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Ilustração: Riça
Publicado a: 08/11/2020

Techno, house, hauntology e outras ondas.

Oficina Radiofónica #44: Bonfim / André Gonçalves / DJ Ride / Nandele

Ilustração: Riça
Publicado a: 08/11/2020

Oficina Radiofónica é a coluna de crítica de música electrónica do Rimas e Batidas. Música Electrónica? Sim. Techno e footwork, house e hauntology, cenas experimentais, ambientais, electro clássico e moderno, drum n’ bass e dubstep, dub e o que mais possa ser feito com sintetizadores e caixas de ritmos, computadores e osciladores e samplers e sequenciadores e outras máquinas que façam “bleep”, “zoing”, “boom” e “tshack”.



[Bonfim] An extended-play record of assembled sounds for different kinds of moods / Ed. de autor

Tudo começa na “Apresentação”: um loop insistente do que soa a uma singular nota de cristal de Rhodes devidamente despida do ataque, a que se sobrepõem diferentes elementos percussivos –  pratos primeiro, bombo e clap logo após – e então, com calma zen, as camadas vão-se tornando nítidas, com o arranjo a deixar o protagonismo entregue à programação rítmica, antes dos pads da MPC começarem a espalhar poeira harmónica. O minimal baixo gordo é a cereja molhada em espesso licor que se coloca no topo deste guloso bolo para que ainda concorre um sample de voz. E mais nada. Em Bonfim, tudo é intenção, tudo é depurado bom gosto: uma simples nota surripiada via sampler a uma qualquer frase expansiva escutada num disco de jazz-funk contém dentro um universo de possibilidades, a sugestão de uma interminável colecção de discos cuja principal missão é a de nos fazer dançar. E nessa intenção, o respeito pela repetição é imperioso.

Bonfim é Pedro Tenreiro (amigo de 25 anos, cúmplice de aventuras editoriais, guia espiritual e musical e tantas outras coisas, só para que fique claro…) e Hugo Passos, produtor ligado ao circuito hip hop do Porto que em tempos escutei a espalhar funk sincopado por baixo de rimas de Maze. Bonfim significa ainda o regresso à produção musical de Pedro Tenreiro, ele que integrou projectos como Mr. Spock (com Alex FX) ou Illmatic & Phaser (com Serial, o produtor dos Mind da Gap) e que, sob a designação Dancin’ Days, reimaginou estruturas para obscuros clássicos disco em re-edits que foram lançados em editoras como a Noid (pertença dos Idjut Boys) ou a Big Bear (selo operado por Steve Kotey). Pergaminhos sérios que aqui resultam numa soberba rodela de vinil com seis temas em que a dupla conta com participações pontuais de Kiko, vozes em “U Know U can (Dance)” e “Dilittante”, Sérgio Alves, teclados em “Alfa Romeo”, “Dilittante” e “Big Ben Boy (“Where Are U Peggy Gou?)”, tema em que ainda se escuta a TB303 comandada por PZ.

House clássico, inteiramente focado na pista de dança, com uma subtil nuance electro nalguns dos sons percussivos escolhidos, facto que sublinha a ligação que ambos os cérebros de Bonfim reclamam com o hip hop, com arremedos jazzy nos deliciosos solos de Sérgio Alves e um compreensível alinhamento estético e espiritual com as obras de gente como Moodymann, Idjut Boys, Theo Parrish ou DJ Harvey. Tudo com irrepreensível bom gosto, contida gestão de meios nos arranjos espartanos, e máxima eficácia no seu propósito mais fundo: o de, através de sons montados com a precisão que só um DJ com décadas de experiência consegue desenvolver, nos fazer dançar nas pistas da nossa imaginação qualquer que seja a disposição que nos possa iluminar ou ensombrar a alma.



[André Gonçalves] Instrumentals / Shhpuma

Este álbum com que André Gonçalves, o cérebro por trás da ADDAC System, sucede a Currents & Riptides (também editado na Shhpuma, em 2016), é fruto de uma ambiciosa e exploratória vontade criativa. Explica-se nas notas que acompanham o lançamento que Instrumentals reúne uma série de composições para “instrumentos musicais convencionais, acústicos”, mas que o que se escuta aqui é um laptop “a digerir uma série de plugins pessoais”. Pode-se, portanto, encarar este álbum em que Gonçalves apresenta um conjunto de nove peças para sopros, cordas, harpas, pianos, guitarras ou diferentes percussões, como uma projecção de possibilidades, o resultado traduzido em zeros e uns de uma notação digital de peças que poderão um dia destes ser escutadas em interpretações de formações de câmara convencionais, por exemplo.

Gonçalves é por isso mesmo não apenas creditado com a autoria das diferentes composições, peças em que determina os arranjos, as progressões melódicas, as intrincadas relações harmónicas entre os diferentes sons, os andamentos rítmicos, a duração, etc, mas também com a escolha dos diferentes sons a que aqui se atribui vida virtual através de “geradores de polirritmias” de criação própria. Mas Instrumentals é muito mais do que um disco de artifícios, de prestidigitação digital, é sobretudo um álbum em que André Gonçalves reafirma uma veia composicional séria, bebendo em diferentes fontes (da clássica mais romântica à mais contemporânea, do jazz à música ambiental) para depois nos saciar a todos com uma generosa e expansiva visão musical, tão capaz de gerar místico encantamento (como no “Instrumental # 2”), como de nos revelar imaginários e exóticos mundos feitos de mistério e figuras diáfanas (“Instrumental # 4”). Outros ouvidos serão, certamente, capazes de por aqui adivinharem diferentes “narrativas”, descortinarem distintas paisagens, mas isso é mais um indicador da riqueza musical que por aqui se espraia. E agora aguardemos que o Remix Ensemble e o Drumming GP traduzam estas ideias de André Gonçalves para o plano acústico. Eu cá pagaria para ver e ouvir.



[DJ Ride] Lightspeed / Dome of Doom

DJ Ride carrega nos ombros década e meia de ambiciosa e exploratória carreira, tendo percorrido um amplo território que se alarga até perder de vista, partindo do hip hop em direcção ao futuro, detendo-se nas diferentes declinações da bass music e da EDM mais abrasiva, nunca abandonando uma ética de ousada experimentação em tudo o que faz. Com um domínio absoluto das mais modernas ferramentas de produção, Ride soube sempre equilibrar a mão e o cérebro, o real e o virtual, incorporando nas suas composições tanto as mais recentes possibilidades oferecidas pelas ferramentas digitais como os inúmeros recursos do seu arsenal pessoal de instrumentos, dos Moogs aos Fenders, dos gira-discos às MPCs.

E em 2020, como este novíssimo Lightspeed que a Dome of Doom Records acaba de lançar comprova para lá de qualquer réstia de dúvida, o lugar de DJ Ride é no mesmo plano em que encontramos vanguardistas estetas como Machinedrum, Flying Lotus ou Dorian Concept, para mencionar apenas alguns nomes. Mas esse lugar de DJ Ride não resulta da colagem a uma qualquer tendência mais óbvia, antes de uma ultra-pessoal e generosamente inclusiva visão da música que lhe permite beber no hip hop, no drum n’ bass, no trap e nas mais experimentais e periféricas zonas da electrónica contemporânea para desenhar a sua própria música que carrega uma evidente marca autoral – um beat de DJ Ride é imediatamente reconhecível, porque as suas programações já possuem um ADN digital muito próprio, o seu bounce é decididamente personalizado como “CHAMPION” deixa tão claro. E tudo isto vive de um cuidado sound design, com o volume certo em bons auscultadores a impor um assalto constante aos nossos neurónios.

Esse tema, “CHAMPION”, é também o único em que DJ Ride surge sozinho (à excepção da “Intro”), com o restante material exposto em Lightspeed a resultar de diferentes colaborações com Stereossauro e Holly (“LIGHTSPEED”), Subp Yao (“Gotta Act”), L*O*J (“LUCK”), NOT YES (“i be buyin”), DEAD END (“BAD BITCH”), HØST (“MURDASOM”) e Aagentah (“Láktisma”), sinal de uma capacidade colaborativa permanentemente renovada e que traduz, certamente, uma contínua vontade de explorar diferentes sonoridades, de ser confrontado com outro tipo de ideias criativas sabendo que é dessa tensão que muitas vezes surge a novidade absoluta.

No final, à velocidade da luz, pois claro, DJ Ride dá-nos uma amostra do som das raves do futuro, aquelas que um dia certamente faremos a bordo de uma qualquer estação espacial posicionada na órbita de um novo mundo a que chegaremos um dia. Talvez.



[Nandele] FF EP / Cotch International

FF, revela-nos Nandele em entrevista a publicar em breve, significa Final Fantasy, apropriada referência ao popular videojogo já que, como clarifica o produtor moçambicano, este trabalho explora a ideia de distopia. A partir de Maputo, Nandele Manguini tem construído um assinalável corpo de trabalho, desdobrando-se em múltiplas valências – ele é produtor, mas também DJ, baterista, rapper… –, facto que permite que se afirme como um dos mais respeitados agitadores da sua cena local. E essa energia tem-lhe valido justa atenção internacional traduzida em edições em selos como a Already Dead Tapes e, agora, Cotch International, bem como em convites para trabalhar noutros âmbitos: assinou a banda sonora do filme Resgate e será igualmente o autor da música para uma peça de teatro que deverá em breve estrear em Lisboa.

No nosso radar desde que lançou Argolas Deliciosas (trabalho em que reconhecia a influência de J Dilla e que deverá merecer sequela em breve), Nandele é um produtor que tem progressivamente erguido uma sonoridade própria, mais experiemtal e abstracta e decididamente mais cinemática e musicalmente ambiciosa: “FF”, por exemplo, soa como o tema-título de um filme de John Carpenter em cuja banda sonora o cineasta-músico pudesse ter colaborado com Shlomo. Apesar da paleta electrónica de “cores” sonoras usadas, a música de Nandele nunca descarta uma dimensão orgânica, natural quando pensamos que o produtor também é baterista, mas que se expressa não apenas nos samples escolhidos (incrível o coro africano de “Virose”, por exemplo), mas também na forma “solta” como todos os elementos se integram, como se asd diferentes partes tivessem sido tocadas ao vivo.

Há um lado político também na música de Nandele, claro no tipo de samples de voz que corajosamente utiliza (escute-se a entrada de “Impact 61+”…) e igualmente na forma como se sente na sua música um ímpeto de superação e uma recusa em sentir-se eventualmente limitado ou circunscrito pela sua própria realidade cultural: criar em Maputo significa, para Nandele, abraçar não apenas marcas de história e de costumes locais, mas também ter o privilégio de uma perspectiva que, no mais amplo plano da electrónica internacional, é profundamente singular. E reclamar singularidade num mundo presente em que todos parecem procurar caixinhas para se posicionarem confortavelmente é um acto tão político como outro qualquer.

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