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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 21/03/2021

Um amor nipónico.

Tony Higgins & Mike Peden: “O Japão permanece um enigma para muitos ocidentais”

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 21/03/2021

Tony Higgins e Mike Peden são dois autênticos ninjas, guerreiros que durante décadas travaram uma dura batalha: construir uma colecção de discos raros de jazz japonês a partir do Reino Unido. Essa dedicação extrema acabou por desembocar em J Jazz: Deep Modern Jazz From Japan, uma série de incríveis compilações que acaba de chegar ao terceiro volume, e também na J Jazz Masterclass Series, conjunto de reedições de álbuns importantes da história do jazz moderno japonês que em muitos casos representa a primeira vez que certas pérolas são escutadas fora do país do sol nascente.

Donos de uma mais do que óbvia e absolutamente desmedida paixão, Mike e Tony falaram ao Rimas e Batidas sobre o seu percurso enquanto devotos coleccionadores, abrindo de forma muito generosa o seu livro especial de memórias e revelando de forma clara como conseguiram construir este conjunto de compilações e reedições de referência com a ajuda da histórica editora britânica Barely Breaking Even.

De caminho, os dois responsáveis pela série J Jazz ainda assinaram uma mix para o programa Notas Azuis da Antena 3, uma estonteante apresentação ao incrível universo criativo contido nas suas compilações.



Podes começar, por favor, por me explicar grosso modo como se tornaram colecionadores de discos, quais foram os vossos portais para o mundo do jazz?

[Tony] Comprei os meus primeiros discos por volta de 1980–81. Na minha escola, no Reino Unido, havia um grande revivalismo da cena mod – bandas como os The Jam, e o two tone ska –, eu curtia isso tudo. Depois disso, entrei em soul americana dos anos 60, [das editoras] Stax e Atlantic, r&b, mod; em meados dos anos 80, disco, funk e hip hop. Mudei-me para Londres, para estudar na universidade; chegado a 1990, estava dentro da cena do acid jazz, a ir a discotecas como a Talkin Loud, etc. Andava a ouvir programas de rádio do Gilles Peterson, do Patrick Forge e quejandos, incluindo rádio pirata; estava a ouvir mais jazz e parecia-me uma extensão natural do meu interesse em funk e soul.

Ao mesmo tempo, estava muito dentro do funky jazz, organ jazz, coisas lançadas pela Fantasy, pela Prestige e pela Blue Note. Quanto mais ouvia, mais eu apreciava; rapidamente comecei a comprar mais jazz do que funk, começando com compilações de jazz, reedições e alguns originais – quando tinha dinheiro para eles. Havia então muito menos reedições, mas a viragem dos anos 80 para os 90 foi um ponto alto para edições bootleg e compilações white label que estavam disponíveis em mercados e lojas de discos – além de que havia muita troca de cassetes, que tinham faixas raras que os DJs rodavam. Era uma boa forma de aprender rapidamente.

[Mike] Compro discos desde que me lembro. Principalmente rock e música progressiva nos meus primeiros anos de adolescente; depois, vendi isso tudo quando saí da escola, em meados dos anos 70, ao passo que entrava na subcultura soulboy, comprando de tudo desde jazz funk e fusão até disco. Nessa década, na club scene britânica, prevalecia o jazz funk: Donald Byrd, Ronnie Laws, Charles Earland, Chick Corea e Jeff Lorber, que eu amava, especialmente a dimensão fusional do jazz. Tentei encontrar os DJs que rodavam esse estilo, como o Chris Bangs.



Suponho que o jazz japonês não seja tão fácil de coleccionar como o jazz americano ou europeu por razões óbvias. Como é que se desenrolou essa paixão tão particular? 

[Tony] Esse interesse foi apenas um prolongamento de gostar do jazz americano e europeu. Quando já exploraste os EUA e a Europa, partes para outros territórios: pode ser a América do Sul, jazz afro-cubano, latino ou africano. Aprecio tudo isso, mas houve alguns discos que ouvi muito cedo e que me cativaram: por exemplo, do Masabumi Kikuchi, um compositor e pianista que mais tarde compreendi ser uma figura basilar no jazz japonês. Depois, havia outros [músicos] que já eram bem conhecidos da cena jazz de dança, como o trompetista Terumasa Hino ou o baixista Teruo Nakamura. Alguns desses discos já tinham sido [êxitos nas discotecas] da cena jazz funk dos finais dos anos 70 e princípios dos 80 no Reino Unido – ou seja, o jazz japonês não era totalmente desconhecido.

Mas é verdade que apenas uma mão-cheia de discos chegava ao Reino Unido, sobretudo nas maiores editoras, ou algum disco esporádico em import [por encomenda], como o Unicorn do Teru Nakamura. Geralmente, a parte de leão da produção discográfica japonesa em jazz não saía do Japão. Fiquei cada vez mais intrigado por estes discos, sabendo que deveria haver mais. Comecei a estar atento a certos nomes e segui um caminho muito longo e profundo; com o tempo, passei a comprar os títulos mais fáceis de conseguir, geralmente de fusão e jazz funk, muitas vezes porque continham faixas mais funky para DJs. Deste modo, havia exemplares nas lojas ou em catálogos para vendedores – isto antes de a Internet ter proliferado mesmo no final dos anos 90. Não havia excertos online que pudesses ouvir antes de comprar um disco, pelo que a coisa era arriscada! As coisas mais profundas, livres, espirituais e modais eram muito mais difíceis de encontrar e raramente apareciam em lojas, porque não havia procura – especialmente da parte dos DJs. Estes tinham maior inclinação para o dancefloor jazz – samba pesado, funk fusion, a banda sonora certa para pôr os pés a mexer.

Visitei o Japão pela primeira vez por volta de 2000 e trouxe de lá coisas melhores, como LPs da editora Three Blind Mice (TBM). Depois, com a emergência da Internet, tornou-se lentamente mais fácil: permitiu-nos reconhecer nomes e começar a entender essa música. Também pude discuti-la online com outros colecionadores e entusiastas em fóruns e blogues; foi assim que conheci o Mike, através do seu blogue Orgy in Rhythm, um ótimo sítio onde discutir e trocar dicas sobre discos que cobriam todo o tipo de jazz. Mas, como era evidente que ele tinha um interesse particular em jazz japonês, foi assim que nos ligámos e iniciámos uma amizade que se desenvolveu daí em diante.

Penso que a força das compilações J Jazz se resume ao facto de as fazermos juntos: podemos trocar ideias que encapsulam ambas as nossas coleções e os nossos gostos. Acaba a ser sempre uma seleção muito interessante. Teria sido fácil fazê-las sozinhos, mas foi muito melhor juntarmo-nos – não apenas por nós, mas pelo resultado final.

[Mike] Como referi antes, o Chris Bangs sempre foi um DJ interessante e, felizmente para mim, ele era o DJ residente numa discoteca de Bournemouth onde ele me arranjava cassetes formidáveis. Foi através destas que me cruzei pela primeira vez com jazz fusão japonês dos anos 80, com artistas como Sadao Watanabe, Mikio Masuda, Himiko Kikuchi e Hiroshi Fukumura. Nessa altura, o jazz funk japonês era algo proeminente no Reino Unido e era promovido por DJs como Chris Hill e Jeff Young. Mergulhei [na cena] e fui dar às sessões lendárias do Paul Murphy no The Electric Ballroom em Londres, onde fui arrebatado pelo material que ele tocou (especialmente todos os bangers latinos e de samba [supersónico]), mas foi a experiência de ouvir “Merry Go Round”, tema de Terumasa Hino do seu álbum Double Rainbow que me fez zarpar para a minha odisseia de jazz japonês. Nunca tinha ouvido nada assim: uma fusão descomprometida de jazz e funk excêntricos, mas com uma dimensão crua e experimental bastante inspirada pelo som elétrico do Miles Davis no início dos anos 70. O álbum inteiro era incrível e reparei que os arranjos eram de um teclista chamado Masabumi Kikuchi, pelo que fui atrás do seu álbum Susto, que era igualmente doido, e assim começou.

Isto foi em meados dos anos 80 e, nestes dias pré-Internet, encontrar jazz japonês de qualidade não era fácil, embora aparecesse em lojas de segunda mão, de vez em quando, e nas minhas viagens anuais de digging nos EUA, assim como por encomenda [em mailing lists]. Já tinha uma coleção de boa qualidade, embora exígua, de jazz japonês, incluindo muitos discos da editora Three Blind Mice (TBM) – mas, quando a Internet nasceu, tudo se expandiu. Foi então que saltei a pés juntos para dentro do Japão e a sua história de jazz. Ajudava-me ter um blogue, o “Orgy in Rhythm”, com que partilhava o meu amor pela música: recebeu vários milhões de visualizações ao longo de anos e estabeleceu-se como um fórum online para colecionadores, DJs, fãs e aficcionados de tudo o que diz respeito a jazz. Ao entrar em contacto com bloggers japoneses como el goog, Warakatsu e Taru Nombei, aprendi cada vez mais sobre jazz japonês e foi através deles que comecei a viajar até ao Japão, para explorar a cena e conhecer os locais. Já fiz seis viagens de digging por lá na década passada, a caçar vinil de Sendai a Tóquio e mais além. As compilações J Jazz para a BBE surgem como resultado destas minhas viagens.

O que consideram mais distinto no jazz japonês do período que documentaram com estas compilações?

[Tony] Eu e o Mike focámo-nos mais no período que vai desde o final dos anos 60 até meados dos anos 80, porque nos parece que cobre o desenvolvimento do jazz moderno japonês, tanto em ritmo como em escala, e em vários tipos de direções interessantes, de forma muito vertiginosa. Há um florescer gigante de talento musical, editoras de música e colaboração não apenas entre os instrumentistas japoneses, mas com vários músicos a visitar o Japão, especialmente vindos da América. Vultos como Herbie Hancock, Gil Evans, Art Blakey e Mal Waldron: todos eles gravaram [música] extensivamente no Japão, [o que resultou em] álbuns disponíveis apenas nesse país – e são alguns dos seus melhores trabalhos. Estes consagrados artistas americanos reconheceram o nível de competência nos artistas japoneses e a qualidade técnica dos estúdios e da produção discográfica. Os seus discos têm um som fantástico, cada detalhe executado com elevadíssima precisão; das capas e faixas obi à mistura, masterização e prensagem do vinil, cada elemento na cadeia é cristalino. Os artistas japoneses conseguem tocar qualquer estilo de jazz – bebop, blues, standards, baladas, hard bop, post-bop, modal, espiritual, funk, fusão, Latino, samba, free – fazem tudo e fazem-no de forma suprema. Isso não é assim tão comum nos EUA ou na Europa: aí, por bons que sejam, os músicos tendem a permanecer numa ou duas vias musicais. Mas, no Japão, conseguem fazer tudo, de forma convincente e consistente.

Foi fácil conseguir os direitos destas obras? Do que entendi, algumas das faixas mais raras provêm de edições privadas, portanto quão difícil foi fazer isto bem? 

[Tony] Eu e o Mike perscrutámos as nossas coleções de discos e formulámos uma lista de desejos, que enviámos à BBE. Sabes que não vais conseguir todos, então pedes mais do que precisas – talvez consigas 75% deles, dependendo dos termos de licenciamento. Temos muita sorte com o nosso coordenador de licenças, Ken Hidaka, que é japonês, mora no Japão e conhece uma data de pessoas. Compete-lhe todo o trabalho de detetive em relação aos detentores de direitos de autor, quer seja diretamente o artista ou as editoras. Para o volume um, foi um processo relativamente escorreito, [à exceção de] uma única faixa que realmente queríamos e que nos foi recusada. Decidimos evitar as grandes editoras, visto ser difícil lidar com elas e os termos de licenciamento serem ridículos para uma pequena editora como a BBE. Desta forma, pudemos falar diretamente com essas pequenas editoras e os artistas.

Uma faixa monumental foi “Dead Letter” do Tohru Aizawa Quartet, de um álbum amador com prensagem privada, intitulado Tachibana, gravado em 1975, quando estudavam. Procurámos o Sr. Aizawa, que é hoje um doutor; ele concedeu-nos os direitos da faixa e do álbum completo para uma reedição. Esse era um álbum super raro que quase ninguém conhecia. Desde então, para cada compilação subsequente, o licenciamento tornou-se mais difícil, porque as editoras estão a perceber que há hoje um mercado maior e exigem mais dinheiro. That’s business! Também para o volume 2, acabámos a ir às grandes editoras para um par de faixas, mas recusam-se a dar-nos os direitos digitais, pelo que não é a situação ideal. Nos dias de hoje, os direitos digitais são fundamentais, embora as pessoas que compram compilações e reedições de álbuns tendam a estimar os discos físicos, especialmente em vinil.



Neste momento, a música japonesa está a inspirar múltiplas compilações, de funk a city pop até J Jazz, como lhe chamaram. De onde vem este amplo fascínio?

[Tony] Creio que o Japão ainda está relativamente subexplorado no que toca a música. Embora algumas componentes sejam bem conhecidas – tecnologia, bens de consumo, etc. –, outros aspetos ainda nos parecem estranhos e distantes, até exóticos. O Japão permanece um enigma para muitos ocidentais. E o mesmo pode ser dito para a sua cultura musical, que é vasta. Em anos recentes, temos visto o alargamento massivo do mercado para reedições e compilações, atulhado com todo o tipo de música esotérica e de nicho vinda de todo o mundo: psych rock africano, funk tailandês, disco do Médio Oriente… é interminável. Mas, entre tudo isso, parecia que o Japão tinha pouca representação. Penso que a distância de viagem a partir dos EUA e da Europa em conjunto com a língua foram uma grande barreira para muitos. 

Além disso, as formas de fazer negócios no Japão são muito específicas, é uma cultura particular. São apenas precisas algumas pessoas determinadas e sapientes de forma a abrir caminho para um conceito claro, identificar um projecto que possa ser vendido no mercado. Comigo e com o Mike, foi o jazz japonês. Percebemos que havia muito poucas compilações a cobrir esta área e estávamos convencidos de que tinha que haver um público para isto, dada a qualidade e o volume do material. Só é preciso que alguém lhe aplique uma ordem [e] proponha uma história ou estrutura, para o respaldar com algum contexto. O mesmo vale para o interesse recente em eletrónica japonesa, ambient e city pop. Os DJs e produtores estão sempre a tentar isolar novos samples, inspirações, etc. Era inevitável que acabassem no Japão.

Como já referiram, a dada altura, para expandirem as vossas coleções, tiveram que ir até ao Japão. Como é que encontraram discos por lá? Estavam a comprar apenas em Tóquio ou a viajar até outras cidades, a contactar colecionadores?

[Mike] Já estive no Japão seis vezes, para viagens de digging, e tive a sorte de acompanhar um amigo americano que lá tinha morado. Por causa disso, o seu conhecimento do país é vasto e ele pôde educar-me quanto às lojas de música em Tóquio, que podem ser difíceis de localizar caso nunca tenhas ido lá antes. Das primeiras vezes que lá estive, os lugares mais óbvios, como as diversas Disk Unions, Recofans, Banana Disks e HMVs costumavam ser baús do tesouro , visto que o jazz japonês era tido como inferior por muitos colecionadores nipónicos que preferiam os sons dos EUA e da Europa. Não me levem a mal, já havia colecionadores de J Jazz nessa altura, mas, como o frenesim por álbuns japoneses raros não se comparava ao atual, ainda consegui muitos LP a um bom preço. As lojas independentes, como a Universounds, a Face Records, a Hals e a Ella ainda eram melhores, com uma seleção maravilhosa de discos raros e obscuros a preços razoáveis (a libra valia mais em relação ao yen). 

Podia apostar em coisas que não conhecia e expandir ainda mais o meu conhecimento. Juntei-me com alguns amigos japoneses que conhecia dos blogues, trocámos discos e, em cada viagem, seguimos para norte, para [a cidade de] Sendai e de Tóquio para os subúrbios envolventes. Visitei localidades para pesquisar discos e conhecer nova gente e colecionadores, estabelecendo ligações que me têm dado jeito desde então. Embora [em 2020] nos tenha sido impossível visitar o Japão, o meu amigo de Sendai tem estado a licitar por mim em leilões do Yahoo japonês, pelo que ainda conto com um bom abastecimento de discos, para somar às encomendas por correio de lojas de discos japonesas. A procura nunca morre!



Há toda uma cena de bares de vinil, onde se tocam discos raros de jazz em aparelhagens de altíssima qualidade. Já estiveram nesses lugares?

[Mike] A subcultura de bares e cafés de jazz no Japão, conhecidos como kissa, é um fenómeno fascinante – e, até há pouco tempo, exclusivo desse país. Nas minhas peregrinações por lá, visitei numerosos espaços desses, incluindo o Pres, o Mary Jane Uncle Tom, o Jazz Eagle e muitos mais em Tóquio, assim como Chicago e Dolphy, em Yokohama, o Count, em Sendai, e o Basie, em Ichinoseki, saboreando o ambiente único e os sistemas de som incomparáveis. Os kissa casam bem com a série J Jazz, visto que as imagens de capa usam as fotografias de Philip Arneill e o seu website Tokyo Jazz Joints. O co-administrador desse site, James Catchpole, já me levou a alguns joints extraordinários, incluindo o Charmant, em atividade desde 1955. Na noite em que lá estivemos, fomos recebidos com Miles at Carnegie Hall aos altos berros, a mesma parte do álbum repetida vezes sem fim, enquanto o proprietário – um dentista – servia bebidas, fumava e puxava de discos da gigantesca seleção arrumada atrás do bar. 

Na última viagem, fomos ao Chigusa, em Yokohama, que tinha um novo dono, e enquanto nos sentávamos a beber [cerveja] Kiri, pudemos fazer a nossa própria escolha de música, a partir de calhamaços que detalhavam a coleção de vinil do kissa. É uma experiência inenarrável sentares-te a ouvir Max Roach no kissa mais antigo do Japão, inaugurado em 1933. O lendário Basie, em Ichinoseki, é provavelmente a minha experiência favorita. Já se escreveu em várias revistas de hi-fi sobre esse lugar, devido ao sistema de som personalizado que contém; foi o objecto do documentário Jazz Café Basie: The Ballad of Swifty. Viajámos 400 quilómetros de Tóquio, tendo chegado à sexta-feira à hora de almoço, e entrámos no espaço, que continha um palco preparado para uma banda, paredes forradas com todo o tipo de cartazes, fotos e efémera de jazz, milhares de discos atrás do bar e livros em mesas, com cadeiras por toda a parte. Alguns clientes sentaram-se a beber café e a ouvir jazz enquanto o proprietário, Shojie “Swifty” Shugawara, se sentou a escrever e a beber numa mesa perto do bar. Depois de termos mandado vir bebidas, sentámo-nos a absorver o estonteante som das lendárias colunas JBL, antes de aceitarmos o convite para nos juntarmos à mesa do Swifty, onde nos apresentámos. Quando ele percebeu que eu era britânico, meteu a rodar no gira-discos o Duke Ellington Live at Westminster Cathedral. Quando ele percebeu que o meu companheiro americano era um bom amigo do seu próprio amigo Sadao Watanabe, soubemos que estaríamos lá a tarde [toda]! Vários discos e cervejas depois, para além de uma visita guiada pelo sistema de som lendário, o Swifty levou-nos até à porta, onde nos despedimos ternamente na rua e prometemos visitá-lo novamente em breve,

Já receberam feedback dos colecionadores, artistas e editoras do Japão quanto às vossas compilações? 

[Tony] Sim e tem sido muito positivo. Os artistas começam por ficar chocados e surpresos com o facto de alguém conhecer sequer o seu material, especialmente as coisas mais raras e privadas. Questionam-se sobre como é que dois tipos no Reino Unido obtiveram um disco feito há 40 anos e que teve apenas 250 cópias. Mas também ficam entusiasmados e agradados por ver a sua música chegar a um público internacional – são ouvidos em Londres, Nova Iorque, Paris ou Lisboa. Eu e o Mike temos muito prazer em dar uma nova vida à sua música, retirá-los do exclusivo de pouquíssimos colecionadores e partilhá-la, democratizá-la.

Alguns negociantes de peso de discos japoneses elogiaram as compilações e ficaram surpreendidos com a profundidade da nossa seleção, e a capacidade que tivemos de encontrar as faixas e obter licenças de uso. Alguns DJs japoneses de jazz, [dos mais estabelecidos,] não conheciam várias das faixas que incluímos e quiseram saber como as achámos. De forma geral, [o projeto] tem tido uma receção calorosa, o que nos deixa contentes.



Qual o disco mais caro que surge na série? Há alguma história por detrás deste e da vossa compra? 

[Mike] Há alguns discos extremamente dispendiosos, tanto na J Jazz Masterclass Series como naqueles que estão incluídos nas compilações. Felizmente, a maior parte – não todos (!) – foi comprada por valores razoáveis, antes dos preços terem disparado nos últimos anos. O Earth Mother do Koichi Matsukaze é um ótimo exemplo: incrivelmente difícil de interceptar, até no Japão, onde sempre rendeu bom dinheiro, e praticamente inaudito fora do seu país, até que incluímos a faixa-título no J Jazz 1 e reeditamos o álbum completo. Foi-me apresentado na minha primeira viagem ao Japão durante uma sessão tardia de cervejas e yakitori [prato japonês de frango grelhado] em Tóquio; [o culpado foi] o meu amigo Yuuichiro, que falou com grande excitação do álbum. Ele tinha um exemplar, mas não conseguia ripar [transferir para digital] de forma a que eu o pudesse ouvir.

Antes de o ter conhecido em pessoa, as recomendações dele já me tinham feito viajar por muitos vórtices produtivos de J Jazz, então eu sabia que o Earth Mother ia valer a pena, independentemente do preço e da dificuldade. Contudo, quando comecei a minha investigação, o disco não estava sequer registado no Discogs; comecei a entrar em contacto com amigos, negociantes e lojas, a virar o eBay e a Internet do avesso para encontrar o álbum fugidio – tudo em vão. 

Passaram-se anos, com mais viagens, e um dia, na minha viagem de 2017 ao Japão, o meu amigo Kyosuke telefonou-me para dizer que tinha algumas peças para mim e para irmos almoçar a Kichijoji. Cheguei e fui recebido com um saco da [loja] Disk Union que continha vários discos exímios da TBM que lhe paguei. Sentámo-nos, almoçámos e falámos de discos durante horas. Quando me ia embora, ele puxou de outro saco debaixo da mesa e disse “Hey, Mike, ainda estás à procura disto?” e sacou de uma cópia esplêndida do Earth Mother. Eu pensava que ia desmaiar; acho que um disco nunca tinha surtido em mim tal entusiasmo. Acertámos um valor muito razoável e fui-me embora, extasiado por sentir que a pesquisa havia chegado ao fim. Ao voltar a casa, foi a primeira coisa que fui ouvir e não me desiludi – que discalhaço! Incluí-lo numa compilação e reeditá-lo é, para mim, um dos destaques do nosso trabalho para a BBE.

Quão adiantados estão nos planos para esta série? Há mais volumes projectados?

[Tony] Depois do volume 3 do J Jazz, tem sido um desafio manter a qualidade que granjeámos até agora – principalmente porque várias das faixas que gostaríamos de incluir pertencem a grandes editoras, de quem é difícil obter licenças de uso. Estamos a considerar uma possível compilação especial focada numa editora em específico, mas não podemos revelar quem.

Já reeditaram álbuns de certos artistas. Prevêem-se mais reedições?

[Tony] A J Jazz Materclass Series é um programa especial de reedições de álbuns integrais. É um spin-off das compilações. Até agora, reeditámos sete longa-durações, e o oitavo está na calha para Abril: o álbum de estreia do saxofonista Kohsuke Mine, First, lançado originalmente em 1970. Trata-se da sua primeira reedição. É uma obra-de-arte incrível e estamos muito agradados de ter conseguido os direitos diretamente do próprio Kohuske Mine. Recriámos o artwork original, a capa dupla [gatefold] e faixa obi, para além de novas e extensivas notas de capa. Temos mais álbuns a caminho e anunciá-los-emos na altura certa.

Tirando jazz japonês, que outras áreas podem explorar no futuro?

[Tony] Bem, sempre quis fazer um concerto com todos os músicos que ainda estão vivos, que ainda são alguns. Isso seria algo magnífico – trazer uma banda só de estrelas  para tocarem algumas músicas importantes, talvez como parte de um festival. Podíamos até gravar ou filmá-lo. É um sonho: seria muito caro, portanto precisaríamos do auxílio de alguns patrocinadores. O que também seria interessante era um documentário sobre esse período do jazz japonês, antes que mais [músicos e intervenientes] morram. [E] um pequeno vídeo sobre a cultura dos kissa também seria um projeto encantador.


* A tradução da entrevista foi feita por Pedro João Santos.

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