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Ilustração: Riça
Publicado a: 31/12/2020

Techno, house, hauntology e outras ondas.

Oficina Radiofónica #49: os 20 melhores álbuns nacionais de 2020

Ilustração: Riça
Publicado a: 31/12/2020

A música electrónica assumiu em 2020 uma talvez ainda mais pronunciada pluralidade: estética, geográfica, humana, cultural. Mas, como todos os géneros que também sobrevivem graças a uma interacção directa e intensa com o público – e a electrónica que se alimenta dos festivais e sobretudo das pistas de dança deve aí ser particularmente considerada -, também neste terreno se viveram dias dramáticos. O que não significa que os artistas, as editoras e as mentes criativas que habitam este espaço se tenham dado por vencidos: em 2020, lançou-se talvez mais música electrónica do que em qualquer outro momento da história, fruto da disseminação das ferramentas de produção, mas também muito graças a iniciativas como as Bandcamp Fridays que inspiraram milhares de artistas a apresentarem mais nova música do que nunca. E internacionalmente, como de resto no nosso próprio país, isso traduziu-se numa fértil colheita com elevada qualidade. Muito complicado limitar a lista a 20 entradas quando dezenas de outras obras igualmente merecedoras de atenção e aplauso são deixadas de fora. Por vezes pela simples razão de que não há tempo suficiente para se escutar tudo o que de incrível vai sendo editado.

Por isso mesmo, tomámos em primeiro lugar a matéria que foi sendo abordada na Oficina Radiofónica como ponto de partida para a elaboração desta lista: e foram quase meia centena de edições da coluna com dezenas e dezenas de trabalhos a merecerem a nossa atenção, semana após semana.

À beira de 2021, com toda a intenção de intensificar a oferta desta oficina e com a firme ideia de a expandir para lá do seu ponto de origem como coluna de críticas, lançamos então um derradeiro olhar sobre a matéria que nos entrou pela Oficina Radiofónica adentro.



1º – [Drumming GP, Joana Gama, Luís Fernandes] Textures & Lines (Holuzam)

“O que é óbvio quando nos permitimos o mergulho e optamos por uma deep listening de absoluta concentração no que nos é proposto neste Textures & Lines é o quão rico é o universo sónico aqui desenhado, um sofisticado e intrincado ecossistema de sons e pulsares, de linhas e texturas, de farrapos melódicos e névoas harmónicas, de passagens de entusiasmante irrequietude e momentos de sublime tranquilidade, um oceano sonoro que umas vezes pode soar denso, profundo e opaco e outras límpido, sereno e carregado de cor, como um idílico mar tropical povoado de corais onde se abriga uma rica e policromática vida.”



2º – [Vítor Rua] Electronic Music 1995-2010 (Marte Instantânea)

“A sugestão por parte da Marte Instantânea para que esta música seja escutada em auscultadores é de facto acertada: Vítor Rua oferece-nos aqui um conjunto de minimais peças electrónicas, entre planos mais espirituais e contemplativos e outros mais maquinais e repetitivos, com nuances texturais que ganham com o detalhe aural que a audição atenta pode proporcionar.”



3º – [Cátia Sá] Da Barriga (Ed. de Autor)

“Todas as canções aqui expostas (e são nove as faixas, mas com um pequeno interlúdio a quedar-se nos 15 segundos e dois momentos que pouco se estendem para lá da marca de um minuto) são servidas por uma envolvente seda electrónica que parece nascer da filtragem de uma difusa memória pop, todas são carregadas de luz e até mesmo a faixa de abertura, a já mencionada ‘Estrela’, desenhada com angelicais loops de voz (e sapos…), refere o jardim da capital com o mesmo nome, e não um qualquer astro que possa ser visível num céu nocturno.”



4º – [Império Pacífico] Exílio (Variz)

“Com a colaboração de Maria Reis num par de temas – em pleno modo blasé-pop a lembrar obliquamente alguém como Isabelle Antena (elogio) –, Belussi e Tavares assinam aqui um fascinante trabalho de electrónica solarenga apontada às pistas de areia que se estendem diante dos melhores bares de praia da nossa imaginação.”



5º – [Nídia] Não Fales Nela Que A Mentes (Príncipe)

“Nídia volta a deixar claro que domina com pleno saber as suas ferramentas de produção, assinando um quadrado perfeito em que nenhuma das peças convocadas para os seus arranjos soa deslocada: por um lado, não há um elemento percussivo, um efeito ou uma frequência que seja fora do sítio, por outro, sente-se um corajoso alheamento das marcas que poderiam ancorar esta música no momento presente do continuum hardcore em que seguimos imersos e isso é o que lhe poderá garantir mais facilmente o futuro.”



6º – [Folclore Impressionista] A New Sensation: Music For Television (Russian Library)

“E, nesse sentido, mas não só, A New Sensation: Music For Television é um claro triunfo porque se liberta do tempo – sai em 2020, mas bem podia ser um registo perdido criado, como já sugerido, em 1979, 1983 ou até 1995 ou 2004…”



7º – [Rabu Mazda] Todo Mundo Sabe (40% Foda/Maneiríssimo)

Todo Mundo Sabe é um ultra-psicadélico (vocês sabem, sentimento de deslocação da realidade, efeito caleidoscópico de confusão dos sentidos, alteração das noções de contínuo temporal e espacial) e sincrético exercício que nos propõe algo de novo ao tomar uma boa parte do que já se conhece – house e r&b, electrónica glitch, pads new age, tensão pós-dubstep, cadências afro-digitais de diferentes velocidades, do tarraxo ao kuduro, sampling da escola hip hop, etc  – para depois mergulhar o conjunto num caldo de líquido metal cromado de onde sai um reluzente e sonoro corpo escultórico que tem tanto de Anish Kapoor como de El Anatsui.”



8º – [Maria & DarkSunn] Crooked N’ Grinded (Monster Jinx)

“Maria é um dos mais poéticos beatmakers da nossa praça, um tipo que ouviu Shadow e FlyLo, como tantos da sua geração, mas que parece ter arranjado espaço na sua biblioteca íntima de referências para aquela melancolia que é tão tuga como o fado (escute-se, por exemplo, ‘No Complys and Power Slides’). Com um perfeito domínio das mais hipnóticas cadências, Maria, que também sabe equipar sempre as suas composições de sólidas fundações rítmicas, é sobretudo um imaginativo melodista, capaz de com enorme naturalidade conceder uma dimensão cinemática às suas peças que soam frequentemente a bandas sonoras para filmes que Michael Mann ainda não teve tempo de fazer.

DarkSunn é farinha de outro saco. Claro que partilha com Maria (e, já agora, com outros ‘primos’ da família Roxa) os mesmos códigos arcanos do hip hop sub-100 BPMs, a mesma paixão por texturas fumarentas, mas talvez ele se distinga do seu companheiro nesta aventura Crooked N’ Grinded por um mais generoso recurso a samples, soando por isso mesmo a sua música mais devedora de uma linhagem clássica do que a de Maria. Onde um é mais Shadow o outro poderá soar mais Dilla, onde um é mais FlyLo, o outro poderá tender mais para o lado de um Daedelus, por exemplo. E ambos oram igualmente com devota regularidade na igreja de Madlib, pois claro.”



9º – [PEDRO] Da Linha (Enchufada)

“Muita da sua música vive de uma paradoxal economia: escutada com volume generoso num bom som sistema, esta música soa maximal, expansiva, cheia de detalhes, mas se deixarmos que ela nos preencha os ouvidos por via de auscultadores percebe-se que, afinal de contas, é estruturada com um número limitado de elementos, o que diz muito da capacidade técnica de sound design que PEDRO imprime em cada um dos seus temas, consciente que está que é no clube que se encontra o habitat natural destas suas criações laboratoriais.”



10º – [Vítor Joaquim] Nothingness (ed. de autor)

“É essa vertigem, esse vazio – porque na queda interminável não conseguimos segurar-nos a nada que não sejam esses pequenos e breves flashes – que Vitor Joaquim aqui representa, com uma música altamente evocativa, impressionista e decididamente estimulante para a imaginação. Como um reconfortante bálsamo aural que nos devolve a um estado de equilíbrio.”



11º – [Ghost Hunt] II (Lovers & Lollypops)

“O tema resolve-se como uma espécie de manifesto estético que apresenta os territórios em que os Ghost Hunt se movem: aura de banda sonora, economia de meios, texturas resolutamente electrónicas, melodias e ritmos maquinais, densidade textural, e um perfil aural decididamente vintage – nada por aqui soa ‘digital’ ou ‘moderno’, não apenas no plano tímbrico, mas também no estilo de arranjos que não acomodam estratégias de empolgamento de pistas tão comuns na EDM, por exemplo. Minimalismo é a palavra que os Ghost Hunt têm estampada na parede do estúdio. Em néon, certamente.”



12º – [Acid Acid] JODOROWSKY (ed. de autor)

“Mas, lá está, talvez isso seja a música a completar estes circuitos de comunicação e empatia: nasceu de imagens cinemáticas muito concretas e da inspiração gerada pelo visionamento dessas obras e impôs-se, ela mesma, como capaz de gerar outros ‘filmes’, mesmo na mente de quem porventura possa nem sequer conhecer o trabalho de Jodorowsky.”



13º – [Tozé Ferreira] Viagem de Inverno (Wasser Bassin)

“As suas delicadas paisagens de timbres sépia arredam-se de uma noção de progressão temporal e surgem como mantos aurais que simplesmente se estendem sobre a nossa percepção, ricos de detalhes preciosos, de pinceladas fugazes de electrónica computorizada e subtis sombreados sintetizados, de ecos subliminares de piano e de texturas que resvalam entre planos mais agrestes, como a introdução do derradeiro tema do alinhamento, ‘Electronix’, que soa como o registo de um radar que capta sinais radiofónicos vindos dos confins da galáxia, e outros mais suaves feitos da reverberação harmónica do cristal como a que se apresenta em ‘Fagood‘, a peça que nos atira para dentro desta Viagem de Inverno.”



14º – [Serpente] Fé/Vazio (Ecstatic)

“E se Parada era uma carta de amor carimbada para Minneapolis e escrita no teclado de uma LinnDrum, este novíssimo registo complica um pouco mais as coisas ao cruzar coordenadas: o título remete para um clássico do hardcore que a Dischord lançou no arranque dos anos 80, o pulso determinado evoca a Detroit futurista de finais dos anos 80, as caóticas polirritmias parecem trazer algo do libertário abandono do free jazz, mas, na precisa escolha de alguns dos sons – tanto das percussões como dos sintetizadores – pode adivinhar-se o estudo atento dos mundos possíveis que Jon Hassell projectou a partir da sua prodigiosa imaginação.”



15º – [Colónia Calúnia] Flor de Paiva (Colónia Calúnia)

“Os beats de Recondido parecem tão distantes do hip hop (embora a esse género permaneçam obliquamente ligados) quanto Neptuno do Sol: essa distância permite-lhe tratar de outra forma a força gravitacional que o género impõe a quem o circula em órbitas mais próximas. Assim, embora se perceba que o sampling continua a informar a sua praxis, também se entende igualmente que a matéria que lhe alimenta o sampler é bem diferente (gongos budistas, drones, vozes que são ecos difusos, inóspitas frequências que hão-de resultar de manipulações profundas de sons eventualmente mais familiares na sua forma original, pianos distorcidos como se o seu som pudesse ser reflectido por aqueles espelhos côncavos das feiras…).”



16º – [Bonfim] An extended-play record of assembled sounds for different kinds of moods (ed. de autor)

“House clássico, inteiramente focado na pista de dança, com uma subtil nuance electro nalguns dos sons percussivos escolhidos, facto que sublinha a ligação que ambos os cérebros de Bonfim reclamam com o hip hop, com arremedos jazzy nos deliciosos solos de Sérgio Alves e um compreensível alinhamento estético e espiritual com as obras de gente como Moodymann, Idjut Boys, Theo Parrish ou DJ Harvey. Tudo com irrepreensível bom gosto, contida gestão de meios nos arranjos espartanos, e máxima eficácia no seu propósito mais fundo: o de, através de sons montados com a precisão que só um DJ com décadas de experiência consegue desenvolver, nos fazer dançar nas pistas da nossa imaginação qualquer que seja a disposição que nos possa iluminar ou ensombrar a alma.”



17º – [André Gonçalves] Instrumentals (Shhpuma)

“Mas Instrumentals é muito mais do que um disco de artifícios, de prestidigitação digital, é sobretudo um álbum em que André Gonçalves reafirma uma veia composicional séria, bebendo em diferentes fontes (da clássica mais romântica à mais contemporânea, do jazz à música ambiental) para depois nos saciar a todos com uma generosa e expansiva visão musical, tão capaz de gerar místico encantamento (como no ‘Instrumental # 2’), como de nos revelar imaginários e exóticos mundos feitos de mistério e figuras diáfanas (‘Instrumental # 4’).”



18º – [Paulo Vicente] West (ed. de autor)

“A música que este compositor, músico e produtor aqui reúne surpreende em primeiro lugar pela sua elegância extrema: espécie de ambientalismo com ecos da exótica pensada por Jon Hassell e que hoje parece servir de forte inspiração a um cada vez mais alargado conjunto de artistas, West insere-se numa já considerável linhagem de electrónica de produção nacional em que poderemos encontrar pioneiros registos dos Telectu, de Nuno Canavarro, Carlos Maria Trindade, Tozé Ferreira ou, para citar um exemplo bem mais recente, Molero. Eventualmente, haverá uma certa aura de melancolia transversal aos trabalhos de todos esses artistas que talvez concorra para que se pense que possam integrar uma mesma história.”



19º – [Kyron] Starlit Remembrance (Miracle Pond)

“E a música de Starlit Remembrance, com o seu carácter lo-fi, apoiada em programações rítmicas algo musculadas, mas sobrevoada por um ambientalismo descaradamente ‘cinemático’, com interessantes gestos de gestão de tensão dramática e com algumas ideias de sound design manifestadas na mistura “espacializada” que já denotava uma certa ambição narrativa (confirmada pelos títulos carregados de referências aos ‘elementos’: ‘Sun’, ‘Asteroid’, ‘Fire’, ‘Water’, ‘Comet’…).”



20º – [funcionário] Shichishito (turva)

“O cenário conceptual ajuda, portanto, a enquadrar uma música decididamente interior, feita de uma subtileza profunda, que se manifesta em delicados gestos melódicos e em cuidadosamente dispostas texturas, algures entre uma electrónica ambiental e sons acústicos de pureza absoluta, feitos de cordas que vibram, de pedaços de bambu que ressoam. Não há tumultos ou sobressaltos neste mergulho nos abismos interiores, antes uma inefável sensação de absoluta harmonia, permitindo a música que possamos flutuar num plácido lago de águas límpidas, em paz.”

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