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Ilustração: Riça
Publicado a: 27/12/2019

Techno, house, hauntology e outras ondas.

Oficina Radiofónica #2: Puto Tito / DJ Firmeza / DJ Nigga Fox

Ilustração: Riça
Publicado a: 27/12/2019

A Oficina Radiofónica é a coluna de crítica de música electrónica do Rimas e Batidas. Música Electrónica? Sim. Techno e footwork, house e hauntology, cenas experimentais, ambientais, electro clássico e moderno, drum n’ bass e dubstep, dub e o que mais possa ser feito com sintetizadores e caixas de ritmos, computadores e osciladores e samplers e sequenciadores e outras máquinas que façam “bleep”, “zoing”, “boom” e “tshack”.


[Puto Tito] Carregando a Vida Atrás das Costas / Príncipe

O constante mergulho no passado em busca das obscuridades que se foram escapando do tempo por entre as rachas da indústria tem revelado pequenos diamantes em estado bruto nas mais diversas áreas, da folk à soul, da electrónica ao jazz mais livre, gravações efectuadas quase sempre com parcos recursos técnicos, em vãos de escada, quartos dos fundos ou lofts da era pré-gentrificação. Estas gravações além de nos abrirem os ouvidos para dimensões paralelas feitas de múltiplos “e ses?”, também resultam hoje como uma espécie de comentário ao constante devir da música popular, com artistas que com guitarras acústicas, pequenos sintetizadores e caixas de ritmos “primitivas”, com saxofones e contrabaixos, emulavam heróis estabelecidos e alimentavam delírios de grandeza sem que o mundo tivesse alguma vez parado tempo suficiente para lhes dar atenção. Este lançamento de Maio passado na poderosa Príncipe cai nessa categoria de resgates do presente a um tempo passado: o material de Carregando a Vida Atrás das Costas foi gravado no “distante” período de 2014/2015, viu os originais perdidos nas entranhas de um qualquer disco rígido descartado, e surge agora graças à preservação conseguida através de uma velha conta de Soundcloud de onde se descarregou a música a que Tó Pinheiro da Silva deu o tratamento possível para a corrente edição. E o que se escuta são espectrais exercícios a cargo de um produtor aspirante à entrada da adolescência (Puto Tito nasceu em 2000…) a imaginar as colunas do seu PC como o sistema de som de um clube onde há obviamente lugar para a sua interpretação das cadências pronunciadas do kuduro ou do tarraxo. E tudo isso informa um som que é ultra pessoal, irredutível na sua obtusa experimentação, alheio a cânones técnicos ou estéticos, impermeável a qualquer influência externa e, ao mesmo tempo, comoventemente inocente, íntimo e até algo onírico. Algumas das passagens são breves polaróides, fragmentos de ideias que pouco mais se estendem para lá de um minuto de duração, mas em “(Puto Tito)” ou “123” os grooves são dilatados no tempo, ascendendo a um mais hipnótico plano perfeitamente compatível com o abandono das 4 da manhã em qualquer pista suada. Já o tema título, “Carregando a Vida Atrás das Costas”, soa como um madrigal medieval tocado por Hal 9000, pedaço de beleza de poética extrema e descarnada no seu económico arranjo.


[DJ Firmeza] Ardeu / Príncipe

Se imaginarmos hoje uma sexta-feira à noite de 1989, no centro da pista do The Music Institute em Detroit, com Derrick May aos comandos da cabine a debitar intensas camadas de pressão percussiva sobre uma multidão em hipnótica sintonia, o som que se formará na nossa cabeça não há-de diferir assim tanto daquele que DJ Firmeza conjura em “25”, a última das faixas que incluiu em Ardeu, EP de Setembro último com que sucedeu ao hoje clássico Alma do meu Paique já data de 2015. No lado A abrigam-se duas leituras profundamente lúdicas e inventivas do kuduro em “AVAN” e “Intenso”, com o motor de combustão extrema a propulsionar os improvisos vocais de Firmeza que vai largando palavras avulsas que são tanto matéria sónica para povoar os intervalos das frequências quanto desafios ao sentido, exemplos práticos da “animação” que qualquer sessão rendida à batida não dispensa. Em “Intenso” o som das sirenes parece mostrar a paisagem sónica do bairro ou a porta do clube aberta quando alguém entra para se juntar à festa. A gestão da cadência é tão intensa quanto o título da faixa, com perfeito equilíbrio entre os diferentes elementos da bateria e encaixe perfeito de graves médios e agudos que surtem efeito incontrolável sobre os nossos membros. “RRRRR”, já no lado B, ilustra mais uma vez a ponte entre a Quinta do Mocho e a baixa de Detroit, com o kick-rolo compressor a acomodar o lado mais metálico da percussão, que parece reconhecer bounceurgente até no kling klang de uma qualquer fábrica metalúrgica onde, como facilmente se compreende, toda a gente espera pelas seis da tarde de sexta-feira para depois se perder no centro da pista. Do Music Institute ou de um qualquer recanto lisboeta com espaço para este tipo de firmeza rítmica.


[DJ Nigga Fox] Cartas na Manga / Príncipe

Cartas na Manga é o álbum de estreia de um dos mais prolíficos criadores abrigados no catálogo da Príncipe: DJ Nigga Fox lançou no passado mês de Outubro o registo com que sucedeu a Crânio, ep de 2018 que marcou a sua estreia no catálogo da Warp após três títulos para a editora lisboeta lançados entre 2013 e 2017. E a primeira leitura possível do fôlego amplo de Cartas na Manga – cerca de 35 minutos divididos por 8 temas, mais uma breve intro para nos disparar na direcção certa – aponta para a noção de maturidade, ainda que, desde a estreia com o desafiante O Meu Estilo, o artista que em casa responde ao nome de Rogério Brandão demonstre pleno domínio da sua linguagem, uma abordagem progressiva, no mais agudo sentido da palavra, ao kuduro que, nas suas mãos, nunca é território estanque, antes tubo para ensaio de novas ideias. Por oposição a outras práticas mais monocromáticas desta particular batida de Lisboa (e basta pensar no lançamento anterior no catálogo da Príncipe, o EP Ardeu de DJ Firmeza abordado mais acima), Nigga Fox demonstra possuir uma mais variada paleta tímbrica à sua disposição (há pianos, sopros sintetizados, marimbas e flautas…) que usa em arranjos que acomodam ecos de jazz de fusão (“Talanzele”) ou de pinceladas baleáricas (“Água Morna”) sobre diferentes cadências, sempre apontadas à pista, mas capazes de pensar noutros slots para lá do peak time das quatro da matina. De forma discreta, DJ Nigga Fox tem-se vindo a impor como um dos mais sofisticados autores deste particular universo sonoro, um produtor que de facto pensa a sua arte para lá da funcionalidade directa na pista e se desafia constantemente a explorar de forma intuitiva as margens mais remotas do seu próprio universo, sempre em busca de novas paisagens e soluções. E “Vício”, entre gotas de água electrónica e uma cuíca digital, pode muito bem ser um prenúncio de algo novo, na forma como se organiza de forma surpreendente, entre a pista e o espaço infinito que existe dentro da nossa cabeça quando a equipamos com o par certo de auscultadores.

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