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Ilustração: Riça
Publicado a: 01/11/2020

Techno, house, hauntology e outras ondas.

Oficina Radiofónica #43: SALEM / Mater Suspiria Vision

Ilustração: Riça
Publicado a: 01/11/2020

Oficina Radiofónica é a coluna de crítica de música electrónica do Rimas e Batidas. Música Electrónica? Sim. Techno e footwork, house e hauntology, cenas experimentais, ambientais, electro clássico e moderno, drum n’ bass e dubstep, dub e o que mais possa ser feito com sintetizadores e caixas de ritmos, computadores e osciladores e samplers e sequenciadores e outras máquinas que façam “bleep”, “zoing”, “boom” e “tshack”.



[SALEM] Fires in Heaven / Ed. de autor

Uma das minhas formas favoritas de conferir que nova música vai sendo editada é através da consulta da lista de New Releases do Discogs que, já agora, é sempre a primeira página aberta no meu browser. E foi aí que percebi que Fires in Heaven, o segundo álbum dos SALEM, editado meros 10 anos após a sua auspiciosa estreia com King Night, foi lançado na passada sexta feira, dia 30 de Outubro, de forma discreta, sem o amparo de qualquer editora, através do Bandcamp. Uma rápida busca de mais informação levou-me a um artigo do New York Times publicado no mesmo dia. Meaghan Garvey falou com John Holland e Jack Donoghue (os SALEM são agora um duo) e conta-nos uma extraordinária história de desencanto de um projecto que em 2010 chamou as atenções do mundo: “a banda fez a banda sonora para desfiles de moda em Paris e debitou remisturas para Charli XCX e Britney Spears. Em 2013”, prossegue Garvey, “Donoghue contribuiu para a produção de Yeezus de Kanye West, um álbum com uma rugosidade industrial que se poderia dizer inspirada por Salem”. No mesmo artigo, Donoghue faz questão de frisar que ainda não foi pago por esse trabalho: “So, yeah.”

Fuga das pressões da fama, auto-exílio numa pequena vila piscatória onde ainda assim Donoghue se conseguiu envolver em complicações (e os problemas parecem continuar a perseguir o duo – Holland, revela o artigo do NY Times, está neste momento a cumprir uma pena de prisão de 30 dias por “acusações que ele prefere não discutir”) e, finalmente, a chegada a Los Angeles onde o duo se voltou a reencontrar e, com a ajuda do produtor Shlomo, conseguiu terminar o trabalho que foi sendo intermitentemente criado ao longo da última década, são algumas das peripécias relatadas e que ajudam a entender este Fires in Heaven. A arte, afinal de contas, é aquilo que acontece quando a vida permite.

A verdade é que Fires in Heaven soa como se tivesse sido lançado pouco tempo depois de King Night e essa é a melhor notícia que qualquer fã de SALEM poderia esperar agora: aí se encontra a mesma densidade, o mesmo carácter lo-fi, os raps de câmara lenta de Jack Donoghue que parecem envoltos em alcatrão líquido, o mesmo tom funerário, a mesma ausência de luz. Tudo com carimbo sónico de Mike Dean, o produtor que tem sido braço direito de Kanye West e que assina a masterização deste trabalho.

O álbum arranca com uma descarada apropriação de uma peça de Prokofiev para o bailado Romeu & Julieta, “Dance of The Knights” (também usado na série de TV Gotham), conferindo logo aos primeiros momentos de Fires in Heaven um solene tom gótico, com o peso das cordas a adornar o flow assombrado de Donoghue que parece ter estudado com dedicação obsessiva todos os mestres passados da cena rap de Atlanta, especialmente Gucci Mane. E depois vem o mergulho no abismo, com o tema que dá título ao álbum a impor a crueza das sombras, com uma lenta derrapagem em synths virtuais comandada por pratos nervosos, com a percussão a parecer resolvida com um qualquer processador de efeitos que possa ter um “preset” chamado “Chaos”. O som do trap cruzado com o das bandas sonoras de filmes de terror, o shoegaze escola My Bloody Valentine processado através de uma abordagem distorcida ao lado mais experimental da beat scene de LA, as bandas sonoras de Angelo Badalamenti ainda mais chopped & screwed. E ouvindo-se “Starfall” entende-se, afinal, que a pop desta última década embalou muitas angústias com a escuta atenta e concentrada de King Night (sim, Billie, estou a falar contigo…). É de flocos de açúcar que se faz essa balada, mas estão todos envoltos em ácido, pois claro. E a fórmula volta a servir “Wings”, mais um pedaço de pop assombrada que parece tão apropriada para este estranho presente. Por outro lado, “Red River” é trap para se escutar na mais remota parcela da Twilight Zone, com o lamento “red river wash over me” a arrepiar até mesmo quem possa não acreditar em fantasmas. E “Old Gods” é grunge digital para futuros distópicos, o som mais visceral do rock criado por quem em vez de uma guitarra tem apenas um velho laptop a tiracolo. É desse denso caldo de trap sulista, bandas sonoras góticas, música clássica solene, electrónica lo-fi e metal emo que se faz o som dos homens de King Night em 2020. Tudo certo no universo, portanto.

Os SALEM a aparecerem nesta potencialmente apocalíptica recta final de 2020, a dias da decisão sobre o futuro da América e do mundo, é de uma incrivelmente poética sintonia com o tom dos tempos. Esta é a música de que não sabíamos estar à espera. Não há grande luz lá fora e é por isso que se fazem fogueiras no céu.



[Mater Suspiria Vision] Crack Witch 3 / Phantasma Disques

Pode dizer-se que nesta última década o misterioso projecto que se apresenta como um colectivo de artistas de vários pontos do mundo organizado em torno do cineasta Cosmotropia De Xam, os Mater Suspiria Vision, carregaram orgulhosamente sós (ou quase…) a supostamente já esquecida bandeira do witch house. E claro que pode e deve ler-se algum simbolismo no facto de, exactamente dez anos após a estreia com Crack Witch, a dupla acrescentar à sua incrivelmente dilatada discografia (o Discogs lista 44 álbuns!!!) uma actualização desse título inaugural com o novíssimo Crack Witch 3.

De Xam continua a explorar o som das sombras digitais, socorrendo-se de densos drones que parecem criados a partir da condensação do ruído das grandes cidades, batidas lentas e mais sujas do que um armazém de resíduos tóxicos, vozes sussurradas e imperceptíveis envoltas em fantasmagórico reverb e sintetizadores que parecem subtraídos a raves frequentadas por zombies (espero não estar a exagerar…). Ao seu lado, nesta nova versão de Crack Witch, está Æchidna Morgan Kamen, artista que já tinha colaborado com Cosmotropia De Xam no filme Ashes of Bethelem.

Os títulos já revelam quase tudo: “Dystopia in Utopia”, “Caterpillar”, “Uncontrollable Flesh”, “Ectoplasma” (em que se escuta um sample de voz, provavelmente subtraído a algum filme, em que alguém diz “que é isso aí?…), “Lullaby For Angels” e “How Angels Kill in Ecstasy” são carregados de simbolismo gótico mais ou menos óbvio. E depois há “The Desire of Catherine Ballard”, tema que referencia uma das personagens de J.G. Ballard em Crash, a distópica novela de culto que David Cronemberg transformou num fantástico filme (em que a actriz Deborah Unger vestia a pele de Catherine Ballard), e que ajuda a tornar mais perceptível o universo de referências que os Mater Suspiria Vision adoram percorrer. Essas doentias marcas de civilização e a arte mais extrema que explora o lado negro da condição humana são coordenadas para a música que esta dupla produz, resgatando ecos de minimal wave e da música industrial dos anos 80 e misturando tudo isso com subtis vénias às bandas sonoras de John Carpenter (sobretudo as mais económicas, como a de Assalto à 13ª Esquadra).

Pode não ser música para todo o ano. Pode até ser a última coisa nas nossas cabeças se o sol brilhar com alguma intensidade lá fora. Mas em dia de finados, em época de Halloween em que nos volta a apetecer ver um certo tipo de cinema, num tempo que até já parece distópico de tão absurda que é a realidade, Crack Witch 3 faz pleno e absoluto sentido. E isso é que é realmente assustador.

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