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Fotografia: Inês Mineiro Abreu
Publicado a: 13/09/2021

Em transe. Ainda.

Rodrigo Brandão no Núcleo A70: torcer o tempo e unir os espaços com palavras e sons

Fotografia: Inês Mineiro Abreu
Publicado a: 13/09/2021

Na noite quente de sábado no novo espaço do Núcleo A70, em Marvila, Lisboa, o artista, rapper, músico e poeta Rodrigo Brandão arrebatou o público que compareceu em peso, com sua verve afiada e alquimia musical que propõe um novo modelo de revolução, com sua base musical dentro do rap, funk e soul, passando pelo free jazz e o jazz espiritual.

O show foi centrado no seu novo álbum intitulado Outros Espaço, gravado no Sesc Pompeia em São Paulo, acompanhado pela Sun Ra Arkestra. O trabalho foi lançado pela Comets Coming — e também foi a festa de lançamento do novo selo voltado para a música experimental fundado por Edgar Raposo, proprietário da Groovie Records.

Numa atmosfera com referências que passam por Amiri Baraka, Gil Scott-Heron, Eugene McDaniels, ao redor de The Last Poets, Max Roach, Gary Bartz, Leon Thomas e Andy Bey, mas com um teor único e original com aspectos estéticos afro-brasileiros, unindo e acrescentando outras camadas entre o elo Brasil e África, Rodrigo Brandão aka Gorila Urbano resgata elementos estéticos, como o afrofuturismo, movimento cultural surgido no fim da década de 50 com a própria banda Arkestra. O próprio título do disco, Outros espaço, transparece a ideia de condensar vários “espaços” dentro de um único “espaço”, filosofia essa que é um dos principais pilares do afrofuturismo. 

A trilhar uma via a favor dos movimentos dos direitos civis de uma maneira diferente de outros revolucionários, apesar de algumas similaridades e amizade com Malcolm X, Martin Luther King, Panteras Negras e Nação do Islão, Sun Ra buscava principalmente a revolução e o entendimento da realidade através da busca da ancestralidade para, dessa forma, o povo preto conseguir moldar o seu futuro e poder ter a liberdade de criar suas próprias vontades, filosofias e possibilidades, sejam elas provenientes da cultura de vanguarda ou da cultura popular. onde a música, estética, ancestralidade se unificavam em suas apresentações como também em sua própria realidade de vida. 

A partir desses fundamentos, Rodrigo Brandão resgata claramente o passado, o presente e o futuro no seu show, mas, como diz uma forma popular e gíria brasileira, fá-lo num “papo recto”, directo ao ponto, transmitindo em suas letras uma carga de meteoros da realidade sociocultural contemporânea em todos aspectos sem massajar o espectador ou dar voltas por caminhos desconhecidos e superficiais, Brandão dá o “papo recto” sobre os problemas políticos, económicos, sociais, raciais e culturais que o Brasil passa no momento como também histórias e relatos reflexivos sobre a colonização portuguesa e os interesses da elite racista, genocida e hiper-individualista que se propaga até os tempos actuais. 

Com sua voz rouca, perfomance intensa e suas letras que desfilam como poesia preta, termo que surge no primeiro movimento modernista vanguardista afro-americano da década de 20, o renascimento de Harlem, Rodrigo dialoga e interage com os espectadores sob uma narrativa afro-brasileira, mesclando termos como “Laroiê Exu Mojubá”, “Adupê”, entre outros, garantindo o espaço das matrizes afro-brasileiras e afim de mostrar elementos para os espectadores que os façam refletir sob um olhar antropológico as suas letras, sobre o que é historicamente o Brasil, e qual verdadeira realidade por trás da miscigenação opressiva ocasionada pelos colonizadores que acabaram se misturando com africanos e índios, definindo um novo povo. Que busca informar as entranhas e raízes históricas de um povo que muitas vezes não consegue entender nem a si mesmo, um grande comparativo com o livro do sociólogo Darcy Ribeiro, O Povo Brasileiro, que exemplifica todas essas questões de uma maneira educativa. Rodrigo mostra em suas letras e busca nelas referências do passado com uma visão contemporânea para assim moldar o futuro. 

Outros Espaço, segundo o autor fala nos seus diálogos, foi propositadamente escolhido sem o “s” no final para mostrar que pra disseminar cultura de vanguarda não precisa estar na elite académica e burguesa, mas, sim, directo do povo para o povo, usando o intermédio da cultura mais vanguardista e mesclando-a com a cultura popular, aproximando-as num modelo interessante.

E é aí que entra o quarteto que acompanha Rodrigo: bateria por João Valinho, baixo por Hernâni Faustino, saxofone por Rodrigo Amado e sintetizadores por Carla Santana, que promoveram um encontro meteórico de improvisação livre, onde os instrumentos são revelados como a base da matéria-prima, e evidenciados pela mistura do jazz espiritual, com os sintetizadores de Carla Santana, que garantem o clima tecnológico e futurista; afrofuturismo numa realidade contemporânea à qual Brandão prega e impacta a plateia com suas letras, improvisações e força, convidando os espectadores para participar como se todos fossem parte da banda, uma comunidade, sem nenhum tipo de elemento hierárquico no palco, ou algum posicionamento central dos músicos. Todos são um só, e participam quando querem e como quiserem. Um paralelo com a Sun Ra Arkestra, onde Herman Blount aka Sun Ra, sempre posicionava os músicos de uma maneira livres, muitas vezes ficando numa posição de canto no palco, atrás dos metais ou ao lado da bateria, e com o objectivo de unir o palco aos espectadores, onde a comunhão e reflexão eram mais importantes do que a busca pela formalidade académica do jazz que se fazia na época. É possível ver essa influência no modo como Rodrigo Brandão interage no palco com os músicos e com a sua comunidade, no caso os espectadores.

Nas suas composições, além de palavras de matriz afro-brasileira e conteúdo sociopolítico contemporâneo, Rodrigo faz questão de passar pequenos trechos de músicas de artistas que o inspiram e que fazem parte de todo o contexto revolucionário praticado em seus diálogos, exemplos como Jorge Ben, Willie Bobo, Racionais, Gilberto Gil, Roy Ayres, Gil Scott-Heron, Amiri Baraka entre outros, uma mistura de Panteras Negras, música afro-brasileira e afrofuturista, Spanish Harlem, Bronx e Malcolm X. Como se um braço de Rodrigo estivesse em Nova Iorque disseminando o resgate dos movimentos dos direitos civis, Angela Davis, Martin Luther King, Malcolm X e Panteras Negras, o outro braço entrelaçado no afrofuturismo de Sun Ra, com os elementos de fusão de sintetizadores com free jazz, as pernas nos países que foram colonizados pelos europeus, buscando a essência da África e essencialmente a busca das origens de um povo colonizado que teve sua memória cultural apagada, e os traumas que isso reverbera no psicológico de um povo que actualmente ainda vive o desafio de se reconhecer. E, por fim, a cabeça que traz todos esses elementos em uma nova perspectiva sociopolítica especialmente entre as relações actuais entre Brasil e Portugal, e todas as suas diferenças, similaridades e nuances num “papo recto”, pé no chão dentro de um cometa em que o público embarca e fica impactado com tamanha sinceridade e realidade.

Nas suas letras anárquicas, Rodrigo faz nos refletir, incomoda-nos e obriga-nos a entender os outros lados, questionando todos os problemas da sociedade a partir de diversos pontos de vista entre o opressor e o oprimido, por todos os ângulos e formas, sem deixar um ponto fora da curva. A certa altura, e num momento que durou 10 minutos, com um diálogo intenso e com uma letra extremamente bem elaborada, Rodrigo questiona a plateia de quem é que está destruindo de facto a sociedade. “Quem?” E, juntamente com a banda, em transe, Rodrigo levanta da sua cadeira e começa a circular entre a plateia, cai em cima de outra cadeira, arrasta-se pelo chão, interage e, por fim agarra o fio do microfone, entrelaça em seu pescoço e diz – “Quem tem coragem de se matar aqui agora? Quem?”. Jogando-se de seguida ao chão em silêncio por alguns segundos, num acto que poderia ser retirado de um qualquer show punk do fim dos anos 70. Rodrigo finaliza com atitude e “papo recto” e, sem dúvidas, revolucionando a cabeça de cada um que esteve junto com ele nessa mensagem em Outros Espaço para a realidade da vida, o passado, o agora e o futuro numa só direção, como uma tempestade celestial revolucionária.

E a pergunta ainda reverbera forte: “Quem?”

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