à abstracção. Como num sonho. Agora, se tudo correr bem, Magina não demorará outros cinco anos a fazer novo álbum. Porque é importante que nos vá oferecendo novas rotas para o escape a que cada vez mais esta realidade nos obriga.
[Squarepusher] Be Up A Hello / Warp
Squarepusher também andava ausente desde 2015, ano em que nos deu
Damogen Furies. Mas basta olhar para a sua página Discogs para se perceber que Tom Jenkinson não se permitiu assim tantos períodos de acalmia no quarto de século que já leva a criar ruído frenético.
Be Up a Hello é o seu 15º álbum como Squarepusher desde a estreia, em 1996, com
Feed Me Weird Things e a isso ainda há que somar inúmeros EPs e, pois claro, trabalho sob outras designações: lançou na etiqueta de Aphex Twin como Chaos A.D., na Spymania como Duke of Harringay e até inventou a banda Shobaleader One para dar vazão aos impulsos Miroslav Vitous que o assaltam de cada vez que pega no seu baixo. Desta vez, Squarepusher resolveu limpar o pó a algum do material que tinha arrumado num canto do estúdio, incluindo o seu velho computador Commodore, forçando-se a entrar no mesmo contexto tecnológico que o assistiu nos primeiros passos da sua carreira. Isso confere a
Be Up a Hello uma dimensão revisionista, com as suas texturas 8-Bit a soarem como se tivessem saltado directamente das consolas com que Jenkinson há-de ter jogado na sua pré-adolescência (ideia nítida nas primeiras duas faixas do álbum, “Oberlove” e “Hitsonu”). Mas se o pulsar frenético de uma imaginação acelerada domina boa parte do material aqui apresentado, com breakbeats que parecem estar permanentemente a desmoronarem-se como um castelo de cartas, soando as faixas como se Tom tivesse gravado o som de uma caixa de metal cheia de peças de legos a cair por umas escadas abaixo, há também desvios por outros territórios. Em “Detroit People Mover” Squarepusher parece fantasiar com o estúdio que Vangelis usou para criar a banda sonora de
Blade Runner, deixando o caos rítmico de lado em favor de uma planante visão sintetizada. “80 Ondula” também dispensa propulsão percussiva, mas é mais sombria, trocando o espaço sci-fi que inspira “Detroit People Mover” pela densidade de um qualquer thriller psicológico. De resto, não há que enganar: com títulos como “Speedcrank”, “Nervelevers”, “Terminal Slam” ou “Mekrev Bass” o que nos é dado é uma barragem de breakbeats incessante e o que soa à revolta dos micro-chips que um dia hão-de criar um monstro mutante a partir dos detritos da tecnologia caída em desuso e amontoada naquelas montanhas de computadores esventrados que às vezes vemos nos filmes que procuram alertar-nos para os perigos desta crescente submissão à tecnologia em que todos vivemos. Diz o gajo que ouviu este disco no Spotify…