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Ilustração: Riça
Publicado a: 18/04/2020

Techno, house, hauntology e outras ondas.

Oficina Radiofónica #20: Fatigado / twistedfreak / Weathervane Recs

Ilustração: Riça
Publicado a: 18/04/2020

A Oficina Radiofónica é a coluna de crítica de música electrónica do Rimas e Batidas. Música Electrónica? Sim. Techno e footwork, house e hauntology, cenas experimentais, ambientais, electro clássico e moderno, drum n’ bass e dubstep, dub e o que mais possa ser feito com sintetizadores e caixas de ritmos, computadores e osciladores e samplers e sequenciadores e outras máquinas que façam “bleep”, “zoing”, “boom” e “tshack”.


[Fatigado] Tou Fixe / Golden Mist

A última edição da Golden Mist datava do último trimestre de 2018, data já demasiado longínqua para uma editora que sempre lidou coma urgência do futuro. Mas, felizmente, Tou Fixe, segundo projecto de Fatigado neste catálogo, interrompe – da melhor maneira, conceda-se – esse preocupante silêncio e assinala o rearranque do selo que nos revelou nomes como RAP/RAP/RAP, Marie Dior ou Old Manual. Este sucessor de Sanzala(2017), confirma Fatigado como mais uma importante peça desse cada vez mais complexo puzzle da música electrónica portuguesa contemporânea, sobretudo a que se apresenta com maior inclinação para as pistas. A música de Fatigado explora diferentes nuances (e revela uma generosa “caixa de velocidades”, diga-se) nos terrenos da intersecção de uma ideia de África com a electrónica contemporânea: os balanços mais dolentes da kizomba (“Fica Só”, “Flautadas”, “Musuvia”), as síncopes mais nervosas do kuduro (“Nakeles Tempos”, “Todos Nós Queremos a Felicidade” ou “Um Cota Tamem Chora”), assomos de funaná (“Tou Fixe”) ou híbridos mutantes mais difíceis de “localizar”, mas de carga decididamente tropical (“Olha o Accordion”) atravessam a música que tem, na sua vertente melódica, uma sofisticada mais valia. Há um efeito interessante na música de Fatigado que parece por vezes apontar para uma direcção emocional de alguma melancolia, mas optar por um suporte rítmico divergente. O tema título é disso um bom exemplo e soa como uma improvável combinação de linhas melódicas que poderiam ter sido resgatadas a uma produção de R&B de cromado reluzente dos anos 90 com a propulsão inventada para os bailes mais agitados de Cabo Verde. No mesmo sentido parece seguir “Um Cota Tamem Chora”, peça cuja arquitectura sonora parece ter tanto de vaporwave quanto do pulsar que domina o mercado Roque Santeiro em Luanda… Fatigado existe entre dois ou mais mundos, todos electrónicos e de atmosfera digital, mas com pressões “gravitacionais” diferentes que ora nos mantêm os pés mais assentes na terra (ou na pista) quer nos deixam a cabeça a flutuar sem peso quando as reluzentes linhas melódicas nos empurram para o espaço. Mais, por favor.


[twistedfreak] recordações do quarto amarelo / combustão lenta records – Coletivo FARRA

O mais recente lançamento do selo de Lamego combustão lenta (em conjugação com o Coletivo FARRA) pertence a twistedfreak e sucede a entradas no catálogo carimbadas por Sal Grosso ou Sã Bernardo. A apresentação assinada pelo próprio twistedfreak deixa claros os terrenos aqui percorridos: “feito entre 2017 e 2020. são muitas camadas que aparecem e desaparecem, meio como sonhos que não sentem o tempo passar. o césar monteiro inspirou (óbvio), mas também o rothko, o basinski e o ligeti me fizeram sempre companhia (assim que me lembre)”. As coordenadas são claras: o domínio do tempo, por um lado, e dos sonhos, por outro, mas também aquele ainda mais difuso plano do tempo particular que só acontece quando dormimos e sonhamos; e, depois, as referências da arte que se faz para cinema, pintura ou música. O título remete para Recordações da Casa Amarela, filme de 1989 de João César Monteiro que parece hoje o retrato de uma Lisboa remota, pré-gentrificação, quando habitar perto do rio ainda não significava ter o olhar cortado pelos arranha-céus que até há bem pouco tempo navegavam e atracavam ali em Santa Apolónia despejando hordas para dentro de uma cidade viciada em turismo fácil. Como a música de Basinski ou as pinturas de Rothko, que twistedfreak aponta como inspirações, também o que se escuta neste recordações do quarto amarelo parece fazer-se dessa ideia de desintegração da realidade, da lenta fragmentação (combustão?…) do sentido que nos leva a mergulhar no tal estado dos “sonhos que não sentem o tempo a passar” e que, por isso mesmo, se apresentam como permanentes e eternos. Já da obra de György Ligeti, o compositor português parece reclamar uma certa solenidade, tom que atravessa todos os seus drones que se desenrolam como a lava que escorre lentamente pela encosta da nossa memória, feitos de resíduos harmónicos, ecos de secções de cordas, fragmentos de melodias ao piano que o reverb acentuado transforma em algo meio fantasmagórico, loops de sons que tiveram outra vida, noutros contextos, e até, lá longe, o ribombar grave de uma festa techno em que não se quis entrar ou até de que se fugiu. Talvez seja a memória do som distante de uma festa que ali para os lados de Santa Apolónia se pudesse libertar de um sistema de som levado até ao limite e propagar-se, cada vez mais opaco, até chegar à tal casa ou quarto amarelo ribeirinho. Talvez isso tivesse sucedido noutros sonhos. Recordar, afinal de contas e ao contrário do que diz o adágio popular, não é necessariamente viver. Pode até ser morrer. Um bocadinho de cada vez.


[Vários Artistas] Estado de Emergência / Weathervane Records

Estado de Emergência, compilação que reúne 20 trabalhos e que se apresenta com curadoria de Oströl e carimbo editorial da Weathervane Records (projecto que nasce de um programa de rádio mensal na Threads Radio), é não apenas uma resposta criativa ao estado presente que todos atravessamos, mas, talvez mais importante, um possível retrato da nossa complexa, múltipla e agitada cena electrónica mais exploratória. Com trabalhos de Sal Grosso, carga aérea, Aires, UNITEDSTATEDOF, Francisco Oliveira, Vasco Completo, twistedfreak, Louis Wilkinson, Jari – Carincur, ATA OWWO, UGLYGLOW, Lift Aym, Dakoi, SUP BANIA, DRVGジラ, Assafrão, Moreno Ácido, HIFA, Kara Konchar e do próprio Oströl, este Estado de Emergêncianavega diferentes águas: dos oceanos ambientais aos profundos poços dos drones, dos turvos lagos da música concreta aos subterrâneos rios de ruídos inclassificáveis, dos lençóis tranquilos de aquíferos exercícios de modernidade clássica, às mais remotas margens das correntes techno e daí aos depósitos de líquido sónico industrial. O que se pressente de comum a todos estes nomes e às suas arrojadas propostas é uma inquietude certamente imposta pela tal incerteza presente, marca que se manifesta em música quase sempre de tonalidades mais cinzentas ou negras, de tom senão realmente ameaçador pelo menos subtilmente intimidante, como se o filme que toda esta música pudesse ilustrar fosse não uma improvável distopia, mas um muito real documentário feito a partir das mais trágicas consequências desta pandemia.

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