A Oficina Radiofónica é a coluna de crítica de música electrónica do Rimas e Batidas. Música Electrónica? Sim. Techno e footwork, house e hauntology, cenas experimentais, ambientais, electro clássico e moderno, drum n’ bass e dubstep, dub e o que mais possa ser feito com sintetizadores e caixas de ritmos, computadores e osciladores e samplers e sequenciadores e outras máquinas que façam “bleep”, “zoing”, “boom” e “tshack”.
[Vítor Rua] Guitar Works / Synth Works 1984 / URUBU
Impressionante, o output de Vítor Rua desde o arranque deste ano tão singular: lançou a antologia Electronic Music 1995 – 2010 na Marte Instantânea, a leitura live de Belzebu no londrino Café Oto com uma das suas duas formações activas de Telectu e ainda contribuiu decisivamente para o projecto Give Guitars to People, trabalho de drones de guitarra eléctrica em que divide créditos com Jochen Arbeit dos Einsturzende Neubauten e que mereceu edição na ReR Megacorp. Agora aterra no mundo a extraordinária dupla cassete com marca URUBU de Guitar Works & Synth Works 1984.
Em entrevista que o ReB publicará em breve, Rua explica que o material aqui reunido integra uma vasta obra inédita que reflecte o período de intensa pesquisa e desenvolvimento de uma linguagem em que embarcou paralelamente à sua formação dos Telectu com Jorge Lima Barreto no arranque dos anos 80. Estas gravações caseiras são assim o resultado de uma inquieta busca íntima que o músico protagonizou, demanda que o tornaria, aliás, numa das mais importantes figuras da nossa música experimental, um estatuto que, sublinhe-se, justamente mantém até aos dias de hoje.
Este olhar sobre a sua mente criativa em 1984 é deveras interessante. No mesmo ano em que lançou Off Off com os Telectu, Vítor Rua já estava a projectar o seu olhar sobre o futuro, investigando caminhos guitarrísticos que viria depois a percorrer em Rosa Cruz, trabalho que só viria a ser lançado em 1987. Na primeira parte apresentam-se os trabalhos com guitarra: são oito peças altamente expressivas, estruturalmente minimais, que se impõem como estudos sobre possibilidades do instrumento, mas também como exercícios de abandono da bagagem discursiva a ele normalmente associada. Com a ajuda de efeitos, de pedais e de gravadores, inspirado por outros exploradores intrépidos como Robert Fripp (o guitarrista de King Crimson que desenvolveria uma técnica que baptizou com o termo Frippertronics e que consistia na utilização de gravadores de fita para expandir a “voz” do instrumento), Rua ensaiava aqui a construção de uma linguagem própria usando a guitarra sintetizada. Na já referida entrevista, o músico revela ainda que Manuel Gottsching, guitarrista de Ash Ra Tempel que no mesmo ano de 1984 editou o extraordinário e seminal E2-E4, era a sua outra grande referência, deixando claro, portanto, que era igualmente um ouvinte atento dos mais agudos desenvolvimentos na arte que ele mesmo procurava conduzir por novos caminhos.
As peças destes Guitar Works são bastante diferentes, o que revela que Rua não estaria propriamente interessado em permanecer muito tempo no mesmo lugar: há espaço para investidas por terrenos mais ambientais, aproveitando as planantes estruturas circulares da repetição para nos induzir numa hipnótica atmosfera de pulsares electrónicos, mas abre-se igualmente caminho ao discreto “guitar hero” que Rua também sempre foi, com o músico a experimentar (como em “Guitar Works III”) solar de uma forma mais expansiva, não se escusando também de investir por terrenos mais abrasivos e livres. Confessa-nos ele na entrevista que por aqui se publicará que se os seus companheiros dos GNR pudessem ter na altura escutado alguns destes exercícios decerto pensariam tratar-se de “ficção científica”. E, na verdade, era de futuro que se fazia (como de resto ainda se faz.…) a sua música. Já na peça seguinte, “Guitar Works IV”, o seu solo desenvolve-se como um vívido diálogo consigo mesmo, explorando ao máximo as capacidades do seu gravador de 4 pistas. As peças “Guitar Works VI” e “Guitar Works VII” serão as mais radicais aqui apresentadas, com o músico a rodar o botão de “abstracção” do seu amplificador até ao 10 enquanto estilhaça todo o tipo de convenções – tímbricas, harmónicas, rítmicas – de que consegue lembrar-se.
O seu trabalho com sintetizadores (que nos revelou serem os modelos Jupiter 6, JX-3P e SH-101 da Roland) é igualmente fascinante. Ao contrário das peças para guitarra, aqui apresentadas como uma sequência de exercícios que vão dos 3 minutos e 46 segundos (“Guitar Works II”, a faixa mais curta) aos 13 minutos e 20 segundos (“Guitar Works VI”, a mais longa), os dois “Synth Works” desenvolvem-se como murais mais amplos de 27 minutos e 14 segundos no Lado A e de 24 minutos e 28 segundos no seu reverso. O músico admite, aliás, que se “perdia” quando trabalhava com sintetizadores, entrando num estado hipnótico e imersivo que o conduzia a um plano em que as peças não tinham, de facto, “nem princípio, nem fim”. O que resulta numa mais opaca abstracção feita de ruidosos pulsares, drones granulares e densas névoas electrónicas que se desenrolam com lentidão contemplativa e que parecem apontar para um músico fascinado pelo carácter mais intrínseco do som, como se fosse o próprio sintetizador a guiar-lhe os passos, mostrando-lhe todas as suas inovadoras possibilidades.
As “avarias” no Lado B de “Synth Works” são ainda mais extraordinárias, um conjunto de ásperas passagens pelas diferentes “vozes” do instrumento, como se ele estivesse a ser operado a partir de dentro e não através da sua interface exterior. É Rua em busca do fantasma dentro da máquina, extraindo-lhe toda a sua “natureza” e depositando-a, sem filtros, na fita magnética.
Esta edição tem duas versões (“Fluor Cover” com 75 exemplares e “Silver Cover” com mais 150), foi masterizada por António Duarte e contém artwork assinado por André Trindade.
[SaiR] Fractions / Edição de Autor
Um álbum em 2019 na espanhola Neon Finger e EPs de 12” em 2016 na americana Omega Supreme Records e de 7” em 2018 na britânica Boogie Cafe Neon sublinham o carácter cosmopolita do som de Ruben Allen, aka SaiR, discreto produtor do Porto que para lá dos registos em nome próprio ainda coleciona diferentes créditos em trabalhos de Minus, Maze ou Miguel Ângelo.
SaiR acaba de lançar Fractions, trabalho com que reclama um pedaço de 2020 e em que prossegue com a afinação da sua particular visão musical. Centrando esteticamente os seus pés num imaginário terreno do arranque dos anos 80 preenchido com luzes de néon, jogos de vídeo de arcada, pioneiros computadores de ecrã de tons esverdeados e carros descapotáveis vermelhos com jantes cromadas, SaiR parece existir num universo paralelo em que se escuta incessantemente uma mistura de funk com laivos jazzísticos, pop alimentada a sintetizadores e bandas sonoras para filmes em que parece obrigatória a presença de palmeiras sob as quais o protagonista surge sempre com blazers de tons pastel sobre justa t-shirt branca.
Um dos mais interessantes aspectos da música de SaiR é, e tomando um termo técnico do cinema, a sua rigorosa direcção de arte: se os diferentes sintetizadores a que recorre são como adereços nos filmes musicais que desenvolve, então a verdade é que não há por aqui um único elemento anacrónico ou deslocado. A personalidade tímbrica da sua arte resulta de uma sentida vénia a uma era muito específica e de um estudo atento da música que gente como os Steely Dan, os Crusaders, Prince, os The System ou Jan Hammer, por exemplo, construiu a pensar em iates ancorados nas melhores marinas de Miami ou Malibu.
Esse “realismo” e esse “rigor” permitem embalar da melhor maneira os arranjos sofisticados que SaiR cria para as suas diferentes composições que percorrem a ainda considerável distância entre o funk de recorte sintético e o jazz de fusão da era em que os discos de vinil ostentavam orgulhosos o carimbo DMM – Direct Metal Mastering, procurando assim seduzir uma nova geração de cultores das mais avançadas tecnologias hi-fi com que o Japão conquistava o planeta, normalizando a experiência de audição e puxando pelo brilho sónico que só os instrumentos electrónicos pareciam capazes de alcançar.
Mas a verdade é que para lá dos importantes aspectos cosméticos da sua música, Ruben Allen entende bem as dinâmicas imutáveis do groove, como tão bem demonstra, por exemplo, em “At The Doorstep”, um dos temas por aqui apresentados que obriga a que se coloque a pergunta “mas por que raio é que SaiR e Da Chick ainda não editaram nada em conjunto?”. “Lost in Thought” é uma pequena maravilha de tons tropicais à espera de ser ouvida por Sade e “Treasure Map” bem que podia forçar Kika Santos a sair da demasiado longa pausa em que embarcou após a aventura Loopless. Todos os temas que SaiR nos oferece em Fractions são produto de uma refinada mente, em sintonia com a mais cromada e sedosa dimensão do modern funk, música para ser arrumada na prateleira em que guardamos os discos de Thundercat ou Dam Funk. Verdadeira música exótica para rádio, televisão, cinema de VHS e máquinas de flippers.
[BLACKOYOTE] Money Honey (Original Short Film Soundtrack) / Cosmic Burger
José Alberto Gomes editou IO o ano passado através da PAD (etiqueta responsável pela edição de trabalhos de Peixe:Avião, Sensible Soccers ou Dear Telephone, por exemplo) e regressa agora com nova proposta, uma banda sonora para a curta metragem neo-zelandesa Money Honey que tem autoria de Isaac Knights-Washburn. Trata-se de um trabalho muito distinto do seu antecessor: IO resultava do tratamento de um conjunto de gravações do saxofone barítono de Henrique Portovedo, mas Money Honey constitui-se como um score completamente electrónico com cinco temas.
Money Honey começa por surpreender pelo seu aturado sound design, a mistura procura explorar uma ampla sensação de espaço, com cada som a surgir distintamente suspenso, como se se procurasse sublinhar a dimensão dramática de cada elemento das composições. E o trabalho de composição é elaborado, navegando tonalidades de alguma melancolia, certamente condizentes com a narrativa que este ano mereceu estreia no Berlin International Film Festival.
Apreciar uma banda sonora sem ter visto o filme poderá até permitir a quem porventura o faça leituras dissonantes daquelas que faria caso tivesse tido acesso ao contexto total. Parece claro, no entanto, que Blackoyote investe aqui por terrenos referenciais algo específicos, procurando que a música evoque uma certa aura de nostalgia, remetendo esteticamente para uma era passada. A história que as notas de lançamento referem aponta para o “percurso de dois jovens no mundo real, complexo e duro”, coordenadas algo vagas, mas que ainda assim são suficientes para ancorarem o lado emocional destas composições, de tonalidades sobretudo cinzentas, sem grande espaço para algo que se pudesse confundir com ideias de bonomia, conforto ou felicidade. Essa dimensão algo agreste, pesada e densa torna-se evidente numa música de cuidadas camadas electrónicas, de funda generosidade harmónica e de sombrias melodias, tudo arranjado com elegância, com cada som a interagir com os restantes como delicadas peças num mecanismo de relojoaria, pulsando de tranquila, mas determinada energia.