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Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 14/09/2021

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #67: Rodrigo Brandão / Journeys In Modern Jazz: Britain / Don Rendell Quintet

Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 14/09/2021

Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.



[Rodrigo Brandão] Outros Espaço / Comets Coming

Artista brasileiro da palavra – poeta, declamador, agitador, rapper, pensador e provocador –, Rodrigo Brandão é um filho do hip hop que cresceu com os ouvidos encostados às vanguardas afro-futuristas que procuraram no espaço a terra da liberdade, de Sun Ra e Funkadelic, a Fela Kuti, Hermeto Pascoal, Lee Perry e Gil Scott-Heron, passando por Prince Paul e tanto mais. Agora baseado em Lisboa, onde este fim-de-semana teve oportunidade de apresentar Outros Espaço (o ReB passou por lá), o seu mais recente trabalho que inaugurou um novo selo, Comets Coming, afiliado da Groovie Records, Brandão permanece tão inquieto quanto no período em que em Nova Iorque embarcou na aventura Brookzill! ou, de volta a São Paulo, se cruzou em palcos com gente como Rob Mazurek e, pois claro, Marshall Allen e demais veteranos da Arkestra de Sun Ra com quem, de resto, gravou, na Sesc de São Paulo em Outubro de 2019, o material agora dado à estampa.

Em entrevista publicada no passado mês de Agosto, aquando do lançamento digital de Outros Espaço, Rodrigo teve oportunidade de explicar detalhadamente como os astros se conjugaram para que o encontro aí documentado pudesse ter acontecido: 

“Tudo começou quando a equipe do Moers Festival foi a São Paulo assistir tudo quanto é concerto de artistas da cidade, no intuito de fazer uma programação especial dedicada a essa cena mais à esquerda de SP, pra edição daquele ano do evento. (…) O que chegou como raio de luz no chakra central do meu peito foi o convite para me apresentar na noite de abertura do festival, em sessão de improviso junto ao Marshall Allen.

Lá, a conexão entre nós se estabeleceu instantaneamente, e fluiu formosa no palco, a ponto do jornal alemão estampar uma foto nossa na capa da edição do dia seguinte. No fim da noite, de volta ao hotel, ele me abraçou e disse: “Mais. Temos que fazer isso mais vezes”. Aquilo pra mim foi que nem diploma, sabe?

Meses depois, quando se confirmou a ida da Sun Ra Arkestra para abrir o Sesc Jazz na Cidade Cinza, a gente aproveitou pra aprofundar esse encontro. Naquela altura, o Marshall trouxe também outros integrantes da banda que conviveram muito com Sun Ra em si: o agora saudoso Danny Ray Thompson, Knoel Scott e o meu conterrâneo Elson Nascimento. Do lado de cá, fiz questão de trazer a gang que já vinha trincando comigo, o núcleo central que gravou o meu trabalho de estreia solo: a turma do Hurtmold (Guilherme Granado e Marcos Gerez), do Metá Metá (Juçara Marçal e Thiago França), o Paulo Santos (do Uakti), o Thomas Rohrer e a Tulipa Ruiz. Ou seja: a escolha da formação foi bem natural e inclusiva.”

Brandão refere-se, obviamente, a uma espécie de sintonia cósmica, à realização de que há uma língua cultural universal que o seu percurso – humano, artístico e intelectual – o levou a interiorizar de forma muito natural, requisito-chave para se abrir essa via de comunicação que rendeu a música que agora temos em mãos. E, de facto, essa é a primeira de muitas qualidades que Outros Espaço apresenta: a fluência de Rodrigo não apenas na comunicação verbal, mas na comunicação artística com os seus parceiros de palco, funcionando ele como uma espécie de ponte – talvez de tradutor – entre os seus aliados brasileiros que chegam de vários pontos do mapa musical contemporâneo de São Paulo e os parceiros norte-americanos que consigo carregavam o arcano conhecimento herdado de Sun Ra.

As palavras são aqui matéria importante e não apenas elemento decorativo. Rodrigo Brandão é ao mesmo tempo antena de generoso alcance que capta mensagens culturalmente fundas vindas da prática do candomblé (“Quando os Orixás Desfilam Sobre a Cracolândia”), dessa fonte de identidades que é o recreio de escola (“Jamais Nos Esqueceremos”) e do estudo da filosofia do mestre Sun Ra (“Eu Sou 1 Instrumento”, adaptação do poema “I Am an Instrument”) e também megafone que amplifica pela sua própria escrita os gritos do presente (“Quantos Coltrane”: “Enquanto isso eu lhe pergunto/ Quantos Coltrane foram calado à bala/ de colt 45 pela rota/ antes de emitir uma nota sequer / com seus respectivos saxofones?”; “Todo o Dia Tem +”: “Hoje o ambiente/ Por si só é um oponente / Para ser sincero/ O que seria ponto zero/ Vira ponto de conflito”). E faz isso com voz expressiva, cujo tom vai respondendo, em tempo real, ao que a música lhe aponta: na já mencionada entrevista, Rodrigo fala em urgência e ritual que lhe comanda o corpo. Não é teatro, não, é energia de orixás mesmo, descarregada em palco quando soprada por um gigante, um Ojé, como Allen, e depois transformada em palavras por um Rodrigo Brandão nitidamente possuído pela força da música.

E que música é esta? Da “team Brasil” escutam-se, em vozes de apoio, Tulipa Ruiz e Juçara Marçal; Thiago França toca flauta e saxofones tenor e alto; Guilherme Granado assegura efeitos e sintetizadores; Marcos Gerez toma conta do baixo eléctrico; Thomas Rohrer toca sax soprano e violino; Paulo Santos é percussionista. E depois há a embaixada da Arkestra, com Marshall Allen à cabeça, em sax alto e sintetizador, Elson Nascimento no surdo, Knoel Scott nos saxes tenor e soprano e o entretanto já desaparecido Danny Thompson em sax barítono e bongo. Sente-se uma clara sintonia entre todos os músicos, facto a que naturalmente não será alheia a mestria de Marshall Allen, com extensa experiência na condução de uma entidade feita de recursos humanos rotativos como a Arkestra, que dirige desde que Sun Ra regressou a Saturno, em 1993. E dessa sintonia nasce uma música inquieta, exploratória, inquisitiva. Tudo começa com um sintetizador que parece sintonizar uma qualquer vibração do cosmos e que precede entrada em cena de um saxofone que sola sobre uma selva de percussões chocalhantes. E a partir daí é sempre a abrir: “Salute to the Sun” tem sax estridente e livre e base percussiva de recorte tribal; “Quantos Coltrane” é drama ambiental, sobrevoado pela voz “meio sol, meia lua” de Brandão; “Todo o Dia tem +” é África projectada no futuro, com balanço polirrítmico e fanfarra de ensemble artístico de Sampa; “Sol da Meia Noite” é música cósmica, um “samba na madrugada” feito de voz com eco, como se tivesse sido gravada num amplo túnel deserto; já no final, “(Essa Noite) A Casa é Nossa” mostra a voz de Rodrigo enquadrada por sintetizador a “crucificar o eclipse” enquanto o colectivo diverge para terreno cinemático.

Trabalho de sons e ideias densas, Outros Espaço recompensa audições sucessivas com novas descobertas, fruto de um entrançado de sons que pede tempo para ser devidamente descodificado, com cada um dos improvisos individuais a servir sempre a direcção seguida colectivamente. Aqui, onde vai um, vão todos, rumo a outros espaço, a outros universo. Com Marshall Allen aos comandos da nave e Rodrigo a tomar conta do diário de bordo. Boa viagem.



[Vários Artistas] Journeys In Modern Jazz: Britain / Decca | [Don Rendell Quintet] Space Walk / Decca

A compilação Journeys in Modern Jazz: Britain, curada por Tony Higgins (com quem o Rimas e Batidas conversou não há muito tempo a propósito da série de compilações dedicadas à produção jazz japonesa lançadas pela BBE), inaugura um ambicioso e mais do que necessário programa de reedições de peças dos arquivos de etiquetas como a Deram, Argo, Fontana Mercury, Philips e EMI Lansdowne Jazz e que terá carimbo actual da histórica Decca. Quem porventura siga fóruns da especialidade ou esteja atento ao Discogs, sabe bem o quanto podem custar as mais preciosas rodelas do jazz que foi produzido em Inglaterra na década de 60 do século passado (um Hum Dono ultrapassa facilmente os dois mil euros e um Shades of Blue pode até ir bem mais longe). Por isso mesmo, este tiro de partida para uma corrida à reposição nos escaparates do presente de pelo menos alguns dos mais cruciais títulos desse período é uma óptima notícia.

Reconhece-se neste período histórico do jazz britânico a ascensão a um estado de distinta vibração e de vincada identidade, com os músicos mais aventureiros a estabelecerem um inegável “sotaque” próprio a partir de uma cultura importada numa era em que não estavam ainda estabelecidas as instituições de ensino que deram origem à agitada e diversa cena contemporânea. Este Journeys In Modern Jazz: Britain faz um excelente trabalho de propor uma porta de entrada nesse entusiasmante universo ao alinhar música de compositores como os pianistas Michael Garrick (um original de Promises, de onde se extrai o tema “Second Coming” presente nesta compilação, pode tornar a vossa conta cerca de 450 euros mais pobre) e Neil Ardley (aqui ao lado de Ian Carr e Don Rendell com um tema, “Kriti”, retirado do álbum Greek Variations & Other Aegean Exercises que já trocou de mãos por 700 euros no Discogs) ou do trombonista Michael Gibbs (o seu álbum homónimo de 1970, de onde se retirou o tema “Some Echoes, Some Shadows”, vénia a John Dankworth que fecha o alinhamento desta antologia, felizmente encontra-se a valores bem mais terrenos).

Há mais: peças de inegável modernismo do saxofonista Don Rendell (“A Matter of Time”, retirada de Space Walk, a que por aqui também se dá atenção, disco cujo original facilmente chega aos 500 euros), do trompetista Harry Beckett (um exemplar de Flare Up, álbum de 1970 de onde se extrai “Third Road”, pode chegar perto dos 400 euros) ou da New Jazz Orchestra (cujo clássico de 1969 Le Déjeuner Sur L’Herbe, que se seguirá ao já mencionado registo de Don Rendell no programa de reedições que esta compilação inaugura, pode valer 300 euros). Elegância absoluta, swing de assertividade total e músicos de primeiríssima água que então tocavam com a certeza e entusiasmo próprios de quem estava a desbravar novo terreno.

O primeiro álbum a sair do programa denominado British Jazz Explosion é o enorme Space Walk do saxofonista Don Rendell (músico a que ainda recentemente a Jazzman deu atenção ao editar a totalidade do output que o seu quinteto com Ian Carr produziu na obrigatória caixa The Complete Lansdowne Recordings 1965 – 1969). Gravado igualmente nos míticos estúdios operados por Denis Preston, Space Walk é um exemplo da modernidade e originalidade cultivada nesta era na Grã-Bretanha ao propor dois tenores como vozes dianteiras em boa parte do alinhamento. A Rendell (que além de tenor tocava aqui soprano e flautas) juntavam-se então, igualmente no tenor (e também em flauta e clarinete), Stan Robinson, bem como Trevor Tomkins na bateria, Jack Thorncroft no baixo e Peter Shade no vibrafone (e também em flauta). Esse é o vigoroso som explorado logo no tema de abertura, “On The Way”, todo ele fruto de tracção dianteira e de interacção telepática entre os dois solistas. Mas em peças como “Summer Song”, a combinação de flauta, clarinete, sax soprano e vibrafone sugere uma toada bem mais poética. E entre essas duas margens corre um rio de ideias variadas, como se sente na sofisticada “Antibes” ou, sobretudo, em “Euroaquilo”, peça com solo de bateria na introdução que depois investe por terrenos mais “coltraneanos” por que Rendell sentia natural afinidade.

De notar que estas edições se assumem como facsimiles das prensagens originais, embora se aproveite a oportunidade para corrigir algumas falhas (na primeira edição os títulos de um par de faixas surgiam trocados, por exemplo), com rigoroso som restaurado a partir dos masters analógicos pelos peritos da Gearbox (ou seja, vinil que vale mesmo a pena comprar em 2021!!) e extensas e relevantes notas a cargo do especialista Tony Higgins. Os nossos ouvidos (e os nossos bolsos…) agradecem.



(Estas reedições da Decca da série British Jazz Explosion estão disponíveis na Jazz Messengers)

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