pub

Ilustração: Riça
Publicado a: 16/02/2021

Techno, house, hauntology e outras ondas.

Oficina Radiofónica #52: Morita Vargas / Dirty Bungalow

Ilustração: Riça
Publicado a: 16/02/2021

Oficina Radiofónica é a coluna de crítica de música electrónica do Rimas e Batidas. Música Electrónica? Sim. Techno e footwork, house e hauntology, cenas experimentais, ambientais, electro clássico e moderno, drum n’ bass e dubstep, dub e o que mais possa ser feito com sintetizadores e caixas de ritmos, computadores e osciladores e samplers e sequenciadores e outras máquinas que façam “bleep”, “zoing”, “boom” e “tshack”.



[Morita Vargas] 8 / Hidden Harmony

Os músicos que operam nos domínios da fantasia podem usufruir de uma estimulante liberdade que os impele a explorar regiões que de outra forma talvez não fossem acessíveis. Ouvindo o maravilhoso 8 da artista argentina Morita Vargas é-se transportado para um mundo musical tão estranho quanto fascinante: há por aqui uma qualquer sustentável leveza folk, resquícios da densidade “quarto mundista” professada por Jon Hassell, ecos de música concreta, ambientalismo new age, minimalismo repetitivo e algo mais de indizível.

A voz é o principal barro moldado por Morita Vargas: o material deste álbum nasceu de ideias vocais “anotadas” no telefone numa linguagem abstracta, altamente sugestiva e repleta de uma inocente sensualidade. Esse material, repetido, multiplicado, distorcido, manipulado até à exaustão, como o corpo que se reflecte numa sala de espelhos numa feira popular qualquer, é depois combinado com percussões, kalimba, sintetizador, flauta, resultando numa nuvem rarefeita que cede sempre espaço ao ar, ao silêncio, uma ideia que parece permear cada uma das “canções”.

A influência do minimalismo de Philip Glass é especialmente notória nalgumas passagens (escute-se “Deysa”, por exemplo), mas o cruzamento desses pulsares com a sua voz cria algo de decididamente diferente, projectando esta música para um espaço virgem, acolhedor, exótico, no sentido mais poético da palavra. Em “Garganta”, por outro lado, a compositora propõe-nos uma visão de pista, se por acaso a “pista” for um lugar desprovido de força gravitacional onde possamos todos flutuar, libertos do peso e de tudo o resto… Para dançarmos de forma totalmente livre. O tema que encerra a “viagem”, “Ginseng” faz-se todo ele de vento que ressoa quando passa numa escultura de vidro, tão irreal e ainda assim tão imersivo. São apenas dois minutos que nos obrigam, logo que esgotados, a voltar a pousar a agulha no primeiro tema do lado A para repetir a profunda massagem aural a que acabámos de ser submetidos.

No título do álbum, 8, Vargas abriga algumas ideias da numerologia: explicam as notas de lançamento que a tradução numerológica de “8” nos remete para o espaço de transição entre o paraíso e a Terra, significando “a iluminação da nossa capacidade infinita para várias metamorfoses”. A retórica pode ser fundada nas mesmas ideias que amparavam as derivas new age, mas ultrapassando esse véu conceptual, esta música permanece válida porque soa de facto tão espiritual quanto física, o tipo de som que bem poderia pairar entre dois planos ou dois mundos, assinalando essa zona de transição que é onde tantas vezes se encontram os mais interessantes estímulos: o que se encontra entre dimensões não pertence a nenhuma delas e logo é totalmente novo e livre. Tal como esta música.

(Este álbum está disponível na Peekaboo Records)



[Dirty Bungalow] Home Alone / 1980 Lyfers

O hip hop desafia convenções de fidelidade sonora desde o momento em que Grand Wizard Theodore achou boa ideia usar a agulha do gira-discos para arranhar o vinil, descoberta feita quando a mãe o chamou para jantar e ele pousou a mão no disco para a poder ouvir. Desde então, o hip hop nunca mais parou de moer a cabeça a engenheiros de som um pouco por todo o mundo, adoptando tecnologias quando outros as descartavam e procurando formas intuitivas para a sua utilização não necessariamente contempladas nos manuais de utilizador. Todos conhecem a história do arranque da cultura em Portugal como estando profundamente ligado à caixa de ritmos QY10 da Yamaha que calhou, por alturas da preparação da compilação Rapública, estar em saldos numa loja de instrumentos de Benfica, em Lisboa.

A questão “lo-fi” tão discutida no presente não será por isso mesmo sonora, antes uma forma de sublinhar uma atitude criativa, solitária, focada na produção caseira, em que os produtores se mostram capazes de contornar regras de normalização sonora por absoluta necessidade, como aliás sempre aconteceu na música, desde pelo menos o tempo em que Lee Perry limitado a quatro pistas fazia bounces de gravador para gravador comprometendo a integridade das suas gravações até à era em que miúdos como Beck, em quartos de residências universitárias, concluíram que não era necessário ter acesso aos grandes estúdios de Nova Iorque ou Los Angeles para deixar uma marca na história. Bastava um gravador de quatro pistas e um microfone de plástico da Radio Shack. O que para uns era defeito, para outros era mero feitio.

Esse espírito, ainda por cima exacerbado por tempos de confinamento, que limita o acesso de bedroom producers em todo o lado à entreajuda tão vital nestas comunidades informais (“Estás em casa? Achas que posso passar aí para me emprestares o teu microfone que o meu está todo desgraçado?”), está bem presente no novo registo de António Almeida, aka Dirty Bungalow, que sucede às suas edições em cassete de 2018 e 2019  com Home Alone, trabalho com carimbo editorial da 1980 Lyfers que mereceu distribuição digital através do Bandcamp e também lançamento em CD.

E o que Dirty Bungalow nos propõe é uma banda sonora para degustar de auscultadores, de robe e cuecas, como se sugere no artwork de Oker, permitindo que a música nos transporte para um qualquer filme imaginário que possa cruzar Shaft, a Rua da Cedofeita, cenas avulso de alguns filmes de Tarantino entrecortadas por frames roubados ao Duarte & Companhia, numa amálgama que, por estranho que possa parecer, faz pleno sentido. O ritmo é dolente, como se o “baterista” de serviço tivesse sido obrigado a tocar debaixo de água, os samples não disfarçam o pó que o vinil carrega após anos na secção de saldos, as guitarras são funky, os órgãos são jazzy, nos filmes porno aqui samplados ainda ninguém se depilava e o veludo nos sofás dos cabarés onde esta “banda” poderia tocar já está bastante coçado. Tudo certo, portanto.

Dirty Bungalow recrutou almas gémeas, no Zoom, certamente, que isto não são tempos para ver muita gente enclausurada no mesmo quarto. Responderam à convocatória o excelso Minus & MrDolly que trouxe sintetizadores com pedigree para a festa; Logos, o narrador da decadência de serviço no Conjunto Corona; PZ, que assina aqui uma ode às sapatilhas; e um enigmático declamador de nome Carlos. Todos rodeados de fumo, todos com a “imagem” distorcida, todos encaixados na perfeição na narrativa deste “filme” de Dirty Bungalow. Ele pode estar sozinho em casa, mas tem toda a nossa atenção.

pub

Últimos da categoria: Oficina Radiofónica

RBTV

Últimos artigos