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Ilustração: Riça
Publicado a: 06/04/2021

Techno, house, hauntology e outras ondas.

Oficina Radiofónica #56: Pye Corner Audio / Buried Treasure

Ilustração: Riça
Publicado a: 06/04/2021

Oficina Radiofónica é a coluna de crítica de música electrónica do Rimas e Batidas. Música Electrónica? Sim. Techno e footwork, house e hauntology, cenas experimentais, ambientais, electro clássico e moderno, drum n’ bass e dubstep, dub e o que mais possa ser feito com sintetizadores e caixas de ritmos, computadores e osciladores e samplers e sequenciadores e outras máquinas que façam “bleep”, “zoing”, “boom” e “tshack”.



[Pye Corner Audio] Black Mill Tapes (10th Anniversary Box) / Lapsus Records

Declaração de interesse, antes de mais: acompanhei de forma muito atenta (a palavra “obsessiva” é perfeitamente encaixável aqui…) todo o desenvolvimento da série que haveria de revelar Pye Corner Audio, “identidade” que Martin Jenkins criou a partir do “selo” Pye Corner Audio Transcription Services. Estas Black Mill Tapes, originalmente lançadas em 2010, em formato digital, em primeiro lugar, seriam, de acordo com o enquadramento conceptual, material encontrado em bobines de fita e “transferido” para suporte digital pelo Head Technician, “aficcionado de cachimbo, evangelista analógico e inventor da técnica de reprodução ‘psíquico-estereofónica’”.

Na verdade, Jenkins respondia aí ao ímpeto “hauntológico” resultante de meia dúzia de anos da então quase-secreta actividade da Ghost Box, a editora criada por Julian House e Jim Jupp a que, aliás, Pye Corner Audio haveria de ligar-se um par de anos depois do lançamento do primeiro volume de Black Mill Tapes, subtitulado Avant Shards, com a edição de Sleep Games, o primeiro de três álbuns entretanto já lançados por esse selo (enquanto Pye Corner Audio, Jenkins lançou igualmente álbuns na Sonic Cathedral Recordings, TDO Cassettes, More Than Human e Ecstatic, para lá de ter contribuído com material noutros formatos para vários outros selos, da Death Waltz à Front and Follow – sinais claros de uma muito abundante produção).

Em 2011, através da Further Records, saiu o segundo volume de Black Mill Tapes, com o subtítulo Do You Synthesize?, desta vez já em cassete, para lá de formatos digitais, com a etiqueta de Seattle a aproveitar para, um ano depois, dar à estampa, igualmente nesse então talvez ainda mais popular formato, o primeiro volume. Em 2012 saiu também, uma vez mais digital e analogicamente, o terceiro volume da série, com subtítulo All Pathways Open. O último dos volumes, o quarto, Dystopian Vectors, saiu em 2014, uma vez mais em formatos digitais e cassete, esta carimbada também pela Further Records.

Entretanto, a muito conceituada Type, lançou, em 2012 e 2014, respectivamente, em vinil, os volumes 1&2 e 3&4 das Black Mill Tapes. Ao mesmo tempo, essa editora de Birmingham criada por John Twells (aka Xela) e Stefan Lewandoski lançou também, igualmente em 2014, um triplo CD reunindo os quatro volumes de incrível material da série Black Mill Tapes. Com edições em ficheiros digitais, cassete, vinil e CD (e entenderão melhor o uso da palavra “obsessiva” mais acima se confessar que comprei estes quatro volumes em TODOS esses formatos…) seria de esperar que a documentação para a posteridade desta série criada por Pye Corner Audio estivesse devidamente acautelada, mas eis que, em 2020, a editora de Barcelona Lapsus Records fez saber que preparava a ambiciosa edição, numa luxuosa caixa de vinil, da série integral Black Mill Tapes  por ocasião do 10º aniversário do lançamento do primeiro volume. O facto de aos quatro títulos originais a Lapsus ter prometido adicionar um 5º volume de Lost Tapes tornou absolutamente incontornável (pelo menos para quem caracteriza como “obsessiva” a sua relação com este corpo musical de Pye Corner Audio) a aquisição de mais este “artefacto” entretanto já esgotado na “fonte” e logo valorizado, como seria de esperar, no Discogs.

A razão para se listarem por aqui todas as diferentes edições, para lá dos justificáveis “bragging rights” (ninguém é perfeito, bem sei…), prende-se com a necessidade de ilustrar o quão importante é a totalidade desta obra. A hauntologia espalhou por muitos dos selos discográficos anteriormente mencionados e por tantos, mas tantos outros, incluindo em território nacional, um vasto puzzle de obras que compõem uma das mais consistentemente interessantes e intrigantes imagens da electrónica contemporânea. Esta música, que se faz em igual (ou desigual, na verdade…) medida de um fascínio por um certo passado (que, sublinhe-se, é legítimo pensar que poderá só existir como uma construção do presente…) feito de um lado específico da library music (sobretudo do eixo KPM, DeWolfe, Bruton), de alguma kosmische resgatada à cena kraut, de experiências da vanguarda europeia da música concreta e electro-acústica, de certas bandas sonoras (do lado mais série B de um certo cinema, o que explorou o medo derivado da guerra fria, da então bem real ameaça nuclear, etc) e da tradição mais psicadélica do lado experimental da folk. Tudo isto, claro, com a “supervisão” do Radiophonic Workshop, o colectivo de criadores que, especialmente nas décadas de 60 e 70, ofereceu um “som” e uma “aura” estética muito particulares à circunspecta e cinzenta produção televisiva britânica.

Martin Jenkins estudou bem todas essas “fontes”, explorou todas as possibilidades de intersecção dessas coordenadas, mas acrescentou a essa “fórmula” uma espécie de eco mais ou menos distante, como aquele que se escuta nos sonhos, do lado mais espectral do techno de Detroit e da cultura rave, como se (nesta série pelo menos, não tanto noutros títulos) abdicasse da vocação mais percussiva e funcional dessa música, aproveitando sobretudo a sua reverberação, as frequências mais “fantasmagóricas”. Quando esse pulsar mais declaradamente rítmico sobressai (como, por exemplo, em “Toward Light”, do segundo volume, ou “Inside The Wave”, do terceiro) surge quase sempre em combustão mais lenta, como aconteceria se os Underground Resistance alguma vez tivessem criado música para um thriller psicológico de John Carpenter. Como é óbvio, só o presente permite responder a essas conjecturas.

Ouvir todo este material de uma assentada pode resultar numa experiência sonicamente avassaladora, numa imersiva viagem a um mundo de arquitetura brutalista, de tecnologia obsoleta, de carros de linhas rectas e gente vestida com sobretudos pesados. Uma tradução musical de um passado que fascina precisamente porque aconteceu num momento em que o mundo mudou de muitas formas (geo-políticas, filosóficas, económicas, espirituais e, sobretudo, tecnológicas). O material extra contido no quinto volume segue a mesma linha: sintetizadores de semblante carregado, vibrações fundas, melodias espectrais e arranjos em câmara lenta, estudos de uma música electrónica que poderia ter sido originalmente criada mais ou menos entre 1976 e 1985, mas que, na verdade, resulta da profundamente criativa visão de quem, a partir deste presente, está dotado da capacidade de estender o seu olhar pelo menos até onde o YouTube permite alcançar…



[Vários Artistas] Undercurrents / Buried Treasure

Os primeiros olhares retrospectivos e antológicos para a library music começaram por enaltecer, antes de mais, os pioneiros ecos do lado mais orquestral e funky da produção de editoras como a KPM ou a De Wolfe e a memória de quem acompanha as manifestações de fascínio por parte de colecionadores por esta música criada por companhias que abasteciam os mercados de produção televisiva e cinematográfica das décadas de 60, 70 e 80, sobretudo, reconhecerá que o lado mais electrónico e, vá lá, indulgente destas editoras nem sempre foi devidamente valorizado. Mas um pouco por causa de alguns nomes ligados à hauntologia (ver texto acima…), a produção de library music mais tardia que debitou incontáveis títulos com música que hoje soa como apropriada para telejornais, desinteressantes documentários sobre campos de golfe ou filmes de série B com protagonistas que adoravam usar casacos com almofadas nos ombros começa a ganhar outra visibilidade.

É aí que se pode enquadrar esta compilação da consistentemente fantástica Buried Treasure. Com alinhamento desenhado a partir dos catálogos das editoras Josef Weinberger Theme Music, Impress & Programme Music, Undercurrents reutiliza o título de um álbum de 1985 da JW (cujo valor na “bolsa” Discogs – cópia mais cara a meros 15 euros… – já diz muito do quão procurada é a Library Music desta era) e inclui peças de nomes fundamentais deste universo particular da música de produção, de Peter Thomas a Tim Cross ou Mo Foster.

Há múltiplas nuances musicais e rítmicas nesta antologia que reúne música lançada entre 1967 e 1985, com cerca de metade das faixas a datar já da década de 80. Os temas – à boa maneira da library music deliciosamente descritos com frases que eram pensadas para quem queria rapidamente identificar um tema para incluir num documentário ou numa reportagem de telejornal: “ripples of DX7 + Prophet 5, light & neutral”, “weighty synth theme with notable punchy rhythm”, “cascading patterns on Fairlight CMI + prophet 5”, “evenly scored, mid-tempo, fretless & funky” ou até “cool alto flute over exciting bongos & drums” e “bamboo flute, sitar & tabla” – traduzem elevados valores de produção, sempre servidos por músicos de calibre, mas, ao mesmo tempo, são esparsos e soltos, perfeitos por isso mesmo para “ilustrarem” imagens. E, pois claro, há por aqui abundante material sampladélico, com belíssimos breaks de bateria, baixos redondos e pulsantes e muita electrónica tão fantasticamente datada que, estranhamente, volta a soar presente (e, uma vez mais, ver texto acima…). Procurem lá, e porque é difícil resistir a estes “retratos”, imaginar a que soará um tema servido por “dramatic tom-tom rhythms & pipes” ou outro que garante ser um “real funky theme with flute, moog & trumpet” antes de carregarem no play e tentem lá perceber se já não terão “visto” estes “filmes”…

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