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Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 30/12/2020

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #41: os 20 melhores álbuns internacionais de 2020

Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 30/12/2020

O jazz sofreu especialmente em 2020, mas perseverou também, como a abundância de lançamentos de assinalável qualidade tão bem deixou claro. Sem os pequenos clubes que funcionam como artérias para a circulação de ideias, sem os palcos em que cumplicidades, experiências, encontros e desencontros são promovidos todas as noites, sem os festivais onde os artistas se consagram, toda uma cultura ficou ameaçada. E ainda assim a música venceu. Venceu porque em 2020 as novas ideias e os novos ventos e os novos artistas e as novas abordagens encontraram espaço para se imporem. Mais mulheres do que nunca a tocarem jazz avançado, mais editoras independentes a apostarem no risco, mais editoras históricas a compreenderem que é a olhar para o futuro que se garante a sobrevivência. De tudo isso se fez 2020, ano que viu nascer estas Notas Azuis, a meio de Fevereiro, antes de tudo o que tínhamos como certo colapsar. Pelo meio, nasceu igualmente o programa de rádio Notas Azuis, que podem acompanhar na Antena 3 todos os domingos, pelas 20 horas. E voltámos a ter uma loja de discos dedicada ao jazz em Lisboa, a Jazz Messengers, com quem o Notas Azuis tem algumas aventuras planeadas para um 2021 que se quer diferente. Mas isso é outra história. Neste momento, concentramos o olhar no ano que se passou. Os 20 discos que aqui se destacam são apenas uma ténue amostra de um muito mais amplo e alargado legado. Há muitos “jazzes” dentro do jazz, muitas escolas, muitas praxis diferenciadas, muitas ideias e culturas. Em 2020, os nossos ouvidos andaram por aqui, em busca de outros tons de azul.



1º – [Jeff Parker] Suite For Max Brown (International Anthem)

“A elegância que a mãe de Jeff Parker, a senhora Maxine Brown, exibe na foto vintage da capa tem um directo equivalente na música aqui apresentada, rica em detalhe, profunda no plano emocional, desafiante e tão confortável quanto um daqueles velhos sofás que o basto uso já moldou ao nosso corpo. Pérola praticamente perfeita.”



2º – [Sun Ra Arkestra] Swirling (Strut)

“E o que repetidas audições revelam é esse êxtase eterno que parece animar uma formação que sempre buscou o futuro na tradição, encarando a música como uma funda afirmação cultural, de identidade, de pura manifestação de liberdade. Allen, pode garantir-se, mesmo prestes a assinalar o seu primeiro centenário na Terra, é um óptimo piloto da nave musical que Sun Ra criou porque a Arkestra continua a soar como uma afinada e avançada máquina de sons e tons, de ideias e de caóticas harmonias.”



 3º – [Jyoti] Mama, You Can Bet (SomeOthaShip Connect)

“Com as cadências herdadas do hip hop como invariáveis pontos de partida para os diferentes temas, Jyoti aposta num rico sincretismo em que cabe tudo: o afrofuturismo despoletado por Sun Ra, a soul cósmica de Stevie Wonder, o funk psicadélico de George Clinton, o hip hop desconjuntado de Dilla e Madlib e, obviamente, o lado mais espiritual e exploratório do jazz, aqui traduzido na hábil combinação de sopros e teclados em permanente mergulho num lago de delícias harmónicas sem fim que por vezes rendem peças cubistas e plenas de vívida imaginação, como se comprova em ‘Hard Bap Duke’.”



4º – [Gil Scott-Heron, Makaya McCraven] We’re New Again (A Reimagining by Makaya McCraven) (XL Recordings)

“Respondendo ao convite de Richard Russell, patrão da XL que foi o produtor original de I’m New Here, o derradeiro registo na longa carreira de Gil Scott-Heron lançado há exactamente 10 anos, Makaya tratou de reimaginar o espaço que uma voz que é referência do lado mais progressivo da consciência negra americana dos últimos 50 anos pode ainda habitar, hoje, em 2020, exactamente meio século depois de Small Talk at 125th and Lenox, o álbum em que surgiu a primeira versão de ‘The Revolution Will Not be Televised‘, clássico incontornável. E Makaya não esconde que foi ‘pesado’, o acto de escutar, em estúdio, as faixas de voz cedidas pela XL. Mas Gil Scott-Heron é o fantasma que todos precisamos que nos continue a assombrar. E Makaya McCraven o homem que garante que isso vai continuar a acontecer.”



5º – [Gary Bartz & Maisha] Night Dreamer Direct-to-Disc Sessions (Night Dreamer)

“Os Maisha estavam, evidentemente, mais do que conscientes dos extensos pergaminhos de Bartz e sente-se nesta sessão que essa reverência esteve em alta no estúdio. Mas um dia de ensaios em Harleem, na Holanda, foi mais do que suficiente para que a banda e o solista convidado encontrassem a necessária sintonia cósmica a que depois se deu precioso uso em cinco temas vibrantes, que exploram uma ideia de groove com pontuais travos africanos, mas que também se sabem acercar da sinuosa elegância jazz-funk mais clássica como tão bem provado em ‘Dr. Follows Dance’, uma pérola para pistas que nos faz ansiar por um futuro em que os corpos possam voltar a estar próximos num pequeno clube lotado.”



6º – [Shabaka & The Ancestors] We Are Sent Here By History (Impulse)

“E isso garante que We Are Sent Here By History se apresente como uma intrincada tapeçaria de palavras de forte intensidade ideológica e espiritual (questiona-se a masculinidade tóxica, mas também se exalta a liberdade, a capacidade de tecer o próprio destino) com música em que a secção percussiva assume o tremor da própria Terra ao passo que o baixo se ergue como elemento de exposição melódica em vários momentos-chave (‘Behold, The Deceiver’ é um deles), com os dois sopros a terem espaço para colorirem harmonicamente as composições, nunca temendo a delicadeza lírica ou o fogo da mais pura invenção.”



7º – [Ambrose Akinmusire] On The Tender Spot Of Every Calloused Moment (Blue Note)

“Com Justin Brown na bateria e Harish Raghavan no baixo, Sam Harris no piano e, em duas das 11 faixas, com as vozes de Genevieve Artadi (‘Cynical Sideliners’) e Jesus Diaz (‘Tide of Hyacinth’), Ambrose Akinmusire (que além de assinar a produção, ainda se senta ao piano eléctrico em dois momentos do álbum, ‘Cynical Sideliners’ e ‘Hooded Procession (Read The Names Out Loud)’) assina um belíssimo registo feito tanto de contenção como de expansão, de vívida dimensão espiritual, meditativo e profundamente cerebral no sentido em que cada peça, ainda que tendo claro espaço de invenção e de coloração livre, parece ser o resultado de uma cuidada esquematização.”



8º – [Nubya Garcia] Source (Concord)

“A líder assume aqui, muito naturalmente, a dianteira, assinando solos carregados de imaginação, embora sem o clamor que, por exemplo, define a ‘voz’ de Shabaka Hutchings. Nubya é mais reflectida, mais interessada em explorar uma maior complexidade harmónica, aproximando-se nesse registo de alguns pares contemporâneos americanos e ecoando também alguns mestres clássicos (Nubya já foi, por exemplo, comparada com Gary Bartz, facto que talvez ajude até a explicar porque se ausentou da sessão que os Maisha registaram recentemente com o veterano músico americano).”



9º – [Rob Mazurek / Exploding Star Orchestra] Dimensional Stardust (International Anthem)

“Este Dimensional Stardust traduz, portanto, um sério investimento em recursos (sobre)humanos, o que faz pleno sentido já que Rob Mazurek encara este fluído projecto como o seu mais avançado laboratório musical, o espaço criativo em que aplica as suas particulares noções de orquestração desenvolvidas com aturado estudo que o levou a investigar obras de compositores tão distintos quanto Bela Bartok ou Sun Ra. E, nesse aspecto, Dimensional Stardust representa um pináculo na carreira do prolífico músico que em mais de três décadas espalhou a sua visão por pelo menos sete dezenas de registos de diferentes fôlegos e com ensembles muito variados, percorrendo os mais aventureiros caminhos entre o pós-rock e o jazz mais livre.”



10º – [Jahari Massamba Unit] Pardon My French (Madlib Invazion)

“E toda essa vasta informação é aqui aplicada, com Pardon My French a cruzar múltiplos terrenos jazzísticos, mas mantendo sempre uma lúdica dimensão própria de quem em pleno laboratório percebe que não há limites ditados por uma eventual formação fixa e que todos os sons escutados na sua vasta biblioteca são convocáveis para esta sessão, assim haja espaço disponível no sampler.”



11º – [Asher Gamedze] Dialectic Soul (On The Corner Records)

“À frente de um ensemble que inclui Thembinkosi Mavimbela (baixo), Buddy Wells (saxofone tenor), Robin Fassie-Kock (trompete) e Nono Nkoane (voz), o baterista Asher Gamedze assina um tremendo manifesto de elevação pela arte, em direcção aos picos do espírito, um trabalho que nasce na Cidade do Cabo em 2020, mas que bem poderia ter sido cozinhado nos lofts de Nova Iorque na década de 70. Essa foi, aliás, a intenção original: é que Dialectic Soul é parte de uma reflexão académica sobre os pontos de ligação entre o jazz de protesto americano e o mesmo espírito combativo que animou o jazz sul africano durante os anos de resistência ao repressivo e desumanizante sistema do apartheid.”



12º – [Irreversible Entanglements] Who Sent You? (International Anthem)

“Este é o som de Nova Iorque em 2020, mas é também o som de uma Nova Iorque com memória, que remete para as experiências que se foram abrigando nos lofts onde os artistas desenharam, pintaram, escreveram, dançaram e tocaram a liberdade desde pelo menos a era em que o Harlem renasceu e mais além, até ao tempo em que as panteras eram negras e Shaft era superfly. E daí em diante, porque a luta contra o poder assumiu muitas outras bandas sonoras. Esta é a de agora e está cá tudo, o tal pacote de ajuda é de facto completo: a mensagem, o ritual, o dedo acusatório, a música que nasce da invenção livre, o nervo humano e a força herdada dos tais antepassados que fizeram as cidades. Sobreviver é possível.”



13º – [Jaga Jazzist] Pyramid (Brainfeeder)

“É mais do que claro que os Jaga Jazzist não disfarçam as origens do som que apresentam em Pyramid, mas o que aqui importa é a viagem em si, não o ponto de partida. E os arranjos traduzem sempre ambição formal, rigor orquestral e imaginação em doses generosas, com a música no final a afirmar-se como firmemente deste tempo, muito mais do que simples resultado de um colectivo olhar revisionista. Regresso em forma, sem a menor sombra de dúvida. Resta esperar que a decisão de adiar o disco de Abril para Agosto esteja ligada a uma vontade de trazer para os palcos a aventura que foi criada num estúdio sueco perdido no meio da floresta. Dedos cruzados…”



14º – [Mourning (A)BLKstar] The Cycle (Don Giovanni)

“A autenticidade terrena é indiscutível e sente-se nas vozes, no pulsar humano dos instrumentos, nos lamentos feitos ar que percorrem as entranhas dos sopros, como quando Coltrane fez ‘Alabama’. Já nos sintetizadores (que soam como sobras da Radio Shack, sempre em registo de menor definição (mas maior personalidade!) analógica, como se percebe em ‘Been Around’) e nas batidas poeirentas, vislumbra-se, de facto, o desejo de liberdade que a projecção no espaço sempre traduziu, pelo menos desde que Sun Ra apontou a Saturno.”



15º – [Sam Gendel] Satin Doll (Nonesuch)

“É de busca de uma nova expressividade para o saxofone que este disco trata, invertendo no entanto o que parece ser uma tendência quase transversal nas mais modernas visões do jazz: se muitos discos que hoje nos entusiasmam vindos das vibrantes cenas londrina ou ‘los angelina’ ou ainda de etiquetas como a Brainfeeder ou  International Anthem são o produto de músicos reais que ainda entendem o valor da comunicação orgânica e colectiva, mas que depois não descartam a possibilidade de submeter essa matéria a tratamento electrónico e a edição subsequente em estúdio, passando do palco ou da sala de captação para uma paralela dimensão digital, o que Gendell pelo contrário propõe é partir de um setup altamente condicionado pelas possibilidades que a electrónica oferece, mas tratar isso como ponto de partida para modelar a interacção colectiva em tempo real com novas possibilidades texturais e harmónicas. O resultado é deveras entusiasmante.”



16º – [Kassa Overall] I Think I’m Good (Brownswood)

“Essa matéria recolhida por Kassa Overall – e que resulta do cruzamento de harpas e vibrafones, sopros e pianos, vozes e baixos – é depois tratada e adaptada a composições em que o jazz é apenas uma das coordenadas, com o hip hop a funcionar como elemento aglutinador e a soul a assumir igualmente parte da responsabilidade na particular fórmula que resulta no vibrante material deste I Think I’m Good.”



17º – [Christian Scott aTunde Adjuah] Axiom (Ropeadope)

“Uma última palavra para ‘West of the West’: é uma peça longa de quase 16 minutos em que os sopros se expandem sobre um ‘shuffle’ rítmico bem funky, perfeito para que o saxofonista Alex Han espalhe o seu pó de estrelas, percebendo-se muito bem a exuberante alegria que todo o combo partilha numa noite que haveria de adquirir um simbolismo muito especial: esta música faz-se de partilha e de sentido comunitário, explorá-la em palco é devolvê-la ao seu natural plano, mas essa prática está agora suspensa. Mais importantes se tornam, por isso, registos como este, que bem pode conquistar relevância histórica tamanha a particularidade do contexto que o viu nascer.”



18º – [Dezron Douglas & Brandee Younger] Force Majeure (International Anthem)

“E se há quem faça questão de nos mostrar o que acontecia em frente do olhar público quando os palcos ainda eram espaço de regular invenção, existe igualmente quem levante o véu sobre a sua abordagem criativa ao confinamento. É o caso do contrabaixista Dezron Douglas e da harpista Brandee Younger que, em frente de um microfone, no seu apartamento de Harlem, em Nova Iorque, aproveitaram o isolamento para registar um álbum de poéticas reinvenções de matéria alheia dispersa por um vasto território, dos Stylistics a Kate Bush.”



19º – [Thundercat] It Is What It Is (Brainfeeder)

“E em canções desarmantemente pessoais, quase sempre entregues num falsete meio dreamy, Thundercat desfila arranjos densos, floreados com muitas notas, em que o seu baixo abre caminho por entre folhagem espessa de ritmos, harmonias e melodias, com muitas guitarras e sintetizadores e Rhodes a ancorarem os arranjos na estética de fusão que animava boa parte dos artistas clássicos do género. E tudo com uma subtil presença do agora, com cadências que não permitem que se esqueça que por muito excêntricos que sejam os gostos de Thundercat, músico com um currículo tão vasto quanto o que se possa imaginar estender-se entre Suicidal Tendencies e Flying Lotus, ele ainda é um produto da era hip hop que não encaixa na sua música as divagações mais obtusas que expunham o virtuosismo em longos solos, preferindo antes temas mais concentrados.”



20º – [Kamaal Williams] Wu Hen (Black Focus)

“O álbum com que o patrão da Black Focus sucede a The Return, assume a ambiciosa missão de criar uma ponte entre o lado mais sofisticado do jazz de fusão e a presente cena britânica em que o jazz vive de alianças com o espírito emergente dos clubes pós-quase tudo (hip hop, broken beat, house, dubstep, grime…). Mas, muito mais do que agarrar em marcas específicas do tal jazz que se passeava pelas frequências mais comerciais das rádios nos anos 70 e 80 do século passado, a Kamaal Williams interessa-lhe a aura, o espírito que emanava desses discos.”

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