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Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 25/05/2021

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #58: William Parker / Outlines

Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 25/05/2021

Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.



[William Parker] Migration of Silence Into and Out of The Tone World / Centering Records

Assim, só de repente, para se ter uma breve ideia da monumentalidade da obra gravada do contrabaixista norte-americano William Parker, refira-se que o Discogs lhe aponta mais de 170 álbuns em nome próprio, numa contínua produção como líder que se estende por 40 anos, e perto de meio milhar (!!!) de registos para que contribuiu como sideman, começando logo em grande, em 1973, quando contava apenas 21 anos, num extraordinário álbum do saxofonista tenor Frank Lowe para a ESP Disk de Bernard Stollman, Black Beings. Uma obra imponente, sem dúvida.

Por tanto ter já realizado, novas e significativas adições a tão vasto cânone nem deveriam surpreender, mas a verdade é que ainda assim a caixa de 10 CDs Migration of Silence Into and Out of the Tone World é fonte de novos e intensos maravilhamentos. Muito do trabalho aqui apresentado sublinha o trabalho composicional de Parker, com a interpretação a ser entregue a ensembles em que o contrabaixista poderá ter ou não algum papel (e, quando de facto intervém, além do contrabaixo, Parker pode recorrer a pequenas percussões, trompete de bolso, flautas e outras ferramentas) ou mesmo a solistas absolutos, como acontece no arrepiante Afternoon Poem, volume entregue à vocalista Lisa Sokolov.

Os 10 volumes são distribuídos por diferentes artistas e formações: Blue Limelight – Raina Sokolov-Gonzalez & Ensemble; Child of Sound – Eri Yamamoto; The Majesty of Jah – Ellen Christi, Jalalu-Kalvert Nelson, William Parker; Cheops – Kyoko Kitamura & Ensemble; Harlem Speaks – Fay Victor, Hamid Drake, William Parker; Mexico – Jean Carla Rodea & Ensemble; o já mencionado Afternoon Poem – Lisa Sokolov; Lights in the rain – Andrea Wolper & Ensemble; The Fastest Train – William Parker, Coen Aalberts, Klaas Herman; e, finalmente, Manzanar – Universal Tonality String Quartet.

Há alguns fios condutores que se estendem por vários dos volumes desta obra: a voz humana como fonte de expressividade emocional pura; a clara vontade, que aliás espelha a multiplicidade da obra de Parker, de explorar diferentes possibilidades instrumentais realçando desafios ao nível da composição – dos solos com voz humana ou piano ao quarteto de cordas; as nuances da negritude – Jah, Cheops, Harlem; o recurso significativo a talento feminino.

Há, obviamente, momentos que se destacam por diferentes razões: Majesty of Jah quase soa como a banda sonora de um documentário com o escritor e intelectual negro James Baldwin por protagonista central – a sua voz serve de fio condutor a uma expressiva suite em que se destaca naturalmente o trompete de Jalalu-Kalvert Nelson e para que o próprio Parker contribui com leves percussões que parecem pontuar as ideias e as palavras e, pois claro, na peça que dá título à suite, por exemplo, com o seu baixo, tão sinuoso como a história que representa, tão vivo como o seu espírito. Harlem Speaks é outra extraordinária suite: focada no espírito da Harlem Renaissance, o período no início do século XX em que diferentes artistas – músicos, pintores, dramaturgos, actores, bailarinos – se congregaram no icónico bairro de Nova Iorque para instigarem um fértil ciclo de criação, esta peça exalta a força criativa da cultura afro-americana com Hamid Drake a brilhar intensamente enquanto Fay Victor parece canalizar os fantasmas do próprio tempo. Instrumentação esparsa, ideias fundas e Parker em modo de contenção extrema funcionam de forma absolutamente arrebatadora.

Com música estendida num amplo espectro de visões estéticas, William Parker reafirma a sua condição de criador puro, comprometido apenas com a extensão dos limites da expressão e da arte, afirmando-lhe a cada passo a sua dimensão humana, traduzindo em cada nota o peso das suas próprias experiências. Será difícil escutarem este ano música mais transparentemente honesta do que esta.

Caixa disponível na Jazz Messengers Lisboa



[Vários Artistas] Outlines / Anma Records/Cognitiva Records

O programa estético é exposto logo na contracapa: “Um livro aberto, uma narração que olha para o futuro, mas pensa no passado. Sons, culturas e cores unidas numa linha comum…” E isso significa a congregação num mesmo projecto dos talentos de Future Jazz Ensemble & XL regular, Quiroga & 291out, Slowaxx, Domenico Sanna & Gio Iacovelli feat. Shalka Mani, Veezo & F2F Project, Aura Safari, Karmasound & Footnote, Footshooter, Contours & Werkha e, finalmente, Roy Vision – os nomes por trás das 10 faixas aqui apresentadas.

Musicalmente, Outlines propõe uma intensa viagem pelos territórios em que a electrónica e o jazz se cruzam, com declinações modernas do espírito fusionista do género que admitem derivas por terrenos limítrofes, recorrendo a pulsares que vão do afrobeat (Domenico Sanna & Gio Iacovelli feat. Shalka Mani) ao breakbeat musculado (Aura Safari), garage de tendência quebrada(Footshooter) ou house puro (Roy Vision). Muito talento italiano num álbum em que apesar da dispersão de nomes convocados se sente uma coerente unidade de propósito: esta é, definitivamente, música apontada aos clubes do futuro (as pistas não tardarão a reabrir…), mas plenamente informada por um estudo atento do passado, aquele que se estende entre as estratégias de imaginação do amanhã espacial do Herbie Hancock da segunda metade dos aos 70 à sofisticação pós-techno do Kirk Degiorgio dos anos 90 e início deste milénio. Synths sabedoramente combinados com secções de sopros, beats programados, baixos orgânicos, e uma atmosfera sempre luxuriante expressa em arranjos que procuram espessura orquestral e funcionalidade rítmica de uma só penada. Que o equilíbrio entre tais objectivos tão distintos seja plenamente alcançado é um atestado ao elevado grau de imaginação aqui posto em evidência.

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