pub

Ilustração: Riça
Publicado a: 05/12/2020

Techno, house, hauntology e outras ondas.

Oficina Radiofónica #46: Blacksea Não Maya / A.k.Adrix / Tia Maria Produções

Ilustração: Riça
Publicado a: 05/12/2020

Oficina Radiofónica é a coluna de crítica de música electrónica do Rimas e Batidas. Música Electrónica? Sim. Techno e footwork, house e hauntology, cenas experimentais, ambientais, electro clássico e moderno, drum n’ bass e dubstep, dub e o que mais possa ser feito com sintetizadores e caixas de ritmos, computadores e osciladores e samplers e sequenciadores e outras máquinas que façam “bleep”, “zoing”, “boom” e “tshack”.



[Blacksea Não Maya] Máquina de Vénus / Príncipe

Umas palavras sobre a Príncipe, antes de mais: a dezena de títulos lançados em 2020 – o ano mais prolífico da história do selo lisboeta que assinalará o seu 10º aniversário em Novembro próximo!! – provam que a pandemia não gerou apenas tempos suspensos e calendários vazios. Coragem e nervo foram sempre características dominantes desta operação e o ano que as cabeças da Príncipe estenderam entre Pedra de 800 Kg de PML Beatz e Lei da Tia Maria de Tia Maria Produções é não apenas absolutamente singular no ecossistema editorial em que esta editora funciona, mas, sobretudo, prova da vibrante criatividade que apesar de tudo o resto obrigou 2020 a comprometer-se com o futuro.

Nesta recta final do ano, Máquina de Vénus, trabalho de Blacksea Não Maya datado de Setembro último, reúne seis produções de DJ Kolt, uma do seu irmão DJ Noronha e outra ainda a cargo de DJ Nervoso, constituindo-se como uma bem-vinda expansão da ainda curta discografia do trio (que já contava dois EPs no catálogo da Príncipe, lançados em 2013 e 2015, um deles repartido com os Piquenos DJs do Guetto).

Parece claro que os Blacksea Não Maya procuraram traduzir o tom sombrio destes tempos neste álbum. É certo que se desconhece a data das produções e essa tentativa de fazer equivaler alguma falta de luminosidade da música ao tom que dominou estes últimos meses pode resultar da selecção de material de arquivo e não de uma qualquer angústia que os possa ter guiado em sessões recentes de estúdio. Ainda assim há uma relação directa entre esta idade da pandemia e a música que aqui se apresenta: no arranque, DJ Kolt deixa claro que está pronto para produzir bandas sonoras para thrillers distópicos que nos tragam histórias de vírus invasores. “Terror” é um exercício de tensão que parece projectar as ideias de John Carpenter no futuro, um pulsar de baixo ameaçador e ecos de percussão metálica e de algo mais que entra na mix vindo de um qualquer túnel distante; logo depois, “Obscuro” insiste em não autorizar a luz a entrar, mantendo as BPMs sob controle e os tons menores no primeiro plano, com figuras sintetizadas a deixarem os pelos dos braços eriçados e uma curiosa figura rítmica a relembrar-nos a todos que ainda é de uma pista de dança de que aqui se “fala”, embora uma que possa estar montada num bunker enquanto o apocalipse se desenrola lá fora.

Kolt prova que é um imaginativo desenhador de cadências em todas as suas faixas que nunca se resolvem com uma única fórmula e que tanto ao nível das peças percussivas escolhidas como dos padrões em que são dispostas procuram constantemente terreno novo. “7even” é disso um óptimo exemplo, como de resto “Africanalidade”, o mais claro som de rave aqui proposto. Económico nas diferentes camadas que dispõe nos seus beats, DJ Kolt é no entanto ultra-cuidadoso nos seus arranjos, na gestão dos equilíbrios entre momentos de tensão e de libertação, e sobretudo um prodigioso percussionista que sabe perfeitamente quais os tambores que África tem que transportar para o futuro.

Neste “quadro”, tanto “Horizonte”, o tema com que DJ Perigoso abre o lado B, como “Estranhos e Loucos”, a contribuição para este trabalho de DJ Noronha, são pertinentes desvios: o primeiro é um pedaço de cinemática emotividade que bem poderia suportar a cena do filme em que o protagonista, no topo de um edifício alto e de olhos postos na cidade que tem diante de si, percebe que tem uma importante decisão para tomar; já “Estranhos e Loucos”, com o seu sample vocal soluçantemente disposto em cima de matéria de pista, deixa claro, como aliás sugerido no texto de apresentação desta Máquina de Vénus, que o que inicialmente nasceu no Bairro da Jamaica não é assim tão distante do que vai sendo cozinhado nas torres de habitação social que se erguem nos bairros periféricos de Londres. No final, e como confirmado por palavras dos próprios Blacksea Não Maya, entende-se que apesar da tensão, da falta de luz, das frequências mais ameaçadoras, ainda é de amor que todos precisamos. E no futuro, se necessário for, teremos que inventar uma máquina que o produza. Uma máquina de Vénus.



[A.k. Adrix] Código de Barras / Príncipe

Em 2018, Adrix deu-nos Álbum Desconhecido, um exercício de propulsiva melancolia desenhada a pinceladas digitais a partir de Manchester, no Reino Unido. A base de trabalho continua a mesma, mas dir-se-ia que o tom geral da música que o agora designado A.k. Adrix nos oferece aponta para outro tipo de emoção, certamente mais vibrante, talvez menos contemplativa.

Com temas sempre curtos, o que geralmente traduz urgência, mas que aqui parece apenas ser o resultado de uma assertividade própria de quem sabe exactamente o que quer comunicar em cada momento, Adrix afirma-se como um produtor com vastos recursos ao nível da imaginação, alguém que combina o plano rítmico com um expressivo lado melódico. O texto de apresentação deste Código de Barras defende que as faixas são de facto canções (e não apenas “beat tracks”), o que faz pleno sentido na forma como se estruturam as “vozes” melódicas aqui montadas em cima de padrões nervosos, intrincados e decididamente polirrítmicos. “Espuma Nocturna” é disso, aliás, excelente exemplo, na sua sofisticada combinação de diferentes padrões numa intrincada filigrana percussiva capaz de induzir um hipnótico abandono.

Como num álbum de “canções”, o arco que Adrix aqui desenha é amplo e percorre, a diferentes velocidades, múltiplas paisagens emocionais, com o cuidado de pegar nos códigos rítmicos que levou consigo do lado mais efervescente de Lisboa para os cruzar com os diversos impulsos que a sua vivência britânica lhe permitiu captar.

Mas são os 2 minutos e 28 segundos de “Desenhos Animados” que aqui mais surpreendem: estando baseado em Manchester, não é difícil imaginar Adrix a encontrar numa loja de discos algum dos mais esotéricos lançamentos da Finders Keepers de Andy Votel que tanta matéria do lado mais esotérico da vanguarda electrónica tem espalhado pelo seu incrível catálogo (The Moomins, por exemplo?) e a transformar esse exótico mundo aural de “bleeps” e “bloops” numa fabulosa possibilidade de futuro, expondo numa simples base de esquelético kuduro o esquema de um novo mundo musical. Tão intrigante como absolutamente irresistível.



[Tia Maria Produções] Lei da Tia Maria / Príncipe

Tá Tipo Já Não Vamos Morrer já datava de 2014, pelo que o regresso do colectivo com um novo lançamento para colocar um ponto final editorial no 2020 da Príncipe é uma excitante notícia. DJ Danifox, DJ B.Boy, DJ Lycox e Puto Márcio trazem aqui seis novas bombas de combustão de variadas intensidades, prontas para rebentar a pista e impor a festa. Afinal de contas o fim de ano está próximo…

A primeira pérola é carimbada por Danifox em “Xupetilson”, um kuduro servido por um emotivo vocal em que se canta “Xupetilson está a querer me morder, Xupetilson você não é cão”, prova de que a pista de dança pode e deve ser espaço de reconciliação para a comunidade, mas também espaço para expor as crónicas das histórias que fazem o quotidiano do bairro. “Aguenta” é outra das peças carimbadas por Danifox, que arranca com uma exposição temática, espécie de gravação documental de campo, que depois desagua num kuduro líquido atravessado por um drone grave que lhe dá um tom algo sombrio. Há um terceiro momento em que Danifox tem responsabilidades, “Mete o Bass”, peça que resulta de uma colaboração com Lycox, e que é servida por um monstruoso baixo que torna impossível a imobilidade, com as frequências mais graves a serem recortadas pelos reflexos espasmódicos de um brilhante som metálico que espalha caos pelo arranjo. Impressionante!

DJ B.Boy, “o mais terrível do mercado”, vai directo ao centro da pista, abre uma roda e exibe os mais acrobáticos argumentos rítmicos que lançam a festa numa frenética direcção. Lycox pinta o retrato das “11H na Lisa” com uma fabulosa faixa de africana sensibilidade perfeita para cruzar avenidas iluminadas num carro cheio de amigos. No final, Puto Márcio propõe a mais poética e relaxada kizomba deste ano esquisito, um convite para uma dança arrebatada em jeito de encerramento de pista ou fecho de ano, uma banda sonora para uma confinada e ainda assim romântica história, toda ela exaltação de vibrante sensualidade. É a lei da Tia Maria a ditar como devemos gerir a festa. É que mesmo no meio da distopia é sempre possível perdermo-nos nos pontos de luz projectados no chão pela bola de espelhos.

pub

Últimos da categoria: Oficina Radiofónica

RBTV

Últimos artigos