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Ilustração: Riça
Publicado a: 18/10/2020

Techno, house, hauntology e outras ondas.

Oficina Radiofónica #41: Lagoss / Etrusca 3D / Only Now x Orogen / Gritty, Odd & Good

Ilustração: Riça
Publicado a: 18/10/2020

Oficina Radiofónica é a coluna de crítica de música electrónica do Rimas e Batidas. Música Electrónica? Sim. Techno e footwork, house e hauntology, cenas experimentais, ambientais, electro clássico e moderno, drum n’ bass e dubstep, dub e o que mais possa ser feito com sintetizadores e caixas de ritmos, computadores e osciladores e samplers e sequenciadores e outras máquinas que façam “bleep”, “zoing”, “boom” e “tshack”.



[Lagoss] Imaginary Island Music / Discrepant

Imaginary Island Music soa como um tomo perdido da Ocora, um registo que talvez pudesse ter sido editado entre Sénégal – La Musique des Griotse Bruits et Ambiances d’Afrique Nº 1caso já existissem ferramentas de edição digital em 1965. Mas essa é, precisamente, uma das maravilhas da exótica: não se trata apenas de criar fantasias em termos geográficos, como a ilha imaginária que aqui se ilustra, mas igualmente de um ponto de vista temporal – afinal de contas, quando foi esta música criada? No passado ou no futuro?

“El Chupadero” é a breve vinheta de apenas 11 segundos que nos suga para dentro deste imaginário universo aural de Lagoss, projecto em que o homem do leme da Discrepant, Gonçalo F. Cardoso, se cruza com os dois membros dos Tupperwear, Mladen Kurajica and Dani Tupper, “Tenerife electronic stalwarts”, como são descritos nas notas de lançamento.

O propósito orientador deste projecto é, como também referido nas notas, o “mergulho em várias mitologias insulares fantasmagóricas”, impulso que leva o trio a “recorrer ao manual de ideias da exótica”, resultando isso em cerca de três dúzias de miniaturas que se podem apresentar de forma radicalmente concentrada (duas das peças quedam-se pelos 10 segundos de duração) e que só num único momento (“La Charneca”) ultrapassa os dois minutos. Já agora, há por aqui um subtil e oblíquo sentido de humor aplicado nos títulos que, na maior parte, usam palavras começadas por “ch” (“Chayofa”, “Los Chiles”, “La Chipina”, “Chipude”, “Chira”…) ou recorrem a essa mesma combinação de consoantes na construção de outras palavras (“Taguluche”, “Benchigua”, “Debuchi”) que parecem tão reais quanto a “ilha” onde esta música poderia ter sido recolhida.

Musicalmente, todo este denso enquadramento conceptual resulta numa música obtusa, feita de pulsares orgânicos, de tendência percussiva, enredados em ecos e distorções, de carregado grão lo-fi, uma música concreta que oscila entre o abrasivo e o etéreo, líquida a espaços e gasosa noutros momentos, numa hipnótica colagem de pequenos excertos que os nossos ouvidos parecem por vezes reconhecer: passagens que evocam um certo pendor ambiental, outras que podiam ter sido recolhidas no âmbito de um set de um DJ numa rave tropical, e outras ainda que parecem gravações de campo efectuadas em mercados de rua onde se encontra fruta, peixe ou especiarias sem existência fora das margens da mais vívida imaginação. “La Charneca”, o tal tema mais dilatado do alinhamento de Imaginary Island Music, começa com o som de uma caixinha de música que parece distorcida pela manipulação da velocidade de um leitor de fita analógica a que depois se impõe um sequenciador que gere o crescendo de uma rítmica frase de graves de um sintetizador vintage em cima do qual se dispõem farrapos percussivos que depois envolvem uma espécie de blues esboçado nas parcas notas de uma guitarra eléctrica. A mesma estratégia dissonante e de efeito psicadélico é aplicada ao familiar piano de “Debuchi” (e lá está o sentido de humor a truncar o classicismo de Debussy) que aqui rompe, altamente processado, no meio de uma tempestade de granizo electrónico.

A ilha imaginária que merece artwork de Evan Crankshaw (reminiscente de Henri Rousseau) tem, enfim, música de apelo imersivo que aqui mereceu o toque de mestre de Rashad Becker na masterização. “Esqueçam Martin Denny”, avisa-se, sublinhando-se assim o quão distante se está aqui da exótica de nativas em saias de palha que vivem à sombra de vulcões em ilhas de mares quentes, “não há aqui grooves de xilofone para se escutarem em cadeirões”. Não há, de facto.



[Etrusca 3D] Etrusca 3D / Pacific City Discs – Discrepant

Francesco Cavaliere e Spencer Clark são os Etrusca 3D, projecto que aqui se estreia com trabalho homónimo que resulta de parceria entre a Pacific Sound Visions do próprio Clark (que foi membro dos Skaters ao lado de James Ferraro) e a Discrepant.

Etrusca 3D, como aliás a própria designação sugere, procura eliminar as barreiras entre o passado e o futuro, entre a memória e a acção. É o próprio Francesco, que é igualmente um artista visual, que explica nas notas de apresentação que é etrusco (referindo-se à civilização pré-romana que ocupou boa parte do território que é hoje Itália) e que Spencer, por outro lado, é “3D”, percebendo-se aqui que essa sigla traduz uma ideia de futuro. Há, portanto, aqui uma barreira: este disco, em que aliás se escuta a voz de Cavaliere a pronunciar os nomes de diversas divindades etruscas, matéria essa que é pois trabalhada e manipulada, parece obliterar os dois mil e seiscentos anos de cultura romano-cristã mergulhando num passado civilizacional remoto, por um lado, e num futuro utópico, por outro.

“Não se pode subestimar”, escreve-se, “o resultado de proferir o nome de certos deuses em voz alta. Algo tão sinuoso e calmo entra neste disco para que se possa ouvir. E se a civilização etrusca em vez de se ter transformado ou amalgamado na romana tivesse antes sido passada para outros mundos? Seriam os túmulos, os ídolos em espirais e as suas decorações fúnebres um método meticuloso de transmutação noutra coisa qualquer?”

É uma proposta conceptual profunda a que aqui se explora, colando a misteriosa e ultra-expressiva voz de Francesco Cavaliere à arte de Spencer Clark que, de acordo com as notas, usa uma “máquina Emax 2 3D” para manipular as gravações dos nomes das divindades de uma forma algo old-school que, aliás, evoca o pioneirismo sampladélico dos Art of Noise. Mas a isso adiciona-se ainda os “vaporwavismos” do ex-Skaters, uma espécie de electrónica evocativa de uma era de muzak corporativo, arrancada a sintetizadores digitais dos anos 80 e 90, sem qualquer sinal de sinuosidade analógica, optando antes pelas frequências mais angulares e matematicamente rigorosas do universo pós-DX7.



[Only Now + Orogen] Avuls / Sucata Tapes – Discrepant

Esta é já a segunda colaboração entre Kush Arora (Only Now) e Lucas Patzek (Orogen), ambos activos na mais subterrânea e experimental cena electrónica da Bay Area de São Francisco, depois de uma primeira e homónima cassete lançada em 2018, igualmente com selo Sucata.

Trata-se de um registo algo breve, com seis peças que totalizam cerca de 32 minutos (e que no final são fundidas numa “megamix” que propõe uma audição continua das seis partes de Avuls), mas que são suficientes para, através de uma escuta atenta, induzir um estado de queda num abismo profundo, tamanho o peso das ressonâncias graves que nos submergem. Os autores referem que se parece evocar aqui “uma transmissão elementar de uma zona extra-terrestre não cartografa” explicando, mais adiante nas notas de lançamento, que a dupla canaliza “dub, noise e electrónica musiculada, evocando uma inflexão distorcida e ritualística do Voyager Golden Record”, referindo-se, claro, ao famoso disco com saudações em várias línguas e amostras de diversas culturas musicais do mundo que foi colocado a bordo da senda Voyager como possível mensagem para alguma cultura alienígena que um dia se possa com ela cruzar.

Este ambientalismo abissal faz-se assim de uma cuidada gestão de frequências ultra-graves, com pontuais elementos corais que quase remetem para o crepuscular e monástico canto gregoriano, socorrendo-se também de algum do peso do metal mais extremo. É um disco desprovido de qualquer réstia de luz, a banda sonora perfeita para uma rave na alegórica caverna de Platão, todo erguido a partir de ecos retorcidos e ritmos de insistência tribal e ritualística, capazes, por si só, de induzir estados alterados.



[Vários Artistas] Gritty, Odd & Good – Weird Pseudo-Music From Unlikely Places / Discrepant

O veterano Francisco López, verdadeiro pilar da mais aventureira cena musical electrónica, é o responsável por compilar esta antologia de “Estranha Pseudo-Música de Lugares Inesperados”. Gritty, Odd & Good alinha material identificado como sendo proveniente de São Marino, Guiana Francesa, Filipinas, Lesoto, Omã, Ilhas Faroé, Tuvalu, Liechtenstein e Quirguistão. Lugares inesperados, de facto, de onde emerge um conjunto de estranhos exercícios musicais.

A espaços, a música de Gritty, Odd & Good soa a tecnologia sabotada, máquinas em colapso, computadores em derrapagem nas auto-estradas da informação (quão 90s é esta expressão?…), música que se faz de interferências, colagens inusitadas, o ruído da areia que se intromete na engrenagem. É essa a sensação que se obtém, por exemplo, quando se escuta o que parece ser um disco de vinil com a gravação de uma guitarra acústica recuperado de uma casa destruída por um tremor de terra que é a peça “One One Six Bee” de James Ocampo das Filipinas. A bossa nova cubisticamente desconstruída e loopada em “Sansobavo Mix” de Eteroa Apinelu de Tuvalu, por outro lado, traduz o que poderia ser o sinal emitido a partir de uma já deserta estação de rádio num mundo pós-apocalíptico, a música debitada por tecnologia estropiada pela bomba e já só presa por fios (de fibra óptica, claro…).

No texto que Francisco López assina, argumenta-se que “as forças da gentrificação neo-capitalista e da descentralização da telecomunicação / informação podem ter gerado uma paisagem substancialmente diferente de distribuição cultural geográfica”. “E por isso”, propõe, “lugares inesperados são também fontes de nova criação fisicamente isolada, mas culturalmente interligada”. E na realidade, os nove exercícios de extrema experimentação aqui alinhados poderiam naturalmente carregar a mesma assinatura, de um único autor, de qualquer parte do mundo onde ferramentas de criação e manipulação digital possam estar disponíveis, mas representam ao invés, uma série de olhares críticos sobre a civilização moderna, um conjunto de traduções de um eventual colapso tecno-cultural que possamos estar em vésperas de enfrentar. Nunca se sabe…

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