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Ilustração: Riça
Publicado a: 20/06/2020

Techno, house, hauntology e outras ondas.

Oficina Radiofónica #28: Molero / Pedro Augusto / Russian Library

Ilustração: Riça
Publicado a: 20/06/2020

A Oficina Radiofónica é a coluna de crítica de música electrónica do Rimas e Batidas. Música Electrónica? Sim. Techno e footwork, house e hauntology, cenas experimentais, ambientais, electro clássico e moderno, drum n’ bass e dubstep, dub e o que mais possa ser feito com sintetizadores e caixas de ritmos, computadores e osciladores e samplers e sequenciadores e outras máquinas que façam “bleep”, “zoing”, “boom” e “tshack”.



[Molero] Ficciones Del Trópico / Holuzam

Ficciones Del Tropico há muito que tinha reservado a entrada número 5 no catálogo da lisboeta Holuzam, mas a verdade é que só agora viu a luz do dia, sucedendo a Live at Boom dos Gala Drop na incrível sequência de construção de um dos mais entusiasmantes acervos exploratórios de recente memória em território nacional.

Disponível numa belíssima peça de vinil com artwork criado por Paula Lavanderos (uma ilustração que se posiciona algures a meio caminho entre o exotismo de Gauguin ou Rousseau e o tipo de desenho científico com que os naturalistas do século XIX documentaram as suas descobertas), Fiiciones Del Tropico faz exactamente o que o título promete. O álbum é assinado por Alexander Molero, músico venezuelano que há alguns anos reside em Barcelona. E é a partir da Europa que projecta esta fantasia que procura traduzir as visões europeias de um ideal tropical documentado por românticos exploradores que no século XIX partiram em busca de “novos mundos” aventurando-se por esse rio Amazonas acima em busca do desconhecido.

“O derradeiro objectivo do verdadeiro exótico”, escrevia David Toop em Exotica (livro de 1999 a que tenho vindo a regressar, empurrado por discos como este Ficciones Del Tropico, com cada vez mais frequência no último par de anos), “é apagar a história, parar o tempo, manufacturar memórias; por força de vontade de fabricar uma identidade baseada em características culturais e étnicas que nunca existiram antes; tornar-se uma ilha fabulosa, erguendo-se do mar, antes de se voltar a afundar no abismo uma vez mais”.

De facto, a iá longa jornada da “exótica” – de Les Baxter e Martin Denny a Jon Hassell, Haruomi Hosono ou Roberto Musci e Giovanni Venosta – rendeu extraordinárias “visões” musicais de mundos carregados de fantasia que nos dizem muito mais acerca das origens dos seus criadores do que dos tais mundos que inspiraram as suas respectivas criações. Estes “quartos mundos” são fascinantes precisamente porque não existem e porque, como explicava Toop, apagam a história, param o tempo e erguem ilhas fabulosas apenas pela capacidade “terraformativa” do impulso criativo dos artistas.

Molero é mais um compositor a inscrever o seu nome nessa longa linhagem de exploradores exóticos de mundos que o ocidente desenhou quando o fascínio pelo desconhecido prevaleceu. Equipado com um Yamaha CS60, uma Roland Space Echo e um Moogerfooger Murf (e como não criar música exótica com instrumentos com estas designações?…), Molero pinta delicadas paisagens de exuberante densidade tímbrica, feitas de camadas e camadas de verde vegetação aural, com melodias que se entrelaçam com o mesmo vigor com que a flora preenche cada espaço nestes remotos e inexplorados pontos da selva amazónica. Os títulos evocam isso – “Jaguar Capybaras”, “Selvas de Ewaipanomas”, “Tierras Bajas Tropicales”… – e as oito peças apresentadas desenrolam-se como uma névoa que o calor tropical faz desprender-se do lânguido rio, tornando o desconhecido ainda mais misterioso, amplificando cada ruído que nos envolve num estimulante e até sensual manto que se tece de sons nunca antes escutados.

Esta estreia de Molero é tanto mais entusiasmante quanto carregada de promessas de outros mundos igualmente inexplorados, eventualmente tocados por uma dimensão enigmática, que ele queira desvendar e revelar em edições futuras. Das pirâmides aos oceanos abissais, do oriente a África e daí ao espaço há muitas outras coordenadas que podem fazer refém qualquer imaginação mais intrigada com o desconhecido. Que venham então outras ficções. Há quem acredite nelas.



[Pedro Augusto] Duas Vozes / Lovers & Lollypops

Lendo, nas notas que enquadram este lançamento da Lovers & Lollypops, que este Duas Vozes é o registo de estreia a solo de Pedro Augusto, uma pessoa poderá ser induzida em erro e pensar que se trata dos primeiros passos de um artista com um percurso ainda curto. E nada poderia estar mais longe da verdade. Como Ghuna X ou como parte de Live Low (projecto com que colaborou nos dois volumes de Antologia da Música Atípica Portuguesa da Discrepant, por exemplo), em colaborações com gente como Black Bombaim ou emprestando os seus dotes técnicos a variados registos (de Blac Koyote a Nooito), a verdade é que Pedro Augusto tem um vasto e variado currículo que o firma como dedicado explorador de zonas remotas da electrónica. (Re)encontrá-lo agora faz mais do que sentido.

As já mencionadas notas são reveladoras: “Com seis temas de música não-operativa, cujo único propósito é construir um programa que possa ser executado ao vivo sem programação, Duas Vozes tem um som dinâmico, muito frontal e vívido”. De facto. “Escrito a partir de duas sequências monofónicas de um sintetizador modular, marca o início de uma série de edições que irão evoluir do objecto inicial através da adição de novos instrumentos. Música visual que resulta fisicamente numa viagem em vídeo-álbum, em que a música de Pedro Augusto é depositada nas imagens criadas por Rafael Gonçalves”.

A intenção é, portanto, clara. Estamos em pleno domínio programático e conceptual a acompanhar o desenvolvimento de um projecto do compositor. E no primeiro capítulo desta aventura exploratória para que somos generosamente convidados deparamo-nos com um conjunto de pulsares graníticos, esculpidos por voltagem que circula entre circuitos, poderosas imagens tímbricas carregadas de vigor analógico que, talvez curiosamente, não imprimem, pelo menos não de forma imediata, quaisquer imagens no nosso cérebro para lá das que o próprio som possa sugerir, talvez transmutado em pontos de luz que correm céleres por cabos coloridos que unem diferentes módulos nessas máquinas mutantes e electrónicas que tanta música incrível têm dado ao mundo.

Perante a força destas Duas Vozes será difícil não acompanhar o resto do enredo cuidadosamente proposto por Pedro Augusto. E, portanto, aqui me declaro ouvinte expectante das “cenas” dos próximos capítulos.



[Listening Center & Pulselovers] Objects and Gaps / Russian Library

[Aural Design] Looking and Seeing / Russian Library

Se espreitarmos a página de Bandcamp em que se exibe a discografia completa (até agora…) da portuguesa Russian Library iremos descobrir as marcas de um tão fascinante quanto discreto projecto que em menos de um ano se impôs como a mais válida ponte de ligação entre a exploratória cena electrónica nacional e a hauntologia britânica.

Há pontos de contacto com a Ghost Box, pois claro: o rigor no design ou a vontade de pintar electronicamente os espaços e as narrativas que a memória protegeu num certo imaginário serão alguns. Mas a Russian Library está a percorrer o seu próprio caminho com recurso a talento nacional e internacional e, para já, apostando exclusivamente no formato de sete polegadas no que às suas belíssimas edições físicas diz respeito. E a primeira série de edições da Russian Library, que já se estende a sete títulos, foi designada com a letra H.

Os novos títulos pertencem, no split que é o número 6 desta série, a Listening Center e Pulselovers e, na entrada # 7, a Aural Design, que ressurge depois de ter repartido espaço com uma memória electrónica de um registo perdido dos Supernova, no H Series # 2.

Comecemos por “RA 14h 50m =s I info Dec +46º 0’ 0”” (conjunto de coordenadas que permitem que se encontre uma estrela ou qualquer outro corpo celeste se usarmos o Skyview da NASA, por exemplo), peça de Listening Center que começa como a fanfarra que associaríamos um orgão de foles, antes de entrar pelo típico território que o projecto de David K. Mason tem avidamente explorado ao longo da última década (o músico britânico que reside nos Estados Unidos já conta cinco álbuns em nome próprio e vários singles lançados com carimbos como Ghost Box ou Polytechnic Youth): melodias que evocam uma era distante, algures a meio caminho entre um certo pastoralismo que informava a música para documentários televisivos dos anos 70 e os Ktraftwerk, com óbvia inspiração adicional colhida na discografia dos Boards of Canada.

Já Pulselovers é o projecto de Mat Handley, nome bastante activo na cena hauntológica britânica através da sua editora Woodford Halse (e também com basto material cedido para lançamentos na A Year In The Country ou Castles in Space). No também obtusamente titulado “UY Scuti (BD- 12º 5055)” (outra referência a um “lugar” no vasto cosmos), Handley é mais declaradamente pop, assinando uma pequena e deliciosa fantasia de techno criada por aliens e não por robôs, pulsante (lá está…) nas suas delicadas melodias, apoiada em tranquila progressão rítmica e por isso mesmo bem mais apropriada para vaguear pelos confins do espaço do que para abanar o corpo numa pista de dança.

Finalmente há Aural Design, projecto de João Paulo Daniel (uma das cabeças pensantes da Russian Library, parte integrante de Folclore Impressionista e com um passado que recua a Supernova, Hipnótica e Beautify Junkyards) que aqui nos entrega um trabalho em sete andamentos que, como se explica nas notas de edição, “é acerca de atmosferas” e que se expõe como uma espécie de “meditação acerca da percepção do espaço e dos seus aspectos psicológicos” reconhecendo, e como é norma hauntológica, de resto, que “a memória também age como um mecanismo de criação e invenção”. De facto, construímos tudo aquilo de que julgamos recordar-nos e talvez em nenhum outro domínio isso seja tão verdade quanto no das memórias musicais. Aural Design é assim acerca de reimaginar aquele ponto de confluência entre o que a memória guardou das bandas sonoras dos documentários que uma certa geração viu avidamente na televisão serem apresentados por gente tão fascinante quanto Carl Sagan, Arthur C. Clarke ou Jacques-Yes Costeau e o que o contínuo escrutínio do presente sobre o passado electrónico nos foi revelando através das reedições carimbadas por editoras como a Finders Keepers ou Trunk.

A proposta musical de Aural Design, na forma como inteligentemente cruza electrónica e uma sensibilidade acústica folk, é tão sólida que começa a ser justo exigir que João Paulo Daniel estenda a sua visão até ao fôlego de um álbum. Será, certamente, mais do que bem-vindo.

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