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Ilustração: Riça
Publicado a: 17/04/2020

Techno, house, hauntology e outras ondas.

Oficina Radiofónica #19: Jon Brooks / Gerald Cleaver

Ilustração: Riça
Publicado a: 17/04/2020

A Oficina Radiofónica é a coluna de crítica de música electrónica do Rimas e Batidas. Música Electrónica? Sim. Techno e footwork, house e hauntology, cenas experimentais, ambientais, electro clássico e moderno, drum n’ bass e dubstep, dub e o que mais possa ser feito com sintetizadores e caixas de ritmos, computadores e osciladores e samplers e sequenciadores e outras máquinas que façam “bleep”, “zoing”, “boom” e “tshack”.


[Jon Brooks] How to Get to Spring / Clay Pipe Music – Café Kaput

Como chegar à Primavera, de facto? O calendário confirma que já cá estamos há quase um mês e, no entanto, nestes dias estranhos a Primavera mais não parece do que uma distante miragem. Ou um inalcançável sonho. E é de miragens e de sonhos que, afinal de contas, a música de Jon Brooks sempre tratou. Quem acompanha desde a primeira a hora a música deste prolífico compositor (e os primeiros sinais da sua Café Kaput, ainda sob o pseudónimo D.D. Denham, datam já de 2010) saberá que a sua identidade musical tem sido constante, talvez apenas com um crescente pendor melancólico. Como Jon Brooks (e convém recordar que grava também como Advisory Circle na Ghost Box) tinha mais recentemente explorado de forma conceptual a sua própria ideia de Library Music (nos projectos do para já díptico, mas que se espera expandido para série, Applied Music: Plastics Today  e Science & Nature) e, imediatamente antes, com data de 2017, um certo pastoralismo inspirado pelos Alpes no trabalho Agri Montana. No novíssimo How to Get to Spring – que conhece edição em vinil através da sempre recomendável Clay Pipe Music (em cujo catálogo este compositor inscreveu trabalhos como Shapwick, 52 e Autres Directions) –, Brooks parece acercar-se ainda mais do deliciosamente difuso terreno dos Boards of Canada, sobretudo do seu lado mais onírico e próximo da folk. E isso significa aqui, em termos texturais, combinação das sonoridades acústicas das guitarras ou pianos com a névoa analógica dos sintetizadores, com pontuais pontuações rítmicas que surgem até bastante vincadas e também com recorte textural mais acústico do que electrónico (“Well Then”, momento de inocência pop de desarmante beleza, será, talvez, a excepção com os seus claps e hi hats claramente sintéticos). Brooks é um melodista tremendo, um compositor que mereceria todas as encomendas possíveis do National Geographic Magazine sempre que houvesse documentários sobre parques naturais em regiões geladas remotas a precisarem de moldura musical. Apesar de bastante emocional – e, como já sugerido, tendencialmente melancólica – a sua música remete para lugares estranhamente vazios de presença humana. Ou talvez espaços convidativos ao recolhimento, ao isolamento. Espaços onde seja, afinal de contas, possível alcançar a Primavera. E, tal como deveria ser no tão verde campo que se deveriam erguer todas as cinzentas cidades, como referia um certo arquitecto, também deveria ser na Primavera que se deveriam desenrolar todas as estações…


[Gerald Cleaver] Signs / 577 Records

Quando se procura o baterista de jazz Gerald Cleaver no Discogs e se conferem os grupos que integra ou integrou é difícil não ficar com o pulso acelerado ao perceber que a lista inclui diferentes formações lideradas por gente como Chris Lightcap, Craig Taborn, Ivo Perelman, Joe Morris, Mario Pavone, Matthew Shipp, Miroslav Vitous, Rob Brown, Roscoe Mitchell, Steve Swell ou William Parker, uma espécie de “who’s who” do lado mais moderno do jazz com quem gravou bem perto de duas centenas (!!!) de discos. O que a lista também revela é a capacidade, não tão comum assim, que Cleaver demonstra desde que começou a gravar profissionalmente quando contava apenas 20 anos, em 1984, de se encaixar em colectivos que exploram diferentes linguagens dentro do jazz, umas bem mais próximas da tradição erguida em cima da noção de swing, outras totalmente livres. E, para um baterista, agarrar o tempo num momento para o implodir no momento seguinte não é assim uma coisa tão linear. Tendo em conta tudo isso, Signs, que sucede a What Is To Be Done, álbum com Nels Cline e Larry Ochs lançado o ano passado na portuguesa Clean Feed, é um autêntico e inesperado OVNI. Apesar de residir em Brooklyn, onde, aliás, produziu a totalidade deste Signs, Cleaver é um nativo de Detroit e o facto de ter nascido em 1963 significa que tinha a idade certa para ser marcado pelo desenvolvimento do techno que despontou nessa cidade em meados dos anos 80. São as memórias desse particular pulsar arrancado às Rolands 808 que Gerald Cleaver sintetiza em Signs, o primeiro e, diga-se já, extraordinário trabalho de música electrónica deste baterista experimentado noutras cadências. Mas Signs não é um álbum de música de dança, ou pelo menos não no sentido que normalmente se atribui ao lado mais “funcional” do techno pensado para as pistas. O que Cleaver, que é mestre do tempo, mas também, como já sublinhado, perito em dele se escapar, aqui faz é destilar a ideia de futuro contida nessa música que pioneiros como Juan Atkins e Jeff Mills criaram nos projects da Motor City enquanto sonhavam com robots, naves espaciais e rebeldes capazes de resistir através da tecnologia. “Jackies Smiles”, o tema de abertura, por exemplo, começa por se posicionar em África antes de divergir para um arranha-céus que torna a cidade cada vez mais difusa à medida que o elevador nos carrega para as nuvens, quase como se fosse muzak de um corporativo edifício de escritórios do futuro. Já os “Bells” que Jeff Mills traduziu num dos maiores standards do techno (tema monolítico que parecia ser feito com o mesmo peso do bronze para que o seu título remetia), encontram aqui espaço num abstracto “Blown”, que soa, sem dúvida, como o detrito harmónico desse metal percutido até à abstracção absoluta, antes da entrada em cena de uma propulsão rítmica feita de graves, mas que ainda assim recusa terminantemente a “funcionalidade quadrada” a que o techno tantas vezes aspira. A suite tripartida de “Signs”, de onde se extrai o título do álbum, apresenta-se como uma desconstrução desse ritmo electrónico pesado e industrial que marcou a identidade detroitiana, mas com a síncope fluída e anti-4×4 a fazê-la divergir para território cerebral. Cleaver, mesmo de olhos postos no monitor do computador enquanto organiza esta visão nas grids do seu sequenciador, continua a pensar como um homem que tenta compreender o tempo para dele mais facilmente se libertar. E no processo assina um tremendo disco de inclassificável música electrónica.

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