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Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 14/01/2021

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #43: Vicente, Dikeman, Parker & Hamid Drake / In Layers / Tiganá Santana

Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 14/01/2021

Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.



[Luís Vicente, John Dikeman, William Parker, Hamid Drake] Goes Without Saying But It’s Got to Be Said / JACC Records

O título deste extraordinário registo de um concerto na lisboeta ZDB em Julho do pandémico ano de 2020 pode ser interpretado de muitas maneiras. No booklet desta bela edição do JACC, o saxofonista John Dikeman oferece uma explicação ao assinar um texto em que aborda a complexa questão do racismo nos Estados Unidos, ele que cresceu no Wyoming e só percebeu as diferenças impostas pela cor de pele quando se mudou para Nova Iorque. Nem é preciso dizer, de facto, que o racismo continua a ser uma praga que divide países, como tão agudamente a História recente nos ensina, tanto a nossa, interna, como a de gigantes como a América. Mas há que falar nisso, porque silenciar a questão é eternizá-la e aprofundá-la.

Neste álbum, há dois instrumentos melódicos, saxofone tenor e trompete, tocados por dois músicos, ambos brancos, oriundos de culturas e realidades muito distintas, mas em que essa problemática está igualmente na ordem do dia: são eles o já citado John Dikeman e o português Luís Vicente. E depois há, na secção rítmica, um par de veteranos que são autênticas instituições do lado mais libertário do jazz, o contrabaixista William Parker e o baterista Hamid Drake: juntos, somam cerca de 90 anos de carreira activa (Parker estreou-se em disco em 1973 ao lado de Frank Lowe, Drake em 1978 a secundar Don Cherry!) e acumulam perto de um milhar de títulos nas suas extensas discografias de executantes (com cerca de 250 enquanto líderes ou co-líderes). É importante mencionar estes números apenas para que se entenda correctamente o calibre destes mestres, porque o que se escutou naquela noite de Julho na pequena sala lisboeta foi uma lição de história, com as suas mãos, pés e corpos a afirmarem-se como monumentos vivos de resistência e depósitos de uma experiência que é musical, estética e artística, mas também espiritual, política e humana.

E se Drake e Parker têm essa profundamente fascinante capacidade de tocarem como um só, tão rápidos como o pensamento – nas notas de capa, Parker escreve sobre a improvisação livre que descreve como “tocar sem pensar, mas não sem pensamento”, forma particularmente feliz de explicar a invenção livre que ocorre quando a música se solta vinda do fundo mais fundo de um artista, sem planos ou direcções –, os solistas mostram-se aqui à altura do “embate”. É que com tamanha e tão sólida base, não há qualquer dificuldade para que Dikeman e Vicente (que somam ambos umas mais “modestas” três décadas de carreira discográfica espelhada em cerca de 90 títulos em que participaram como músicos, 35 dos quais na condição de líderes ou co-líderes) não brilhem até porque há uma história prévia que os une a todos. Os três músicos americanos já gravaram juntos, na Bélgica e em Londres, em 2015, tendo tocado bastas vezes noutros locais. E, por outro lado, Vicente e Dikeman também têm história prévia, tendo gravado em 2017 o projecto Corda Bamba, ao lado de Hugo Antunes, Alexander Hawkins e Roger Turner (lançado em 2019 na JACC). Não eram, portanto, estranhos, aqueles quatro músicos que se juntaram na ZDB para, sem que fosse necessário dizer, mas afirmando-o de qualquer maneira, imporem a sua música como um grito de liberdade, uma manifestação de empatia e comunhão entre diferentes experiências e culturas. E talvez seja em “3rd Sentence”, a última parte do tríptico de longas peças aqui expostas, quando o cântico de Hamid Drake e o gimbri de William Parker nos transportam para uma África espiritual, com a dupla mais jovem inicialmente em silêncio reverente, como quem escuta uma história arcana, que tudo se encaixa. A esse apelo, o saxofone e o trompete respondem com solene profundidade, entrelaçando os discursos com uma segurança e uma elegância absolutamente tocantes. Não será mesmo preciso dizer, mas ainda assim é crucial referir que o futuro depende de sermos capazes de escutar o outro antes de responder, de respeitar o outro, de amar o outro. E não é preciso escrever, mas já agora cá vai: Disco espantoso, este.



[In Layers] Pliable / FMR Records

In Layers são Luís Vicente (uma vez mais…) no trompete, Marcelo dos Reis na guitarra eléctrica, Onno Govaert na bateria e Kristján Martinsson no piano. Foi este o quarteto que editou a estreia homónima em 2016, registo de um concerto na Zaal 100 de Amesterdão. O trabalho com que sucederam a essa estreia, lançado na recta final do ano passado, foi desta vez gravado do “lado de cá”, no conimbricense Salão Brazil, com dos Reis a escolher desta vez ficar ligado à corrente. Tendo em conta que este é um quarteto sem baixo ou contrabaixo, as maiores possibilidades cromáticas oferecidas pela amplificação ao guitarrista, acabam por soar decisivas nesta sinuosa viagem pelos terrenos da livre improvisação.

Todos os músicos são aqui solistas, com o pianista islandês a revelar-se um expressionista abstracto de mão cheia, e o baterista holandês a demonstrar, uma vez mais, ter um entendimento profundo do seu instrumento, espalhando pulsares livres de estrutura como quem atira sementes para um campo lavrado, esperando que ganhem raízes e possam crescer. E essa é uma ideia que parece assentar bem ao trabalho documentado neste Pliable: é que há, de facto, uma dimensão orgânica nesta música, com os diferentes instrumentos a entrelaçarem-se como plantas, “crescendo” em diferentes direcções, mas com um similar propósito. E a essa “dimensão orgânica” soma-se igualmente uma propensão nítida para a subtileza: os gestos musicais são aqui bastante assertivos, mas nunca despropositadamente desmesurados. Esta música faz-se bem mais de “sussurros” do que de gritos.

Marcelo dos Reis é um filigranista pleno, capaz de tecer delicadas teias de névoa eléctrica e Luís Vicente é um músico apostado em levar o seu instrumento aos extremos expressivos máximos, extraindo dele longas frases e repentes cromáticos que nos mantêm sempre na borda da cadeira, expectantes pelo que a sua imaginação vai criar a seguir. É escutar “Elastic” para perceber.

Cruzando terrenos mais próximos do jazz nuns momentos, mais familiares da abstracção contemporânea noutros, com o quarteto a soar quase como um ensemble de música de câmara, estes In Layers soam decididamente aventureiros, destemidos e inquisitivos na sua demanda musical, um organismo claramente apostado na expansão, certamente em busca do próprio futuro.



[Tiganá Santana] Vida-Código / Ajabu!

É funda a alma, a voz, a dor e a filosofia de Tiganá Santana, artista baiano que grava para a sueca Ajabu! e que não tem pejo em confessar que seu “blues não seduz”. Só que sim. Mais, até: apaixona. Tiganá doutorou-se na Universidade de São Paulo com a tese “A cosmologia africana dos Bantu-Kongo por Bunseki Fu-Kiau” e fala com propriedade sobre a “hegemonia branca euro-ocidental” no pensamento contemporâneo do seu Brasil, grava discos em dialectos africanos, como o quimbundo ou o wolof, e usa a música como uma expressão da sua luta anti-racista. E isso significa, esteticamente, um trabalho de tranquilas, mas muito fundas canções, erguidas em torno da expressividade plena da sua voz, calma e séria, nobre e distinta, adoptando pulsares do samba, floreados muito subtis de jazz ou do lado mais cantautoral da MPB, carregando algo do Milton Nascimento na sua identidade. Aliás, tal não é de espantar, até porque a Ajabu! deverá lançar a sua própria versão do álbum Milagre dos Peixes, trabalho que o histórico cantor de Minas Gerais viu ser censurado pela ditadura militar em 1973, precisamente por se posicionar no meu campo de resistência que Tiganá agora reclama para si. E porque “a vida é o tempo antes do pó”, Tiganá Santana tem muito para nos dizer neste Vida-Código, expressando-se em português, francês ou castelhano sobre uma límpida paisagem acústica que permite recortar toda a beleza da sua voz. No final, em “Não vás, preta”, Tiganá fala de um “novo amor antigo”. Ele mesmo, portanto: uma nova descoberta que soa como se afinal de contas sempre o tivéssemos conhecido.

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