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Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 03/08/2021

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #62: William Parker

Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 03/08/2021

Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.



[William Parker] Mayan Space Station + Painters Winter / AUM Fidelity

Em Maio último exaltaram-se por aqui o génio do artista William Parker e a monumentalidade da sua obra a propósito da edição da expansiva caixa Migration of Silence Into and Out of the Tone World. Há duas novidades que o contrabaixista (e multi-instrumentista e compositor e griot e educador) apresentou no passado dia 23 de Julho: Mayan Space Station, trabalho em que conta com os préstimos de Gerald Cleaver na bateria e de Ava Mendoza na guitarra, e ainda Painters Winter, com Hamid Drake na bateria e Daniel Carter em múltiplos sopros. As composições são todas da lavra de Parker, em ambos os álbuns.

São, ainda assim, dois trabalhos muito diferentes, duas faces de um prisma muito complexo, embora sejam ambos atravessados por uma similar exuberância energética que é mais um sinal do momento de plena forma que William Parker está a atravessar. Mayan Space Station, curiosamente (tendo em conta a amplitude da carreira de Parker), é o primeiro trio de guitarra eléctrica que o contrabaixista lidera, o que é, obviamente, facto digno de nota.

A empatia telepática de Parker e Cleaver é notória e já rendeu momentos de intensa comunhão, nomeadamente em projectos com o pianista Craig Taborn (Farmers By Nature), com o guitarrista Joe Morris (Altitude) ou ainda com Daniel Carter e com o pianista Matthew Shipp (Welcome Adventure! Vol. 1) além, claro, de trabalhos seus como líder (como Double Sunrise Over Neptune ou Uncle Joe’s Spirit House). Neste álbum, a sua empatia atinge níveis cósmicos de fluidez e rende grooves de elasticidade infinita, como acontece logo na peça de abertura, a escaldante “Tabasco”. E por cima de tudo isso surge a lava líquida da guitarra de Ava Mendoza, a mergulhar sem medos no que o texto de apresentação descreve como “blues cósmico de múltiplas tonalidades, perfeito para viajar no tempo e no espaço”. Ou seja, música que estando ligada à raiz atravessa ainda assim múltiplas dimensões.

Mendoza é figura conhecida na cena nova-iorquina que parece não reconhecer fronteiras e percorre todos os terrenos que se estendem entre o metal e o folk e blues tradicionais, incluindo a improvisação livre ou a música erudita clássica e contemporânea. Em todas essas aventuras acumulou uma já considerável discografia com cerca de cinco dezenas de títulos e que em tempos mais recentes inclui colaborações com gente tão diversa quanto os Negativland (The World Will Decide) ou o trompetista Nate Wooley (Seven Storey Mountain VI). 

Aqui, servida por uma secção rítmica de absoluto luxo que nunca se remete exactamente para um segundo plano, Ava Mendoza é obrigada a aplicar o seu “A game”, rasgando por modos mais bluesy ou mais abstractos, em passagens de pendor rítmico mais acentuado ou mais livres, carregando naturais ecos de Sonny Sharrock ou até um certo músculo rock que Jimmy Page não desdenharia. O resultado final é estonteante, uma montanha-russa de enérgicas afirmações de personalidade. Sublinha o próprio Parker que “Ava Mendoza e Gerald Cleaver pertencem à linhagem dos viajantes sónicos que, como Sun Ra descreveu, ‘viajam pelo espaço’. Reinventando o processo e permitindo que a música flua através dos seus instrumentos”. Sem dúvida.

Painters Winter começa igualmente com um groove pronunciado estabelecido por Parker, com Hamid Drake a proporcionar ao seu igualmente bem conhecido companheiro de aventuras um contraponto de inventividade em estado puro que o saxofonista alto e tenor, trompetista, clarinetista e flautista Daniel Carter aproveita da melhor maneira possível. E esse é apenas o ponto de partida para mais uma deriva de intensas passagens, reflexivos mantras e incandescentes fraseados.

A história que une Drake e Parker é igualmente vasta. Cruzaram-se, por exemplo, com Luís Vicente e John Dikeman no fantástico Goes Without Saying, But It’s Got to Be Saidque a JACC records editou o ano passado. Mas a participação de Drake no quarteto liderado por Parker, por exemplo, recua uns bons 20 anos e já rendeu quase uma dezena de álbuns. E, obviamente, os dois músicos já partilharam palcos e gravações em vários outros contextos.

Já Daniel Carter, decano nascido em 1945 (é sete anos mais velho que Parker), tem uma carreira discográfica que se estende por cinco décadas e que se cruza com a elite que representa um certo modernismo na cena jazz, sempre em busca do futuro. Com Parker tem colaborado regularmente quase desde o início do seu percurso discográfico. Os três gravaram, aliás, há cerca de 20 anos e para a Thirsty Ear, o álbum Painters Spring. Talvez não tenhamos que esperar mais duas décadas pelos retratos que este trio bem nos poderia oferecer do Verão e do Outono, para que a viagem pelas quatro estações fique, enfim, completa.

Painters Winter possui uma mais ampla paleta tímbrica, já que ao variado arsenal de sopros de Carter ainda se adicionam o trombonium (um trombone mais compacto) e a flauta japonesa shakuhachi de que Parker se socorre pontualmente. Isso traduz-se em momentos de diálogo brilhantes, como acontece no tema que dá título ao álbum, com o líder e o multi-instrumentista a conversarem alegremente enquanto Drake desenha o que soam a passos, como se os dois sopradores fossem em animada palheta (pun intended…) por um caminho fora, como dois pintores que vão andando em busca da paisagem perfeita que querem entregar à tela.

No contrabaixo, com arco ou apenas com os dedos, William Parker projecta uma luz imensa, uma inteligência funda e uma elegância criativa a toda a prova, servindo sempre cada peça da melhor maneira possível, entregando as notas – ou os sons que existem entre elas – com total certeza de que são as que cada uma das composições necessita em cada momento. O solo na peça que fecha este álbum, “A Curley Russell” (a mais longa do alinhamento) é uma tradução clara de todas essas qualidades atrás enunciadas, uma demonstração de elegante mestria e de poética relação com o tempo.

Refere William Parker nas notas de apresentação de Painters Winter que o título “fala aa quem pinta com o som, em diferentes paisagens, para celebrar a chegada das estações: inverno primavera verão e outono. Reconhecendo o universo inteiro de música world jazz. Descobrindo o que ainda está por descobrir. A música neste álbum”, remata ainda o líder, “é um tributo ao flow do ritmo como melodia e pulsação. Temperado com a alegria e com o balanço, a dança e o batimento do coração. Fazendo uma vénia a toda a música que já passou por nós”. Palavras tão bonitas quanto a música que nos envolve assim que carregamos no play. Ou, desejavelmente, pousamos a agulha no vinil, já que o som de ambos os registos pede esse calor particular.

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